A negra noite da alma


A negra noite da alma

A dor da madrugada,
O desatino duro e distante dos quartos anônimos,
O mergulho na embriaguez disforme
Da escuridão silente e indiferente aos gritos

Desesperados dos que se perderam
De si nas brenhas diurnas da rotina
E penetraram na profundidade
Apavorantemente branca

De uma vigília eterna cumpridora dos deveres
E vem buscar refúgio nos porres tristonhos
De velhos butecos de luz amarela.

Uma rota bandeira que já não balança
Nem nas tardes mornas de um céu de domingo.
Um café sem açúcar, esquentado de novo.
O riso obrigatório da euforia falsa.
As novidades velhas das redes sociais.

O sem sentido tão grande
Que nem dói, mas só arrasta
Nossas mentes insones num mar branco e sem ondas.

Não grite ao portão de granito quando vierem
Te visitar todas estas “entidades”.
Pois não há rogo que as afaste e só após varrerem
Todo sossego modorrento e informe
Te abandonarão ao calor de um novo dia.

Gravataí, 17 e 20 de julho de 2016

Ubirajara Passos

Revelação


Poema escrito em plena madrugada, após algumas horas de relaxamento e “revelação” diante do canal Arte 1 da TV a cabo:

Iluminou-se minha madrugada.
Um ar feroz se insinuou nos cantos
Do arvoredo
E fez saltar as rochas
Sobre o abismo da perplexidade,
Do impasse oco, imóvel,
Porém prestes,
A estatelar-se num vôo interrompido,
Em meio ao frio da escuridão rígida e espessa.

Sobre o velho banco de granito
Orvalho o cristal fez-se
E o hermetismo do discurso derreteu-se.

A indefinível inquietude estéril,
Que se envaidece do seu sem sentido,
Fundiu-se no calor de um vinho rubro
E a emoção pura e bribtrante alçou seu grito
Sobre os sisudos telhados coloniais
Contra tela de aço do infinito.

Gravataí, 21 de março de 2014

Ubirajara Passos

A Caverna das Chuvas Eternas


Um ano e meio depois, mais um capítulo de Erótilia, para cujo perfeito entendimento, sugiro aos leitores acessar, na coluna lateral deste blog, o LIVRO ELETRÔNICO correspondente onde constam os capítulos anteriores:

A Caverna das Chuvas Eternas 

Caminharam como dois malucos por um dia inteiro até alcançar uma clareira na fralda de uma colina, onde às margens de uma cachoeira se encontravam as mais diversas oferendas a todos os deuses possíveis e imagináveis, muitas em pleno estado de putrefação, outras brilhando ao olhar do luar e dos cúpidos andantes, com suas redondas formas de amarelo brilhante e intenso, ouro e absoluto  ! Ali, pleno início noite, sentaram-se de qualquer jeito e, consumidas as provisões de pamonha dos alforjes, trataram de encharcar-se do suco fermentado da cana, sucumbindo aos seus apelos oníricos e roncando  “indecentemente” até a madrugada.

Três horas de uma noite pesada, densa e eterna, acordaram-se sob os gritos estridentes de um luar histérico e puseram-se novamente a caminho. O dia já nascia quando finalmente atingiram o destino programado pelo gordo mestre e Epicuro, trêmulo, e ainda meio bêbado, deixou-se levar pelas pernas e ser engolido pela abertura longilínea e elíptica na negra pedra, que o conduziu a uma enorme caverna, estranhamente iluminada por uma onda de verde flutuante que projetava sombras de todos os cantos. Repentinamente pareceu-lhe que a onda verde agigantava-se, ao mesmo tempo em que adquiria maior força (perceptível na própria pele) e velocidade e passava a descrever no ar rarefeito uma série de elipses sobrepostas, que o agitavam nas mais diversas direções, fazendo-o girar para todos os lados, em alternância enlouquecida e sucessiva, até que viu-se completamente suspenso, flutuando em meio a tudo.

Foi então que o verde foi escurecendo até transmutar-se por completo e projetar-se a sua frente um estranho e remoto mundo. Num único e violento jorro viu uma diminuta força transparente agitar-se numa vibração cada vez mais contundente e ir-se tornando cada vez maior e mais visível, até adquirir o aspecto de uma rubra e pastosa fogueira, que foi girando, girando e girando, até tornar-se uma esfera escalavrada azul e cinzenta, que se revelou a própria Terra primitiva.

