Histórias de “Visão”


Os três curtiam a tarde modorrenta de final de outubro ao pé de um chopp, numa mesa em plena calçada, no velho bar que freqüentavam há mais de dez anos, na rua Andrade Neves, centro histórico de Porto Alegre, quando o mais novo, quarentão emérito, o baixinho descendente de portugas, afastado em “licença-prêmio” da boemia desde que o casamento, o nascimento da única filha e a falta de cobres lhe impediram a continuidade da carreira noturna (que, volta e meia, retomava, sem muito sucesso), apontou pra rua e perguntou:

Tão vendo aquela gatinha ali? Não tivesse passado já uns doze anos e eu ía jurar que era a Regina – o “fantasma da meia-noite” que atacava na Vigário, toda madrugada. Dengosa, as fantásticas coxas a mostra, fazia beicinho e nos convidava com aquele ar de cachorro pedindo osso: “Vamos”? Caí uma vez na besteira de aceitar a sugestão e me dei mal. O tipo era frio como a estátua do Júlio de Castilhos sentada naquele monumento ali na praça da matriz. Três horas da manhã, eu bebaço, mas aceso, metendo a vara em ritmo de capoeira e a tia, de bruços, aquele bundão redondo e enorme, nem te ligo. Não emitia nem um suspirinho, uma calma de papa-defunto em plantão, examinando as unhas das mãos pra ver se estavam bem feitas. Só faltava lixá-las ou ler a revista do Tio Patinhas…


– Tá louco! – atalhou o gringo gigante cinqüentão, que sempre invejou a malandragem do baixinho, mas nunca teve coragem de comer nem aquela amiga fogosa e meio louca, companheira de movimento sindical, nem naquela vez em que dormiram, por razões de economia, na mesma cama em hotel vagabundo no interior do Estado (tudo que fez foi gaguejar e enfiar um rivotril debaixo da língua, pra não morrer de ataque de pânico, quando a beldade, só de camisola, transparente, passou por cima dele, as pernas bem abertas, pra se deitar do outro lado da cama) Eu, agora dei de ver fantasma em pleno DRH, de dia claro! Sabe aquele tribufu petista que trabalhava no serviço social do Foro (coisa feia de se ver – a múmia da vó do Tutancâmon era miss perto daquilo)? Me apareceu vibrante com outras coleguinhas, ontem, lá, pedindo uma certidão de tempo de serviço. Juro que quase perguntei se tava encarnada ainda!

Cabia perguntar! Vai que era ectoplasma ou pura alucinação!

O comprido caiu na gargalhada, com a piada do baixinho, e quase se engasga com o bolinho de bacalhau.

Eu, se vejo uma coisa destas, em plena luz do dia, sem ter tomado um único gole, vou correndo pro psiquiatra pedir um remedinho!


Mas nem bem ela saiu dali e apareceu o Agenor, magro como caniço de pesca… Tá com problemas no fígado o coitado, parece que vai ter que se operar…

Tem certeza que tu não tá trabalhando na funerária?

Íam neste passo, encadeando a sessão de fofocas e tiradas gaiatas, quando o “alemão batata”, de porte e idade intermediária entre os dois outros, que ouvia tudo calado, distante, a cara enfiada no copo de chopp, parecendo enamorado do líquido dourado, disparou:

Pois eu estava aqui ouvindo vocês e pensando: falo ou não falo? Não quis interromper, mas não me aguentei. Vocês falando aí o tempo todo em visões fora do comum e eu me lembrei do que me aconteceu ontem à noite. Sabe que descobri uma fórmula mágica pra curar vista fraca? Tava uma engronha entender um e-mail de letrinha miúda, coloquei um velho par de óculos para ler na tela do computador e, de repente, estava tudo bem. Enxerguei perfeitamente, afinal estava de óculos. Só que agora me dou conta de que o óculos era pura armação, não tinha lentes.


Ubirajara Passos

A guilhotina é eficaz, mas a paulada é mais emocionante!


Há uns quatro meses atrás eu e o alemão Valdir publicamos neste blog a mais sincera (e gaiata) homenagem ao ilustre inventor da guilhotina. Instrumento que, não fosse um certo exagero no uso (o próprio chefe do governo revolucionário, Maximilien Robespierre, responsável pela sua utilização em milhares de contra-revolucionários, acabou tendo a cabeça decaptada por seus adversários), teria definitivamente feito a felicidade da França revolucionária setecentista.

Começamos a ouvir, então, reclamações de todos os lados entre nossos colegas de trabalho e/ou companheiros de trago. Segundo a maioria deles, o uso da guilhotina era uma forma muito brutal e desumana de eliminação da classe dominante. Para não dizer radical, hidrófoba e psicopata! Logo nós, ferrenhos opositores da peste emocional, defendendo tal barbaridade!

E tanto ouvimos que acabamos por concordar. Realmente, apesar de completamente eficaz (visto que impede qualquer espécie de ressuscitamento), o ato de separar a cabeça do corpo de um burguês tem um terrível problema. Ao menos para quem, além da simples simpatia teórica pelos ideais socialistas, anarquistas ou revolucionários populares em geral, tenha sofrido no próprio couro a ação da burguesia e desenvolvido, em conseqüência, aquele salutar ódio físico pela classe opressora.  E o problema, sem nenhum matiz sentimentalóide e “piedoso”, é que a guilhotinada não tem graça nenhuma. É só colocar a cabeça do filho da puta responsável pela morte em vida, a vida sem graça e sofrimento, de milhares de trabalhadores, debaixo da lâmina, puxar a corda e pum! Está acabada definitivamente a festa. Assim, sem mais nem menos e sem diversão quase nenhuma.

É claro que se pode eventualmente ver a “vítima” se tremer, gaguejar e se cagar toda a caminho do patíbulo, mas a verdade é que, na hora da execução,  tudo se reduz a um ato sem imaginação nenhuma.

Assim, a verdade, é que, ainda que nem tão eficazes (dependendo da competência dos carrascos), mas certamente bem mais emocionantes, há métodos populares de execução da burguesada e de seus lacaios semi-feudais que permitem, além de tudo, o exercício coletivo, participativo e desestressante da justiça revolucionária por um bom bocado de companheiros inspirados nela.

O fuzilamento (ou “paredón”) e o enforcamento são bem mais entusiasmantes que a decaptação. Mas ainda guardam um certo distanciamento físico entre a massa popular indignada e os ex-algozes justiçados. Além de se cingirem a carrascos especializados, que saibam atirar ou puxar a corda de forma eficiente.

A lapidação (em linguagem direta e popular: morte a pedrada) já permite um alto grau de participação da multidão vingada, sem maiores requisitos de força ou perícia, dando a oportunidade pluralista e democrática de seres humanos de todos os tamanhos, massa física, idade ou ocupação de jogar do simples seixo (pedrinha para os não eruditos) até uma laje inteira no filho da puta do ex-opressor. Permite inclusive que o antigo “amo” cretino sofra o suficiente, até morrer, para sentir um bocado do que impingiu aos seus ex-escravos assalariados com sua dominação. Mas ainda não é perfeita em termos de contato físico com o lombo do ex-carrasco capitalista, já que a pedra é normalmente jogada à distância. E tem o inconveniente de ser reivindicada como prática simbólica exclusiva das religiões abraâmicas (notadamente o antigo judaísmo e o derivado de seu sincretismo com o cristianismo: o islamismo corânico).

Método bom mesmo, que preenche todos os requisitos simbólicos, psicológicos, técnicos e ainda permite “meter a mão” com todo o espetacular arrebatamento no desgraçado ex-senhor de bens e escravos assalariados, é a velha execução a paulada (conhecida no meio político como “corredor polonês”). Nela é possível se exercitar bastante, com toda a proximidade, a fúria justiceira contra a classe sádica que nos pisa diariamente a cabeça e nos infelicita a vida, a nós pobres peões assalariados, além de garantir que cada ossinho destes requintados algozes político-sociais seja devidamente quebrado, não havendo escapatória quanto ao resultado em termos de morte e sofrimento. E é espetáculo completo. Podemos nos regozijar desde a visão do antigo “senhor” berrando, se borrando ou esbugalhando os olhos até o prazer irrenunciável de lhe sovar bem o lombo com toda merecida e guardada raiva furibunda, acumulada durante anos e mais anos de vida inútil, bestializada e sofrida debaixo de seu tacão. Esta fantástica prática foi, inclusive, imortalizada por Hemingway, em seu romance sobre a Guerra Civil Espanhola (1936-1939), “Por quem os Sinos Dobram”, na narrativa da cigana Pilar:

“em todas as janelas e sacadas havia pessoas aglomeradas, e duas colunas de homens através da praça, desde as escadas do Ayuntamento, mais a multidão apinhada na rua, próxima das janelas do prédio, e havia também aquele alarido de muitas pessoas falando ao mesmo tempo, e de súbito ouvi alguém gritar:   Aí vem o primeiro!’ Era Dom Benito Garcia, o prefeito, cabeça descoberta, caminhando vagarosamente da porta para o alpendre, e nada aconteceu; caminhou entre as colunas de homens com manguais, e nada; passou por dois homens, quatro, oito, dez e nada, caminhava de cabeça erguida entre aquelas duas paredes de homens, a cara gorda, piscando e virando alternadamente os olhos para os lados e mantendo o passo. E nada aconteceu.

De uma sacada alguém gritou: ‘Qué pasa, cobardes?’ Qual é o problema, covardes e Dom Benito continuava a caminhar entre os homens sem nada acontecer. Então eu vi um homem, três corpos abaixo de onde eu estava, com a cara transtornada, mordendo os lábios, as mãos pálidas no mangual. Ele fitou Dom Benito, acompanhando-o com os olhos no que ele vinha em sua direção. Até então nada sobreveio. De repente, um pouco antes de Dom Benito emparelhar com este homem, o sujeito levantou seu mangual tão bruscamente que atingiu o companheiro mais próximo, e desceu uma porrada em Dom Benito, no lado da sua cabeça. Dom Benito olhou para e o homem lhe deu outra pancada gritando: ‘Toma, Cabrón!’ e a pancada acertou a cara de Dom Benito, que levou as mãos ao rosto, e os outros começaram a bater nele até ele caiu, e o homem que tinha começado segurou Dom Benito pelo colarinho da camisa chamando os outros para ajudá-lo, e os outros o pegaram pelos braços arrastando sua cara na poeira da praça até a borda do penhasco, e o atiraram lá embaixo, no rio. O homem que o agrediu primeiro ajoelhou-se na beirada do penhasco olhando ele cair e gritando: ‘O Cabrón! O Cabrón! Ah, o Cabrón’ Era um tenente de Dom Benito e os dois nunca se deram bem. Tinha havido uma disputa por um pedaço de terra, próxima do rio, que Dom Benito tirou desse homem e deu a outro, e desde então aquele homem tinha raiva do prefeito. Este homem não voltou à coluna. Sentou-se na beira da escarpa e ficou olhando o lugar onde o corpo de Dom Benito tinha caído”.

Antes de encerrar esta “sanguinária crônica”, entretanto, é necessário fazer uma advertência: não defendemos, nem achamos graça nenhuma no extravasamento físico da reina fascista, seja ela direitosa ou vermelha (ainda que sempre peste emocional). Especialmente quando ele se dá através do arremesso de rolos de fita crepe ou bolinhas de papel!

Ubirajara Passos