Há exatos 53 anos, em 23 de agosto de 1954, ocorria a última reunião ministerial de Getúlio com seus ministros, que se estenderia pela madrugada de 24 de agosto, em meio à crise gerada pelo assassinato do Major Vaz, puxa-saco do representante maior do imperialismo americano, Carlos Lacerda (típico exemplar do fascismo histérico-moralista e ex-comunista convertido ao pior conservadorismo) em atentado pretensamente dirigido contra o último, segundo a sanha lacerdista pestilenta, a mando de Getúlio (o que nunca foi comprovado e era a mentira de que os capachos da burguesia americana precisavam para mobilizar, pela via do moralismo arraigado culturalmente, a população contra o governo nacionalista e popular).
Na manhã do dia seguinte, diante da pressão dos milicos golpistas de extrema-direita, de cabeça feita pelos yankees na Força Expedicionária Brasileira – a FEB – nos campos da Itália, no final da segunda guerra mundial (os mesmos que deram o golpe de estado em 1º de abril de 1964, inaugurando o Brasil triste e miserável que vivemos), que exigiam sua renúncia, Getúlio se suicidaria com um tiro no peito, causando a reação comovida e dolorosa das multidões de trabalhadores Brasil a fora, e evitando (pelos dez anos seguintes) o golpe dos imperialistas histéricos. Em Porto Alegre a multidão enfurecida chegou a depredar os jornais da oposição direitosa (como os “Diários Associados” de Assis Chateaubriand).
No enterro de Getúlio em São Borja, sua terra natal, no dia 25 de agosto, o ministro Oswaldo Aranha (companheiro que o acompanhava na vida política desde a época do governo castilhista de Borges Medeiros no Rio Grande do Sul, nas décadas de 1910 e 1920, que preparou com ele, como grande articulador, a Revolução de 1930 e foi seus ministro diversas vezes nos anos seguintes, que ficaram conhecidos na História como a “Era Vargas”,1930-1945 e 1951-1954, tendo presidido, como representante do Brasil, a ONU em 1947, ano em que a organização reconheceu a constituição do “Estado de Israel”) aos prantos, proferiu o discurso que transcrevo abaixo, que além da profunda humanidade é um depoimento íntimo de quem lutou vida a fora ao lado de Getúlio Vargas pela independência econômica do Brasil e e a libertação de seus trabalhadores. É bom lembrar, quando se avizinha a reforma trabalhista e sindical do ex-sindicalista Luís Inácio, que pretende revogar os mínimos direitos que os escravos assalariados ainda têm para protegê-las da sanha exploratória e sádica da classe dominante, que foi Getúlio, em plena ditadura do Estado Novo, que deu corpo legal e efetivo, em 1943, à única legislação trabalhista nacional que merece este nome (e que hoje já se encontra deformada por décadas de ditadura fascista e seus sucessores “democráticos”, mas mesmo assim o Inácio quer revogá-la). Vamos ao discurso:
“Getúlio,
Não era possível os teus restos serem recolhidos ao seio maternal de tua terra sem que antes, tendo contigo vivido os últimos dias de tua vida, eu procurasse, ante a eternidade que nos vai separar, conversar contigo, como costumávamos conversar, nos nossos despachos, sobre a vida, as criaturas e os destinos do Brasil. Não sei se, neste instante, poderei conversar contigo como outrora conversamos. Eu estou, como todos os brasileiros, constrangido, dolorido, ferido na alma, ao ver que te arrancaram a a vida aqueles que te deviam conservar para melhor sorte do povo e do Brasil. Quero que Deus me dê, neste instante, um pouco da tua mansidão, um pouco da tua bondade e generosidade, para que nós possamos suportar neste transe, quando já no horizonte do do Brasil, na sorte do povo e no futuro de nossa Pátria, já se carrega de nuvens negras da insegurança e da violência. Disseste que só o amor constrói para a eternidade, e este teu amor será aquele que vai construir o Brasil. Não há quem tenha forças nem poder para trocar o amor que está no coração dos brasileiros e não tenha forças e poder para mudar os destinos desta Pátria contrariamente às suas tradições, pelos golpes da ilegalidade, da traição e das armas. Neste momento, Getúlio, conversando com aquela intimidade boa e generosa com que nos entendíamos, quero te dizer que o povo todo chorou, chora e chorará por ti, como nunca imaginei pudesse um povo chorar. Se é verdade aquilo que se disse, quando morreu um grande homem da História que orgulha todos os sul-rio-grandenses, quando morreu Castilhos; se é verdade o que disse Pereira da Cunha, numa hora de emoção, declarando que, se houvesse um processo para a cristalização da lágrima, o túmulo dele não seria de mármore, eu te diria que se houvesse esse processo para a cristalização da lágrima, tu não te enterrarias no fundo da terra de São Borja e do Rio Grande, mas na mais alta montanha da geografia política do Brasil, porque nunca se chorou tanto, nunca um povo foi tão dominado pela dor ao perder um filho, como neste instante o povo brasileiro diante de tua morte.