Um chiado insistente e ensurdecedor, tomou então conta de seus ouvidos, a ponto de não entender uma única palavra do mestre Pancius, que gritava como doido em requebros, relinchos e coices de êxtase primevo. A frente de Epicuro se desenrolou por horas que duraram milênios e milhões de anos, uma torrente contínua, persistente e desgastante de chuvas, que desenrolou-se na paisagem de montanhas, vales, planaltos e depressões.

 A torrente incessante  penetrava cada vez mais e mais na terra, e na consciência de Epicuro, com uma força constante e envolvente, e ía cinzelando vagarosamente os contornos mais imprevisíveis sobre o solo, enquanto sua monótona e arrebatadora música ía forjando  profundamente todo os eventos vivos e dinâmicos dos milênios, milhões e bilhões de anos seguintes. Criando e cruzando histórias e personagens, imagens e abstrações mentais profundas e bizarras, que mergulhavam Epicuro até o fundo das águas, e além, até o núcleo líquido e incandescente, trazendo-o de volta à tona, e, por fim, projetaram-no numa encruzilhada escura, em meio da floresta, em que mal se via, sob um silêncio absoluto e aterrador, uma tênue fresta de luz à frente. Pancius, liberto de sua última missão (conduzir o imberbe discípulo narcisista às fraldas do nada), rebentou, num estrondoso tombo, junto à pedra da caverna, e seus cacos (que tornou-se, na queda, rígido qual estátua vítrea) reagruparam-se espontaneamente, até formar um chifre de ponta furada, que Epicuro, ainda semi-ínconsciente, juntou do chão e tocou reproduzindo a melodia da garoa eterna.

Gravataí, 16 de abril de 2011

Ubirajara Passos

O Espírito do Mundo


Vai publicado a seguir o resultado de um transe consciente induzido pelo vinho na última madrugada de sábado para domingo, que, apesar de todo seu formalismo, se pretende uma descrição da intocável “substância” empírica de tudo:

Animus Mundi

É madrugada intensa e indefinida,
Onda perdida entre outras tantas
Num vórtice eterno e aleatório,

E no silêncio atemporal e abstrato
Sinto insinuar-se o espírito do mundo.

Uma energia primeva e sem qualquer limite
Um nada auto-determinado,
Feito de imensos vazios,
Mas cheio de vontades,
Flui pela imensidão do espaço azul-escuro
E faz-se em cada coordenada
Os mais diversos seres e sentidos.

Não é um deus porque não criou nada
Nem fez-se superior árbitro, distante,
Dos destinos do resto universo.

Não é um reflexo complexo auto-consciente
De interações físicas imanentes
E determinante de mudanças pré-escolhidas,
Porque nem sabe formalmente de si mesmo.

Mas é uma pura e inciente vibração,
Uma agitação indefinida e ilimitada,
Uma vontade sem peias, nem tutores
Que vai suberventedo a estabilidade
Dos elementos estanques e sem graça
Da natureza e recriando a cada breve
E infinito instante a vida espontânea
E absolutamente irreverente!

Gravataí, 11 de julho de 2010

Ubirajara Passos

Inebriamento


Domingo, 23 de maio de 2010, realmente me rendeu uns quantos poemas, cada um mais besta do que o outro. Mas, na falta de coisa melhor, brindo os leitores com mais este, escrito já no final da tardinha:

Inebriamento

Apesar de domingo, havia um ar
Irresistível de sábado à tardinha.

Ventava forte e frio nos nossos rostos
E a luz do outono, coada no arvoredo,
Nos transportava aos mais estranhos mundos.

A ventania acariciava-nos o ouvido
Com o sussurro longínquo dos desertos

E tecia, artista intuitivo,
Aos nossos pés, sua tapeçaria
De folhas marrons e amareladas.

E a tudo envolvia um espírito estranho
De outras terras e eras já perdidas.