Getúlio,
Saímos juntos daqui há vinte e tantos anos; íamos todos levados pelo teu sonho e teu ideal. A tua filosofia era inspirada nos humildes, nos necessitados, na assistência de quantos viviam à margem da sociedade brasileira, espalhados por esta imensidão, por estas terras abandonadas e abandonados eles também em suas terras, os trabalhadores. Todos tínhamos um só sonho: era integrar o Brasil em si mesmo, era fazer com que o Brasil não pertencesse às classes dominantes, aos potentados, ou poderosos, e que entre nós existisse, pela condição humana, de pobres e ricos, maior igualdade e fôssemos todos igualmente brasileiros. A preocupação dominante da tua vida eu não direi que era fraternal, direi que era material, porque eu o testemunhei: o teu ideal era dividir igualmente entre todos os seus filhos o carinho, o amor e a possibilidade de assistência, de vida e de futuro. O que mais te feria eram as discriminações, as separações, era este contraste horrível que só não emociona os homens que não têm formação cristã e faz com que enquanto uns vivam no gozo, no luxo e na grandeza, outros se afundem na fome, na miséria e no desespero. Conheci o teu íntimo, como talvez poucos homens puderam conhecer, porque, entre os grandes títulos de minha vida, um dos maiores era a confiança do teu pensamento e do teu sentimento, a honra da tua amizade, que acidentes políticos nunca modificaram, antes estreitaram e engrandeceram entre nós. Saímos daqui há vinte e poucos anos. Voltamos juntos, e tenho consciência de que se tu voltas, neste momento, para a terra de São Borja, para um túmulo, e eu não volto para a cidade de Alegrete, ainda é por causa do teu amor, da tua generosidade e do teu desprendimento, porque sei, tenho consciência e devo dizer a todos e a todo o País, que tu morreste para que nós, os que te assistiam, os teus amigos, não morressem contigo. Devo declarar que, se ainda vivemos, é porque tu te antecipaste na morte, para nos deixar na vida. O teu suicídio é o grande suicídio, o suicídio altruístico, aquele que faz a mãe,e do pai pelo filho, o pai, e que foste pai e filho como ninguém, e por isso soubeste fazer pelos teus. Ninguém mais do que eu o pôde testemunhar. Todos os meus apelos eram no sentido de que a tua vida era da maior necessidade para o Brasil. Praticaste não o ato de renúncia da tua vida, praticaste a grande opção, que só os fortes sabem fazer, a opção altruística que, entre a vida e os seus prazeres e a morte, decide-se pela última.
Se ele tivesse querido, nesta hora, meus senhores, seria mais forte do que nunca, em vida; mas não mais forte do que é agora na morte, porque a morte é eterna e a vida, passageira. Ele seria mais forte porque tinha no seio das Forças Armadas e no coração do povo, que é invencível, os elementos para resistir, dominar e vencer. Mas procurou vencer-se a si mesmo, não derramar o sangue daqueles que sabia, como disse momentos antes, os melhores, os bons, os amigos. Não foi, como se disse, o suicídio de um grande homem, tu te mataste para evitar que o novo Brasil se suicidasse e para que, de ti, da tua morte e do teu sangue, surjam, como numa transfiguração, o futuro e o destino, e nós, nos contemplando, possamos ter, neste momento, a convicção de que deste com o teu sangue a certeza de que o Brasil surgiu de ti, da tua filosofia, de nossa Pátria! Este destino surgirá como uma emanação deste túmulo e se espraiará pelo tempo dos tempos e por todos os horizontes, numa afirmação renovada das tuas idéias e dos teus sentimentos. Quando se quiser escrever a História do Brasil, queiram ou não, tem-se de molhar a pena no sangue do Rio Grande do Sul, e ainda hoje, quem quiser escrever e descrever o futuro do Brasil, terá de molhar a pena no sangue do teu coração.
Getúlio,
Saímos daqui juntos. Tenho consciência de que não voltamos juntos porque tu quiseste poupar a minha vida. Naquela horas trágicas e difíceis, quando o Judas preparava um novo Cristo na História do Brasil, nós sentíamos que a traição estava às nossas portas, e a negação de apóstolo e do Senhor era feita pelos que mais juravam a sua fé. Naquela hora, nós tínhamos um pacto, o pacto dos homens desta terra, o pacto dos homens dignos, que todos poderiam derramar sangue para te conservares no poder, mas nós decidimos ficar juntos de ti, porque estávamos dispostos a fazer tudo pelo Brasil, a fazer todos os sacrifícios, menos o de sermos humilhados, porque a humilhação é incompatível com a dignidade humana. Tu te antecipaste para nos poupar a vida. Não sei ! As tuas decisões sempre foram as melhores, mas não sei se não fora talvez melhor para nós termos idos juntos, já que juntos vivemos, juntos sonhamos, e eu te acompanhei por toda esta tua longa vida.
Quando, há vinte e tantos anos, assumiste o governo deste País, o Brasil era uma terra parada, onde tudo era natural e simples; não conhecia nem o progresso, nem as leis de solidariedade entre as classes, não conhecia as grandes iniciativas, não se conhecia o Brasil. Nós o amávamos, de uma forma estranha e genérica, sem consciência da nossa realidade. Tu entreabriste para o Brasil a consciência das coisas, a realidade dos problemas, a perspectiva dos nossos destinos. Ao primeiro relance, viste que a grande maioria dos brasileiros estava à margem, e a outra parte estava a serviço das explorações estrangeiras.E então, este espírito que conhecemos, retemperado no drama da fronteira, se alarmou nos seus estudos e se multiplicou na generosidade de seus sentimentos. Trouxeste uma cruzada que não está marcada no tempo e não tem horizonte fixado, que é a da integração dos brasileiros pelos brasileiros no seu próprio destino. Até então o Brasil não era nada, esperava por tudo. Não havia consciência do nosso progresso. Tu ofereceste a realidade, penetraste nela, tudo deste pelo novo Brasil que há de surgir, que há de crescer e se multiplicar e, quando integrado na sua grandeza entre as maiores nações do mundo, que fatalmente viremos a ser, o teu nome estará não neste túmulo, mas no topo de um pedestal, onde a gratidão de todos os brasileiros te levará como reconhecimento.
Getúlio,
Não tenho nem idéias, nem pensamento, nem forças para falar. Estou vivendo, nesta hora, ao teu lado, o turbilhão das minhas emoções, que se agrupam entre espasmos de dor e lágrimas, entre conjecturas e dúvidas, e, olhando para ti, sei que estou olhando para o Brasil e vendo que tu, ao entrares para a eternidade, tornaste maior o teu nome na História. Começo a pensar o que será de nós, os brasileiros, neste transe que se abre com a tua morte.
Direi, procurando interpretar as palavras que João Goulart acabou de proferir em nome de seu partido, que nós, os teus amigos, continuaremos, depois da tua morte, mais fiéis do que na vida: nós queremos o que tu sempre quiseste para este País. Queremos a ordem, a paz, o amor para os brasileiros.
Neste instante, quando ainda agitados pelo remorso ou atormentados e com as mãos tintas da traição, eu, receoso diante da afronta que se fez ao povo brasileiro com o teu afastamento do poder e da vida, a maior afronta que registra a história política do Brasil, porque se verificou não uma eleição com a tua morte, mas a consagração defintiva do teu povo pelo teu amor pelo Brasil: neste instante, diante do teu túmulo, não há lugar para exaltações, para paixões, o que ofenderiam a tua bondade, de que tanto se abusou neste país. Diante de ti não há lugar para recriminações. Há sim, para afirmar ao Brasil inteiro a mensagem de um homem que não queria morrer, mas continuar os seus ideais. Nós queremos, seguindo as tuas lições, um entendimento, mas fique bem claro que os entendimentos têm de se fazer entre os humildes, entre os trabalhadores, entre o povo e os homens capazes de assumir responsabilidades, mas jamais com os traidores. A traição não teve guarida no teu coração, não pode ter no nosso. Assim como detestamos a traição, perdoaremos os traidores. Sigam o seu destino, perseguidos como Judas, pelo tempo dos tempos, recebendo o castigo da reprovação. Pela torpeza que cometeram, apesar do dever e dos compromissos de honra assumidos. Nesta hora, aos que já estão adotando providências que indicam para o Brasil o rumo da violência, da supressão de direitos elementares, da perseguição, responderemos como o povo brasileiro com o coro de suas lágrimas.