Ecoavam, débeis, velhos cantos
De caravanas milenares, profecias
Sorvidas no “chá forte” dos xamãs,

E líricas guitarras mergulhadas
No graal sacro da cuia de erva-mate.

Gravataí, 23 de maio de 2010

Ubirajara Passos

Até a mídia burguesa reconhece: o capitalismo é irracional e está no limite do insuportável!


Como anarquista não sou nenhum destes militantes socialistas ingênuos (nem um de seus matreiros líderes propagandistas de asneiras) para acreditar em análises políticas superficiais e espetacularistas, ou em simples fórmulas pré-estabelecidas, como aparenta o título provocativo desta crônica. Mas o fato inédito que, como se verá, sequer pode ser confundido com o mero puxa-saquismo do falso verniz socialista do governo do Inácio, parece justificar, desta vez de forma real e válida, a tese de que a opressão da massa de trabalhadores fudidos, de todas as camadas e matizes, atingiu tamanha intensidade (o que não deixa de ser verdade no fascismo informal do Brasil de hoje) que as consciências se libertarão na porrada das amarras que as mantém sob o jugo da safadeza alheia, da auto-submissão masoquista e da ignorância mútuas.

Desde piá (muito antes de aprender a ler e escrever) convivo com a presença do Almanaque do Pensamento, velho guia astrológico anual que publica, no Brasil, previsões e (como todo almanaque) artigos de curiosidades e utilidades os mais vários, há exatos 97 anos. Foi no do ano de 1982, por exemplo, que tomei, pela primeira vez um contato um pouco mais estreito com as previsões mileranistas de Nostradamus e outros, que alimentaram o meu misticismo ateu (podem crer: como contradição em pessoa, consigo ser simultaneamente anarquista e brizolista, racionalista e místico, predominando sempre a consciência livre e questionadora sobre tudo). Como quase todo esquerdista revolucionário, aliás, sempre nutri esperanças secretas e inconfessáveis de que os apolicapses da vida fossem uma obscura confirmação da da derrocada inevitável da sociedade hierarquizada e a assunção da igualdade e da liberdade absolutas para a humanidade.

Ocorre, entretanto, que, apesar das minhas suposições e interpretações íntimas, o referido almanaque jamais teve qualquer familiaridade com ideais de redenção da classe trabalhadora, se atendo sempre aos assuntos próprios do seu gênero e, sempre que abordou política, em suas diversas edições ao longo do tempo, reproduziu fielmente o discurso da mídia burguesa, se esmerando, por exemplo, em sua edição para 1972, na louvação mais descarada ao general gorila mais sanguinário e anti-povo dos que ocuparam o poder na última ditadura fascista formal , Emílio Garrastazu Médici.

Na página 2 da edição citada, pode-se ler no horóscopo para o Brasil referente ao quarto trimestre de 1972, por exemplo: ” Esse aspecto vaticina notáveis mudanças, favoráveis aos meios sociais e governamentais; haverá modificação nas ações do govêrno, porém sempre de modo acertado(grifo nosso); haverá igualmente melhora financeira e progresso nos assuntos relacionados com o poder judicial“.

Na edição para 1989, em pleno governo inaugural da ditadura informal (já promulgada a Constituição de mentirinha de 1988, para ser desrespeitada escancaradamente todo dia), na gestão do senhor feudal José Sarney, a rasgação de seda governamental e a falta de contato com a realidade efetiva é mais explícita e violenta ainda. Veja-se estes trechos:

“Haverá melhorias para a população de maneira geral, o que permitirá que as pessoas individualmente, vivam melhor, ainda que numa escala social maior tudo permaneça confuso e indefinido”;

“Ainda não haverá um acordo total entre o governo e os anseios da população, sendo necessárias algumas reformas que, até o final do ano, serão iniciadas (especialmente após o mês de setembro, mês em que é delineado um novo horóscopo anual para o país”;

“Até esse mês, as ações individuais (seja cuidando da própria vida, seja cuidando de negócios particulares), serão mais produtivas do que as ações conjuntas com o governo ou na dependência deste”; “Mas entre setembro e novembro a situação reverterá, dando impulso para uma fase nova e produtiva do nosso país” (casualmente se elegeria o mais badalado corrupto esquizofrênico – ainda que não tão eficaz na corrupção quanto o Inácio – o Fernandinho do Pó).

Já na edição para 1991, em plena era Collor, a coisa assume ares defintivos de defesa do regime vigente e das análises econômicas falcatruas do neo-liberalismo fernandiano:

“O ano de 1991 começará de forma muito positiva para os brasileiros, pois devido a bons aspectos da Lua progressada, a população como um todo terá melhores  condições de saúde, higiene, alimentação e trabalho”.

“Nos meses de janeiro e fevereiro a população receberá essas condições de vida, através de acordos feitos tanto com o governo quanto com a classe empresarial”.

“Os trabalhadores terão momentos difíceis nos meses de junho e setembro, quando poderão sofrer uma diminuição de salário, ou alguma forma de dificuldade financeira. Mas o mês de julho trará uma melhoria significativa no âmbito econômico, de forma a contrabalançar possíveis prejuízos”(grifo nosso).

No último trecho das previsões para aquele ano a epifania governista  atinge o auge do orgasmo astral: “O país será governado de forma estável e forte por seu dirigente máximo, dando continuidade à sua maneira de governar, desde que assumiu a Presidência do país”.

No ALMANAQUE DO PENSAMENTO 2010 (98º ano), entretanto, para espanto absurdo de quem tenha acompanhado a publicação ao longo das décadas (de que dei apenas 3 exemplos clássicos, haveria muitos outros entre os volumes que possuo em minha coleção) o discurso mudou diametralmente, a ponto de fazer tremer o menor pentelho (como diria, e escreveu certa feita no jornal do Sindjus-RS, o Lutar é Preciso, o meu amigo Moah, para escândalo dos diretores pelegos de plantão).

Nas previsões de caráter mundial  pode-se ler, por exemplo:“Um Vislumbre de 2010”(…) “Haverá protestos da população no mês de janeiro, e depois de abril a setembro”

“Independentemente das medidas políticas adotadas pelo governo, a situação econômica e financeira do país se revelará insatisfatória. O aumento de taxas e impostos cria insatisfação na população.”

“A partir da primavera tudo será questionado e até dezembro o mundo viverá um período de calma de pouca duração.”

“O ano se encerra numa atmosfera de lentidão: tanto os jovens como as pessoas idosas terão bons motivos para demonstrar sua insatisfação (…)

Já nas de caráter nacional, o compromisso com a realidade econômica e social concretas (e não a interpretação distorcida da imprensa submissa aos interesses da classe dominante) se faz plenamente presente:

Horóscopo para o Brasil no ano de 2010″

…) “O cenário macrocósmico estará dramático: quatro dos cinco planetas coletivos  estarão se relacionando de forma tensa no céu e nos primeiros graus dos signos cardinais, considerados por um lado como criativos, heróicos e renovadores, mas também impulsivos, bélicos e explosivos. A última vez que uma configuração semelhante ocorreu foi nos anos 30 e nos deixou como legado daquela época a queda da bolsa de Nova York, alguns golpes de estado, falências bancárias, redução drástica do comércio mundial, graves índices de desemprego, invasão da Manchúria pelo Japão, emergência de regimes totalitários, criação da bomba atômica, desmoronamento do liberalismo econômico na Europa. É claro que houve mudanças positivas, mas não são delas que nos lembramos.  E agora, o que podemos esperar? Um período de desafios sem semelhantes e de mudanças radicais para a humanidade e para o planeta.”

No parágrafo abaixo a coisa se aprofunda e assume o caráter nítido de análise socialista do mundo e da história humana:

“Na verdade, o paradigma em que nossa civilização mergulhou parece estar falido. Desde a Revolução Francesa vimos sendo orquestrados pela batuta de uma classe que chegou ao auge da dominação econômica e detém 95% dos principais ramos da economia e da sociedade atuais: o bancário, o do petróleo, o armamentista, o da mídia/comunicação/tecnologia, o químico/farmacêutico e o religioso. São muito poucos os indivíduos que dominam os 6,5 bilhões de seres humanos carentes e ignorantes da sua existência e atuação sem escrúpulos e sem ética. O estágio de incivilidade e de insustentabilidade que atingimos só tem sentido sob a ótica deles, do consumo, do poder ou do abuso do poder desses setores e classes dominantes. Atingimos o máximo que o racionalismo pôde chegar, fomentado pela ganância e pela sede de poder dos que estão por cima. A civilização contemporânea está de luto pela morte dos sentimentos, pela perda de sentido e pela ausência de significado que atingiu. Os aspectos que estão por vir, inaugurados por Plutão em Capricórnio, derrubam velhas e rígidas estruturas, porém são tremendamente criativos e e nos estimulam à reconstrução de uma nova sociedade, de uma nova estrutura, que partirá do físico, do básico, do concreto, do alicerce.(…)

Se o leitor já se encontra apavorado com o salto mortal do posicionamento ideológico e filosófico, leia então os trechos que se seguem, encharcados na mais pura e engajada propaganda revolucionária:

“É claro que o Brasil não poderia ficar à margem destas grandes mudanças. No entanto, por aqui as transformações serão mais concentradas nos aspectos político e social do que no econômico. Economicante, o Brasil parece estar bem, parece estar forte e deve atravessar a crise econômica mundial sem grandes percalços. No entanto, não esqueçamos que estamos num contexto e que o mundo está em crise. Mas é politicamente que por aqui não sobrará pedra sobre pedra e que finalmente chegou a hora dos velhos caciques da oligarquia brasileira darem lugar ao sangue novo, ao empreendedorismo, à criatividade e à juventude que intenciona replantar uma sociedade em bases mais justas, éticas e sustentáveis. O ano de 2010 representará uma quebra de paradigma na civilização humana e a tensão celeste ativará bastante o mapa natal do Brasil: assistiremos mudanças radicais ocorrerem nos poderes legislativo e executivo do nosso país, com direito a descobrirmos toda a corrupção e bandalheira que existe por trás destes poderes. Assistiremos ainda a verdadeiras convulsões  sociais, fruto do aumento do aumento da violência urbana e da indignidade do povo brasileiro que não aguenta mais tanta fome, miséria e injustiça.”

(…) Devemos agradecer por estarmos vivos neste momento tão importante da história humana, pois poderemos assistir o Brasil e o mundo se transformarem a olhos vistos”.

Confesso que a natureza da profecia é entusiasmante e fez a mim e ao Alemão Valdir (para quem enviei, no mês de janeiro, por e-mail, os trechos de 2010 reproduzidos) delirar em transe místico-anarquista por semanas. Mas, a parte a validade científica das “previsões”, o fato é que temos pela frente um fenômeno extremamente original, que não se explica nem por uma pretensa orientação vermelha da redatora dos textos (cujo site acessei e pude verificar não justifica tamanha verve revolucionária, ela até se pretende assessora esotérica de empresários). E que só pode ter uma única justificativa cabal: a pressão concreta da voracidade e do sadismo do escravismo assalariado no Brasil, e quem sabe a nível internacional, atingiu um limite tão absurdo que a própria imprensa burguesa baba-ovo, prenunciando (não pelos métodos mágicos ou paranormais, mas pela simples sensibilidade sócio-antropológica, que, talvez seja facilitada no âmbito dos profissionais da astrologia e outras práticas místicas) o estouro da boiada e a revolta generalizada contra tais condições, já está tratando de se adequar aos novos tempos, abandonando os capitães do mato de luxo da classe dominante (leia-se políticos e ideólogos de todo tipo, a começar por sacerdotes de tudo quanto é culto).

Talvez não vejamos realizado nem um centésimo do furor revolucionário previsto, e a alteração diametral de posição do anuário seja apenas um fato a ele restrito. Mas, como diz o próprio texto reproduzido, tal aceitação tão escancarada da realidade política e social, tal qual ela é, e vem sendo denunciada pelas gerações de revolucionários, é, no mínimo,paradigmática!

Ubirajara Passos

Submergindo na Inciência


Após quase dois anos sem escrever uma única palavra neste livro eletrônico, embalado neste renascer de primavera (que continua insistindo em ser inverno, os termômetros registram 14º C neste momento), resolvi dar seqüência, hoje, à fábula Erótilia. Segue aí mais um pequeno capítulo:

Submergindo na Inciência

Nos dias que se seguiram, mestre e discípulo imergiram totalmente nas brumas alcoólicas, e, porre após porre, ressaca, após ressaca, Pancius foi instruindo Epicuro nas artes do desapego absoluto e do desprendimento dos hábitos de comportamento automáticos e auto-limitantes. Todas as rotinas imóveis e encarceradoras de postura, todas as etiquetas, do falar, do comer, as dissimulações hipócritas do modo de olhar e de falar, as regras da rigidez nos gestos íntimos ou públicos foram colocadas em questão e demolidas. Não pelo discurso racionalista. Nem pelas exortações panfletárias e milenaristas dos místicos revolucionários. Mas justamente pelo descontrole pessoal das situações, o deixar-se levar e o rompimento fisicamente obrigatório com os “bons modos” e a autodisciplina.

Jogado num turbilhão incontrolável de vinhos, cervejas e destilados de ervas amargas e aromáticas, o noviço pagão perdeu completamente a vontade própria, conduzido pelo cansaço físico e a confusão de estados d’alma. E o gordo mestre tratou de ensinar-lhe então o prazer ou a simples satisfação de vomitar-se todo, no auge da bebedeira. De mijar na toga, cagar em qualquer canto de floresta, rolar-se no chão e sujar-se, caminhar pelado na chuva, comer qualquer fruta achada pelo caminho, com as mãos embarradas da terra mãe, e simplesmente respirar, comer e viver segundo as pressões imediatas do corpo, da luz solar e da escuridão, dos ventos, do calor tórrido e das neblinas.

No nono dia de “loucura mansa”, quando Epicuro se encontrava absolutamente envolto nas ondas do inconsciente, e preparava-se, extenuado, para dormir uns bons três dias sem intervalo, Pancius o acordou, seis horas enjoadas de uma madrugada de outubro e o conduziu para um banho gelado no lago local, o fez vestir-se impecavelmente e pôr-se em marcha por uma trilha pedregosa e completamente cerrada de mato, enormes troncos e cipós de ambos os lados.

Ubirajara Passos

Auto-Definição de um Bêbado Megalomaníaco em Viagem de Ônibus (iniciada à meia-noite) entre Porto Alegre e Santa Rosa


Muito leitor sarcástico e gozador, senão intelectualóide e amargurado, deve estar pensando que o título deste texto, pela seu tamanho quilométrico, deve ser maior que o próprio. Entretanto, umas trinta e seis horas depois de escrevê-lo, ainda meio bêbado, a bordo de uma tartaruga que atende pelo nome de Viação Ouro e Prata, não encontrei outro melhor para o soneto “heterodoxo” que segue:

Auto-Definição de um Bêbado Megalomaníaco em Viagem de Ônibus (iniciada à meia-noite) entre Porto Alegre e Santa Rosa:

Eu venho da noite profunda das eras
Que o tempo escondeu entre névoas eternas.

Eu venho do azul quase negro gravado
No fogo confuso das lutas inglórias.

Eu venho da curva onde o vento perdeu-se.
Venho do oculto pulsante sem nome,
Da força infinita que vibra, tão ínfima,
Desde o velho “sempre”.

Venho do escuro, do nada, do pouco,
Do velho, o esquecido, do sem importância.

Sou o canto do beco sem rumo onde o Diabo
Nem perdeu as botas, porque não as tinha,
E deixou à brisa, flanando, sem cor,
O rastro rasgado de um pensamento.

Rio Grande do Sul, 21 de fevereiro de 2009

Ubirajara Passos

UMA IMAGEM VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS


Eu e Kadu em êxtase dionisíaco regado a cachaça, num amanhecer de quinta-feira, durante as férias de janeiro passado:
 O_CULTO_
O doido do “Caiu-sim-mermão” (que agora posso chamar, simplesmente, de Kadu, pois todo mundo que o conhece está aí vendo a cara de pau e o sombreiro “del Tripierna de Tihuana en la noche de la gran penumbra sexual”, conforme ele mesmo se auto-qualificou e ao seu desempenho com as “moças de vida airada” naquela madrugada) postou esta foto em seu orkut uns cinco dias depois da farra, sob a legenda “Bira e eu depois de beber MUITO chá de cogumelo”. E então eu já não me lembrava dela (DDA ou amésia pós-porre?) e levei um susto! Não pela irreverência da coisa, que apesar da minha rabugice nata, povoa boa parte dos meus dias. Nem pela cara de doido, a língua de fora, o gesto da mão (que não é um sinal de “ok”) ou a enorme caneca que seguro (que contém, evidentemente, a pinga de uma garrafa plástica de “Velho Barreiro”).

O espanto ficou por conta da atitude “arquetípica” estampada na minha tresloucada figura (que não pretende ser uma versão encachaçda da famosa foto do Einstein). Ali está simplesmente, em carne e osso, a mais perfeita encarnação de um sátiro (que nem uma velha estátua ou alto-relevo medieval ou greco-romano figura tão perfeitamente), assemelhada a um deus maia. E resumidos num único ser as energias vitais da paixão boêmia e bêbada, do prazer pueril e “mal-criado”, do divino humor enlouquecido e do feroz deboche a toda seriedade opressora e limitante que nos impõe o sofrimento como regra.

Evidentemente, não represento tudo isto – neurótico e auto-limitado que sou, num mundo de permanente vigilância e suplício das criaturas. A minha rebeldia é, invariavelmente, maculada pela timidez e o medo sobressaltado da punição imposta pelos algozes da sociedade anti-prazer. Mas a figura traduz nas entrelinhas muito mais que mil palavras.

E, antes que o Kadu reclame do meu panegírico narcísico, fique registrado: este Zé Pelintra clássico em mim incorporado não traduziria toda esta significação simultaneamente carnavalesca e revolucionária, libertária e farsesca, sem o complemento do gigante do chapéu (e sua versão americana do gesto pornô brasileiro). Somos nesta foto o diabo e o capeta embalados no etanol de cana.

Ubirajara Passos

 

O Mestre Pancius de Goró e Línguas


A total falta de saco me impediu de escrever, hoje, qualquer texto teórico ou as pauladas, necessárias e adiadas, sobre o projeto federal de quebra da estabilidade dos servidores públicos e a cretinice da diretoria pelega do Sindjus-RS frente ao autoritarismo do Tribunal de Justiça – que, aliás, bloqueou o acesso dos servidores, no local de trabalho, a este blog, – o que se constitui em censura, por óbvias razões políticas – e, estranhamente, a sites listados no “blogroll” sem nenhuma relação com as questões da instituição, como o Blog d’Arkan Simaan (ilustre físico libanês radicado no Brasil desde os dois anos de idade – ou seja, brasileiro nascido no Líbano -, professor universitário, com livros publicados, na França desde os anos 1970!). Parece que seu passado revolucionário, em decorrência do qual, durante a ditadura gorila de 1964, teve de se exilar na Europa, se tornou algo explosivo e inadmissível para a justiça gaúcha… a partir do momento em que viu seu nome associado – por mera listagem no “Bira e as Safadezas…” – ao pobre “subversivo” que sou! (e, ao que parece, cometi um crime não previsto na “Constituição Cidadã” de 1988, e rechaçado pela Declaração dos Direitos Humanos da ONU: o crime de opinião!)

Mas, questões políticas a parte, somente a inspiração da “fada verde” possibilitou-me escrever mais um capítulo da fábula Erótilia, que vai a seguir transcrito:

 

O Mestre Pancius de Goró e Línguas

A gorducha criatura rodopiava enlouquecida (parecia um buda cocainado) e, quando viu o “noviço” desperto, se pôs a bater palmas e gritar entusiasmado:

– Queres fuder? Queres fuder? Queres fuder? Queres fuder? Queres fuder?…

– Zeloso mestre, que história é esta? Com vosso mantra estás é a me fuder a paciência! Podeis dizer-me onde me encontro? E o que é da minha túnica?

– Vamos fazer uma festa? Vamos fazer uma festa? Vamos fazer uma festa?

– Só se for com vossa genitora, guru ensandecido! (Epicuro começava a irritar-se e mal continha a xaroposa formalidade de neófito dogmático)

Pancius estacou de chofre, e com os olhos esbugalhados, encarou o discípulo, resfolegando como um touro, negaceando a cabeça como um doido furioso e, à vista do piá, que correu aos tropeços para trás de uma coluna granítica, quase se cagando, num gesto brusco levou a mão ao bolso e sacou de um bornal de vinho!

Vamos chamar umas putas? – E, entornando vinho pela barba grisalha, começou a berrar aos quatro ventos, enquanto dançava saltitando:

-Buuuundaaaaaaaaaaaaaaa!Tetinha,tetinha,tetinha!Buuuundaaaaaaaaaaaaaaaa!!!…

Dançarinas semi-nuas (vestidas apenas com um tapa-sexo) de todas as “pelagens” (loiras, ruivas, morenas, negras e amarelas) despencaram de trás das árvores, saltitando ao som de flauta, e se puseram a rodar com o pirado monge ao centro, que se atirava sôfrego aos seus seios e, entre uma mamada e outra, enquanto apalpava as doces fêmeas, disparava:

– Buuundaaaaaaaaaaaaaa!!! Tetinha, tetinha, tetinha!!!

Epicuro, entusiasmado, empertigou-se, e já ia metendo a mão em uma tigresa negra, as outras lhe apalpando o “cetro” enorme com gritinhos de que “coisinha lindinha e fofinha!”, quando foi detido por dois enormes guardas com cara de mongóis, pelados e de falo em riste, que lhe suspenderam pelos braços, enquanto Pancius dispensava as raparigas.

– Podeis lançá-lo ao solo agora! – E Epicuro, num tombo estrondoso, esparramou-se no chão, erguendo-se com dificuldade, enquanto os gigantes se afastavam e o gordo mestre, descobrindo o capuz, se apresentava:

– Sou Pancius, teu instrutor nos primeiros passos para a iniciação à nossa crença. Comigo aprenderás, estabanado “noviço”, as artes do goró e das línguas…  do nosso idioma ao bom uso que faz o teu degustador órgão do paladar na doce xana de uma fêmea da espécie humana! Antes de qualquer prática mística, terás de apreender os mistérios do teu corpo e da tua mente, e antes de usares a dura vara digna do futuro Príapo, terás de aprender como propiciar ao rubro coral mulheril o que muitas vezes não consegue o teu “cajado”, usando a mole e escamosa “cobra” que te roça o céu da boca!

– Excusai-me, mestre, sou um mancebo ignorante de mulheres e sério amante da sabedoria, e até há pouco nunca hei visto semelhantes maravilhas! Mas creio que ao calor de vossa excitante música libertei-me de minhas amarras racionalistas e xaroposas e junto a vós hei recebido a luz! Deixai voltar as linda pombas-rolas da verdade e vos demonstrarei o quanto já me inclino a aprofundar-me nos insondáveis e intensos mistérios da Deusa!

– Ouvi-me, ó imberbe e estouvado noviço! Fostes achado junto à Cascata Plenilúnica, com metro e meio de língua para fora, a babar-se e interferir no equilíbrio da montanha. Nossos guardas vos trouxeram através de um túnel incógnito, a que só tereis permissão de percorrer de volta quando estiverdes devidamente liberto de vossas justificações conscientes. A deusa e seus segredos estão mergulhados no mais profundo da espontaneidade e só após, pelo cansaço da atenção que julga, teres perdido todo cálculo mental pré-meditado, podereis atingir o âmago da energia que é vossa essência e a mãe do movimento de todos os seres! Mas para isto é necessário aprender paciência! Não desejar, nem tomar decisões pensadas e pesadas, mas agir por pura inércia e inspiração sensível. Antes de provardes dos prazeres do supremo gozo e da transmutação recíproca é necessário o desapego e o mergulho na torrente sem encilhas do universo! Assim, te dou a primeira lição do vosso aprendizado: Vamos tomar um goró! Vamos tomar um goró! Vamos tomar um goró! Vamos tomar um goóóóóóóóóóóó!!!

E, fazendo-o sentar-se na relva, Pancius serviu-se, e ao iniciado, do tinto líquido, até desmaiarem ambos de tanta beberagem, e mergulharem nos misteriosos caminhos do princípio eterno e inominado de tudo!

Ubirajara Passos