Haveremos, juntamente com aqueles que rendem as homenagens ao teu sentimento, de jurar fidelidade eterna às idéias do teu amor, que desse túmulo emana, como disseste do teu próprio sangue, a flâmula da redenção, pela ordem, pela concórdia, pela paz. Estão eles atemorizados com o que fizeram. Estão atemorizados pelo remorso. Estamos ameaçados de dias incertos, negros e sangrentos, mas contra tudo isso, contra este crime que se pressente contra o povo brasileiro, clama a tua vida de tolerância, de bondade e de generosidade, porque se é verdade que sabias ser bom com os teus amigos, eu que testemunhei a tua vida, posso dizer que não houve no Brasil homem melhor para os seus inimigos.
Getúlio,
Vamos encerrar o nosso despacho, a nossa conversa, aquela conversa que tínhamos tantas vezes por semana, em que tanto me inspirava, me aconselhava e decidia. É que procurei dar o melhor de mim mesmo pela sorte e pelos destinos do nosso País. Vamos encerrar a nossa conversa com a afirmação, ou melhor, com a informação que te costumava dar do que sinto, vejo e prevejo para o nosso País. Teremos dias intranqüilos, criados por aqueles que disseram que iriam defender as leis, que são as que dão segurança à vida do povo. Teremos dias de erros graves e de crimes, mas podes estar certo de que defenderemos a tua memória, porque tu não nos legaste a tua morte, mas a eternidade de tua vida. Podes ir tranqüilo, porque venceremos, inspirados em teus sentimentos de amor e de igualdade. O teu apelo será atendido. Tudo faremos para atendê-lo, para que o Brasil viva dirigido não por ódios, por sentimentos subalternos, nem por vinganças ou recriminações, mas dentro da realidade generosa e fraterna. A tua vida é a maior lição que recebeu o Brasil. A tua morte é apenas um episódio da tua vida. Não chega nem a interromper o teu destino.
Muitas e grandes vozes te falaram neste instante, muitos e grandes pensamentos trouxeram-te nesta hora o testemunho da admiração que despertaste em todo o Brasil. O povo está falando nas ruas, com as suas lágrimas, com o seu desespero, com a sua inconformação. Tu ouviste a voz dos trabalhadores pelos seus líderes, a voz de Minas demonstrando a sua fidelidade mais alta que suas montanhas, para te trazer, através de um dos nossos companheiros, de um daqueles que ilustravam a tua família governamental, a sua palavra de despedida.
Eu, Getúlio, não te dou minha despedida, posto que tu não te despediste de nós, porque nós iremos todos os dias, a ti, buscar inspiração para os nossos atos.
Quero te dizer agora, homem que tem que enfrentar um futuro ao qual havia pretendido renunciar, por isso que era minha decisão encerrar a minha vida pública, que diante da nossa realidade, quando tu te tornas ainda maior, eu me reincorporarei a quantos de hoje para o futuro continuarão a obra daquele que foi, entre os brasileiros que eu conheci e entre os grandes homens com que tenho convivido no mundo, um dos maiores, mas sem dúvida, o melhor entre os melhores.
Não te trouxe o meu abraço , que separa para sempre, que nem o meu abraço que une ainda mais, nem o beijo com que nos aproximamos dos mortos queridos, mas aquele aperto de mão amigo de todos os dias para que continuemos, tu na eternidade, eu nesta vida, o diálogo de dois irmãos ligados pela terra, pela raça, pelo serviço e pelo amor do Brasil”.
Oswaldo Aranha (que veio, em 1957, a presidir novamente a delegação do Brasil na ONU) morreu cinco anos depois, em 27 de janeiro de 1960, em pleno governo Juscelino Kubitschek (o construtor de Brasília, eleito em coligação com o PTB,do qual o Presidente, João Goulart, era seu vice).
Ubirajara Passos
Gostou? compartilhe com seus amigos: