Transe Infausto


Deixe-os brincar
De prazer e liberdade,

Facilite-lhes seus sonhos,
Mas só no imaginário.

Incorpore-os, refine-os
Com as mais sofisticadas vestes.
Lhe dê o melhor das tecnologias
E os transforme no maior dos espetáculos!

Faça que cada acorde encerre um paraíso,
Que cada frase induza a um delírio
De gozo,
N
a hipnose de um voo infindo.

Divulgue-os pelos palcos,
E nos becos,
Exaustiva e incessantemente.

Não dê um minuto de descanso e bombardeie-os
Com as imagens e os sons amplificados,
Brilhantes e glamourizados,
Dos seus desejos mais pungentes e fantásticos!

Mas não permita, nunca, que escapem
Do plano ideal dos sons e das imagens.
Jamais possibilite que saltem para a vida
E se transformem em gestos e atitudes.

Mas encarcere-lhes,
Bem seguro, as existências
Na fantasia edênica, destoante
Da feia e miserável condição concreta,

Para que não se ergam contra ela e derrubem
Os deuses reais de carne e osso
Que gozam, sádicos, com o seu sacrifício.

Vila Natal, 25 de março de 2018

Ubirajara Passos

“Surubinha de leve” apenas explicita o sadismo do funk em geral


Ao contrário do estardalhaço politicamente correto (entenda-se vigilância infantiloide e totalitária) que levou à retirada do catálogo do Spotfy, o exame completo da letra do estrondoso sucesso do fanqueiro Diguinho permite concluir que a música não faz a menor apologia ao estupro, nem  à prática criminosa alguma.

Se ao invés de se deter no desaventurado refrão (Taca a bebida/Depois taca a pica/E abandona na rua), prestar-se a devida atenção ao contexto das demais estrofes (Pode vim sem dinheiro/Mas traz uma piranha, aí!/Brota e convoca as puta), o máximo que se poderá constatar, é uma incitação ao estelionato (a gurizada vai convocar as profissionais do amor para uma festinha, gozar do seu serviço e depois mandá-las port’afora, com um ponta-pé na bunda, e nenhum mísero tostão de pagamento), ou quando muito à celebração da prática da zoofilia com vorazes peixes carnívoros!

O texto da estrofe intercalada entre a convocação e o desenlace da orgia (Mais tarde tem fervo/Hoje vai rolar suruba/Só uma surubinha de leve/Surubinha de leve/Com essas filha da puta) deixa bem claro tratar-se de uma suruba destas que muito velhote metido a playboy detentor de mandato parlamentar costuma fazer em Brasília, na qual as meninas participarão espontaneamente, bebendo e gozando dos prazeres carnais previstos, sem receber, entretanto (e aí é que repousa a malícia da gurizada da favela carioca) a devida retribuição monetária. 

Conforme matéria de O Globo recentemente publicada, duas advogadas especialistas na matéria criminal invocada teriam afirmado categoricamente que seria necessário bem mais do que as meras alusões a trago, sexo e abandono para caracterizar o estupro, que consiste na prática forçada de sexo, mediante violência ou grave ameaça, e não fica expresso que o ato de “tacar a bebida” consistiria em fazer a mulherada ficar inconsciente para usufruir de seu corpo.

Polêmicas a parte, a verdade pura e simples é que 99% das letras de funk no Brasil primam, desde o boom inicial do ritmo, no início dos anos 2000, com a banda Bonde do Tigrão, pelo mais medíocre sadismo (vide os versos de Prisioneira,  onde a gata é advertida  que seus únicos direitos são os de “sentar, de quicar, de rebolar”, e, fora isto, o “de ficar caladinha”) abordando as relações sexuais (diferentemente da velha sacanagem bem-humorada e gaiata, de duplo ou mais ou menos explícito sentido, das marchinhas clássicas, como “A Perereca da Vizinha”) sob a ótica do machão prepotente,  que vê e usa a mulher como uma simples coisa, a moda do barranqueador de égua que submete a fêmea no ato  maneando-lhe as patas (quem for dos pagos sulinos entenderá perfeitamente do que estou falando).

E é muito admirável, de causar arrepios nos pentelhos, mesmo, ter sido necessário uma peça tão explícita para, após duas boas décadas de exaltação glamourizadora e massificada (a ponto de se tocar impune e entusiasticamente nas mais comezinhas festas infantis de aniversário, até mesmo nas mais pudicas casas de família) do imaginário musical erótico mais sem graça, misógino e machista,  alguém se dar conta e trazer a baila (ainda que de forma equivocada) a essência ideológica do funk brasileiro, onde a mulher é vista como coisa, nada mais que um objeto de prazer, sem direito necessário a ele.

Mas daí a se partir para a censura, com a proibição ou retirada da canção (e suas congêneres), entretanto, é se banhar nas mesmas águas da peste emocional que, da impotência orgástica (resultado do prazer reprimido por séculos de patriarcalismo ainda vigente, sob o disfarce da liberação dos costumes) à consequente intolerância moralista e totalitária tipicamente fascista, pretende controlar nossos mínimos gestos, privados ou em público, sob os auspícios da falsa moral disciplinadora, robotizante e anti-prazer da pior espécie (digna das velhas beatas rançosas, reeditadas sob a forma de histéricos e alvoroçados rapazes do MBL) ou do aparentemente inocente e comportado discurso politicamente correto de uma infeliz esquerda cor de rosa e tributária do Estado burguês. Tudo para garantir que continuemos a marchar dentro das bitolas e não desviemos por um segundo o olhar para os lados, o que pode acarretar a derrocada da escravidão assalariada e o fim dos privilégios dos amos que nos submetem a uma vida de cachorro, devidamente regrada pela ética da obediência cega e o pretexto  do bom senso.

Todo este ímpeto em demonizar, e proibir a expressão, o que é mais grave, tudo quanto possa escapar aos ditames  ingênuos típicos do Joãozinho do Passo Certo, logo no início de um ano de eleições presidenciais, que serão pautadas pela disputa espúria e entusiasmada entre os representantes mambembes aparentemente inofensivos da extrema direita raivosa rediviva (leia-se Jair Bolsonaro) e os apóstolos de uma esquerda cor-de-rosa defensora de uma ética distorcida e policialesca pretensamente defensora das minorias oprimidas, é no mínimo preocupante, para não dizer apavorante.

Ubirajara Passos

 

 

De como não assisti ao show do Zé Ramalho


Houve uma época, nos velhos tempos da República do alemão Valdir, que, tendo o Rogério Seibt retornado a Santa Rosa, e o baiano Luiz, se casado (e se afastado dos amigos), os frequentadores do apartamento de Petrópolis se restringiram ao próprio Valdir, a mim e ao alemão Ale, com o qual eu costumava varar as madrugadas de sábado para domingo enxugando um litrão de fanta com uma vodka de garrafa plástica (que era o máximo que nossos escassos reais permitiam), enquanto o Valdir (na época se tratando com a Dileusa e com pisquiatra e, portanto, se mantendo abstêmio) roncava solenemente.

Pois nestes dias em que a minha carteira andava mais vazia que cabeça de periguete fanqueira, mesmo assim me cotizei com o Alemão Valdir e compramos ao salgado preço (para a época) de R$ 100,00 por cabeça os ingressos para o show exclusivo, de uma hora de duração, que o Zé Ramalho daria no auditório Araújo Viana, numa sexta, em Porto Alegre, incluindo além dos nossos o do Ale.

Durante uma semana inteira, entusiasmado, eu não falava em outra, perturbando à farta o ouvido dos estagiários da Contadoria Forense com o fato de que eu iria a um show do “Raul Seixas” (apesar de me policiar, trocava a cada vez o nome do cantor), ouvindo de volta a informação de que para tanto só fosse à mesa branca, pois este há mais década já passara por outro lado.

Quando, finalmente, chegou a noite esperada, entretanto, o Valdir e o Ale (que embora cursasse radiologia na época já manifestava os pendores culinários que o levariam à futura profissão fora do Rio Grande, ao invés de agilizarem-se, resolveram, justo próximo da hora do espetáculo (que se iniciava por volta das 9 h) fazer uma senhora janta, com dinheiro a porco assado, sob os meus protestos – contestados com a frasezinha: “show de rock sempre atrasa!”.

Assim, quando os glutões inveterados já haviam satisfeito sua “larica” sem maconha, e cedendo aos meus rogos, e chegamos ao Araújo já eram quase dez horas da noite e o resultado foi darmos com a massa do público saindo port’afora, um amigo do Ale escorado na saída, dizendo que o show (que já havia pontualmente terminado) estava muito bom.

Na volta, ainda tentei recuperar a noite e convidei a dupla para fazer algo de útil e prazeroso na extinta Sauna La Luna (puteiro da Barão do Amazonas), mas diante da recusa, tive de me contentar em sorver algumas long neck de Brahma Extra, compradas em qualquer posto de gasolina no caminho.

Foi assim que, por causa do porquinho gordo (e quem sabe por vingança do gaiato fantasma do roqueiro), não pude estar presente ao show do Zé Ramalho e, de certa forma, “assisti ao show do Raul Seixas”, que sendo realizado por fantasma ninguém viu mesmo!

Ubirajara Passos

“Recuerdos”


No tempo em que as luzes nasciam no fogo
Em que os candieiros ardiam encharcados
Na embriaguez da querosene,

As noites guardavam profundos mistérios
E as sombras espessas abrigavam, gratuito,
Em capotes pesados os velhos “assombros”.

No tempo em que a música nascia nos dedos
Dos menestréis rústicos, vibrando nas cordas,
Em que o sopro das flautas fazia dueto
Com o minuano gélido que nos arrepiava

Tudo era menor
E o tempo, mais lento,
E vivíamos mais próximo da essência de nós mesmos.

Gravataí, 3 de janeiro de 2016

Ubirajara Passos

A última canção


Meio-dia e meia de uma tarde quente de final de primavera, para ser mais exato, 9 de dezembro do ano passado. Aproveitando o horário do intervalo, o Oficial Escrevente de um Foro da comarca da serra gaúcha, nas horas vagas ilustre músico honorário de uma banda de quarentões classe média (funcionários públicos e profissionais liberais), está na loja de instrumentos musicais comprando encordoamento para o seu violão.

Absorto, sentando na banqueta acolchoada, junto da velha janela de vitrais, com aquele ar estranho de quem pegou um trem pra Marte e esqueceu de pagar a passagem, coloca as cordas novas e vai afinando o instrumento, repetindo, com curtas pausas, cadenciadamente os gestos e tiques típicos de músico experiente que começa a abrir as portas da mente para as notas e vai nelas se aprofundando, até se deixar tomar pela influência de Apolo, numa verdadeira obsessão do deus grego.

Aproveitando a cortesia da casa, que, na esteira da velha tradição imigrante européia, faz questão de manter o espaço informal no canto da sala para os improvisos dos clientes, deixa-se possuir, de vez, pelo espírito da música e, mergulhando no próprio ser, começa a executar Blackbird, do velho mestre Macca (Paul Mcartney para os leigos na gíria musical), quando sente ao seu lado a presença de um “encosto” bem menos diáfano que Apolo ou Baco (cuja inspiração também se fazia presente, embora até agora não tenhamos mencionado, afinal não poderia faltar, em plena serra gaúcha, de colonização italiana, a taça de vinho colonial servida por cortesia do dono da loja repousando na mesinha circular em frente).

A figura magra, de uns 7o anos bem vividos, pele amarela como a de uma estátua de museus de cera, vestida a rigor, apesar do aspecto puído e vetusto do terno, empertigando uma camisa de riscado e uma calça de tergal desgastados pelo uso, mas perfeitamente frisados a ferro, sentou-se a seu lado, sacudida por uma rápida tosse seca, e ficou ali, com um olhar suplicante e embevecido lhe observando, irritantemente.

Quebrado o encantamento da poesia interna, do improviso musical no meio do dia atabalhoado a lhe dar instantes sagrados de sossego e embevecimento longe de tudo e de todos, o músico de horas vagas, funcionário forense burocrático de todo dia, já ía se dispondo a se erguer e foi atalhando, ríspido, sem mais nem menos:

– Meu senhor, se espera escutar música, está perdendo o seu tempo. Daqui não sai nada, não, senhor. Estou só tentando afinar meu violão no afinador eletrônico, onde qualquer débil mental consegue.

Polidamente, de uma educação de moça virgem ingênua de internato, o velho lhe estendeu a mão e apresentou-se:

– Desculpe, meu senhor, se o interrompo. É que já fui cantor de boates há muito tempo. Já estou aposentado, não tenho mais saúde pra continuar. Mas eu ía passando por aqui e, não sei por que, dei com o senhor, e resolvi entrar. Faz pouco tempo operei um câncer na laringe – e indicou a marca do catéter recém retirado – e como o vi tocando tão concentrado, pensei que poderia, quem sabe, acompanhá-lo e relembrar um pouco do prazer da mocidade.

– Não sei mais quanto tempo me resta  e é raro ver um músico com a tua paixão. Mas se o senhor está incomodando, não se preocupe. Me retiro. Só quero lhe dar meus cumprimentos pela virtuosidade.

E, abaixando-se numa saudação de palco, estendeu ao nosso protagonista ambas as mãos, que enlaçou nas dele, quentes de um calor febril.

Constrangido, o nosso músico amador, deixou-se comover e, esperando, ainda, qualquer porcaria executada por qualquer maluco, como estes que passam a vida brincando de viajantes, com chapéu de palha e mala feita de caixa de sapatos, crivada de recortes de cidades famosas, na Praça da Alfândega, em Porto Alegre, recuou de sua rejeição inicial:

– O que é isto, companheiro? Esteja à vontade. Afinal a casa não é minha, é de todos nós. O que vamos tocar?

E o velho, como se não o tivesse ouvido, não deu resposta, mas abriu o peito e se pôs a executar uma canção de Lupicínio, a que se seguiu outra. Ambas conhecidíssimas do nosso herói, que muito as tocara quando, ainda rapazote, animava bailes do Clube dos Coroas, na Avenida João Pessoa, na capital gaúcha.

O importuno cantou, e cantou muito! Com muita técnica e uma melodia absolutamente impecáveis e arrebatadoras, que jamais poderia se imaginar estivessem saindo de uma garganta condenada, mas sobretudo com uma sensibilidade absoluta, inatingível, inatacável e irrepetível. E atingiu o auge, num arrebatamento digno de coro gregoriano em catedral gótica, em plena Idade Média, quando o quarentão, comovido, o acompanhou ao violão, fundindo-se ambos numa estranha sinfonia, destas que nos visitam raras vezes na vida, na meia idade ou na adolescência, e nos transportam a mundos indizíveis e maravilhosos, que deixam uma saudade amarga, mas adorável para o resto da vida.

Olhos marejados, cara de cachorro que vomitou no colo da madame, o nosso músico de horas vagas não soube o que dizer quando o cantor, tão delicado e circunspecto como entrara, despediu-se, sem maior explicação:

– Meu guri, tocaste muito, e muito bem. E me deste um grande presente de Natal executando estas canções. Até logo!

E afastou-se, trôpego, mas de espinha ereta e digno, dobrando na primeira esquina.

O violonista, abestalhado, deixou-se ficar ali, sentado no canto da loja sem saber o que pensar, nem o que fazer. Por pouco não ceifara a felicidade enorme daquele homem que, por tão pouco, e com tanto mérito, parecia ter atingido o paraíso de um instante único, talvez o último digno de sua vida, verdadeiro “canto de cisne”. E pensou que, talvez, tivesse sido visitado por algo bem menos corriqueiro que um velho virtuose aposentado pela absoluta impossibilidade física de prosseguir no ofício. Quem sabe ele, que apesar de doar-se como um louco nas raras ocasiões possíveis em que se encontrava com a música, mas que vivia reclamando e se enfronhando nas piores neuroses das mesquinharias de repartição e do lar, no dia-a-dia, não recebera uma visita de outras dimensões, que viera testá-lo no seu amor à música, ao ser humano e à vida. Em Deus não acreditava, menos por razões político-ideológicas do que por puro empirismo racional sem sobressaltos, mas algo estranho ocorrera ali. Parece que estivera na presença do próprio Apolo, ou quem sabe não era, afinal, Papai Noel?

Ubirajara Passos

Você merece!


É muito raro eu publicar textos de outros autores neste blog. Que me lembre, há apenas, até o momento, duas ilustres exceções (o hino “A Internacional” ,  um capítulo do “Solo de Clarineta” do Érico Veríssimo e um poema do meu amigo coronel de bombeiros aposentado em Santa Maria), além, é claro da carta-testamento de Getúlio e discursos de Leonel Brizola e Osvaldo Aranha.

Mas, como no desfecho das duas últimas crônicas das Aventuras do Peruca (e em algumas outras desta minha linha) acabei por cometer, por culpa do colaborador que me enviou os textos prontos para editá-los e publicar, o triste pecado não do plágio, mas da cópia escancarada de piadas já publicadas por outrem na internet, abro hoje aqui mais uma exceção. Esta bem caracterizada e identificada pela assinatura de seu autor. 

Se algum leitor está curioso em saber quem foi o engraçadinho que me mandou as histórias com plágios no final (sem que eu me desse por conta), vai ficar na curiosidade. Adianto somente que se trata de um personagem da turma do Peruca que já apareceu em foto neste blog. Ganha uma edição encadernada do “Bira e as Safadezas…” quem enviar comentário e acertar seu nome ou apelido.

De resto, mesmo com o deslize cometido, o agradeço pela colaboração, deixando claro que é o único que me envia alguns argumentos ou textos, exclusivamente das histórias do Peruca, que tenho aproveitado ora quase que integralmente (é o caso dos dois últimos citados e da parte principal da Multa do Law Pirâmide da 59) ou simplesmente reescrito a partir da idéia original, com uns tantos acréscimos  (Peruca e a Loira no Cio e Peruca Derrapante nas Curvas de Glorinha são o caso). As suas outras colaborações foram algumas entradas do Almanaque do Peruca publicadas no segundo semestre do ano passado.

Homenagem feita, vamos à introdução do objeto deste post. Trata-se da letra de um samba gravado em 1973, no auge da repressão, e da exaltação de mídia, da ditadura militar, época em que eu, filho de professor público brizolista (que tratava de se manter o mais incógnito possível, por medo da perseguição), por incrível que pareça, usava, aos 8 anos de idade, uma camiseta branca com a estampa vermelha “Eu te Amo meu Brasil”, e assistia com meu pai às reportagens de Amaral Neto (“Amoral Nato” como foi apelidado pela intelectualidade da oposição de esquerda) transmitidas da construção da rodovia “Transamazônica”, na recém comprada televisão Phico 21 polegadas “semi-transistorizada”, preto e branco, sem ter a menor consciência de nada daquilo em que estas coisas implicavam.

E o autor da letra e da música, que foi também seu primeiro interpréte (aliás, o título dela identifica o disco “long play”, que foi o primeiro sucesso do sujeito) era nada mais que o fantástico Gonzaguinha (22/9/1945-29/4/1991), filho do “rei do baião” Luiz Gonzaga com uma cantora da noite (Dancing Brasil) que morreu tuberculosa,  Odaleia Guedes dos Santos, criado por seus padrinhos e que, no início dos anos 1970 não era ainda o “cantor/compositor” famoso por textos mais soltos e românticos, e mais próximos da aceitação do senso popular comum e da mídia “global”, como  O que é o que é, Começaria tudo outra vez, Grito de Alerta ou Explode Coração.

Gonzaguinha, que participou entre 1968 e 1970 dos famosos festivais estudantis de música popular brasileira, juntamente com Ivan Lins, se dedicava à música de protesto, praticamente revolucionária, o que lhe rendeu os óbvios problemas com os órgãos da repressão política da ditadura fascista brasileira (como o DOPS – Departamento de “Ordem” Política e Social).

E o texto aqui publicado é uma síntese de tudo que malucos como eu, ou meus companheiros do Movimento Indignação, temos discutido e publicado nos últimos anos, merecendo vir à tona, atualíssimo que é, como um alerta e uma reflexão escancarada para todos, anarquistas, socialistas e comunistas revolucionários, brizolistas ou algumas viúvas do PT, e do povão em geral. Dedico-o, mesmo, a meus colegas, trabalhadores do Judiciário do Rio Grande do Sul, especialmente àqueles que não tiveram a coragem suficiente para votar na chapa por mim liderada nas últimas eleições do Sindjus-RS (o que faço sem nenhum espírito de revanche ou dor de cotovelo, mas por puro interesse desprendido, de funcionário comum, apesar de líder, nas nossas condições de vida e trabalho). Chega de enrolação. Vamos ao poema, ou melhor ao samba: 

COMPORTAMENTO GERAL

Composição: Gonzaguinha 

Você deve notar que não tem mais tutu
e dizer que não está preocupado
Você deve lutar pela xepa da feira
e dizer que está recompensado
Você deve estampar sempre um ar de alegria
e dizer: tudo tem melhorado
Você deve rezar pelo bem do patrão
e esquecer que está desempregado

Você merece, você merece
Tudo vai bem, tudo legal
Cerveja, samba, e amanhã, seu Zé
Se acabarem com o teu Carnaval?

Você merece, você merece
Tudo vai bem, tudo legal
Cerveja, samba, e amanhã, seu Zé
Se acabarem com o teu Carnaval?

Você deve aprender a baixar a cabeça
E dizer sempre: “Muito obrigado”
São palavras que ainda te deixam dizer
Por ser homem bem disciplinado
Deve pois só fazer pelo bem da Nação
Tudo aquilo que for ordenado
Pra ganhar um Fuscão no juízo final
E diploma de bem comportado

Você merece, você merece
Tudo vai bem, tudo legal
Cerveja, samba, e amanhã, seu Zé
Se acabarem com o teu Carnaval?

Você merece, você merece
Tudo vai bem, tudo legal
Cerveja, samba, e amanhã, seu Zé
Se acabarem com o teu Carnaval?

Você merece, você merece
Tudo vai bem, tudo legal

E um Fuscão no juízo final
Você merece, você merece

E diploma de bem comportado
Você merece, você merece

Esqueça que está desempregado
Você merece, você merece

Tudo vai bem, tudo legal

A Internacional


Paris, primavera de 1871. Diante da rendição vergonhosa do novo governo republicano às tropas invasoras alemãs, o povo da capital francesa  se auto-organiza e toma o poder, correndo o aparato estatal burguês, que se refugia no velho palácio “nobre” de Versalhes,  sob a proteção do exército do Kaiser Guilherme, que é coroado Imperador em plena “Sala dos Espelhos”.

Em 40 dias de heróica resistência a “Comuna de Paris”, formada por todos os matizes de revolucionários, de marxistas a anarquistas, realiza, pela primeira vez na história da humanidade, em concreto, o sonho da peonada livre e sofrida, estabelecendo a administração auto-gestionária da cidade, que passa a ser governada pelos próprios trabalhadores, decretando, entre outras medidas (conforme consta do artigo da Wikipédia), as resoluções seguintes:

  1. O trabalho noturno foi abolido;
  2. Oficinas que estavam fechadas foram reabertas para que cooperativas fossem instaladas;
  3. Residências vazias foram desapropriadas e ocupadas;
  4. Em cada residência oficial foi instalado um comitê para organizar a ocupação de moradias;
  5. Todas os descontos em salário foram abolidos;
  6. A jornada de trabalho foi reduzida, e chegou-se a propor a jornada de oito horas;
  7. Os sindicatos foram legalizados;
  8. Instituiu-se a igualdade entre os sexos;
  9. Projetou-se a autogestão das fábricas (mas não foi possível implantá-la);
  10. O monopólio da lei pelos advogados, o juramento judicial e os honorários foram abolidos;
  11. Testamentos, adoções e a contratação de advogados se tornaram gratuitos;
  12. O casamento se tornou gratuito e simplificado;
  13. A pena de morte foi abolida;
  14. O cargo de juiz se tornou eletivo;
  15. O calendário revolucionário foi novamente adotado;
  16. O Estado e a Igreja foram separados; a Igreja deixou de ser subvencionada pelo Estado e os espólios sem herdeiros passaram a ser confiscados pelo Estado;
  17. A educação se tornou gratuita, secular, e compulsória. Escolas noturnas foram criadas e todas as escolas passaram a ser de sexo misto;
  18. Imagens de santos e outros apetrechos religiosos foram derretidos, e sociedades de discussão foram criadas nas Igrejas;
  19. A Igreja de Brea, erguida em memória de um dos homens envolvidos na repressão da Revolução de 1848 foi demolida. O confessionário de Luís XVI e a coluna Vendome também;
  20. A Bandeira Vermelha foi adotada como símbolo da Unidade Federal da Humanidade;
  21. O internacionalismo foi posto em prática: o fato de ser estrangeiro se tornou irrelevante. Os integrantes da Comuna incluíam belgas, italianos, poloneses, húngaros;
  22. Instituiu-se um escritório central de imprensa;
  23. Emitiu-se um apelo à Associação Internacional dos Trabalhadores;
  24. O serviço militar obrigatório e o exército regular foram abolidos;
  25. Todas as finanças foram reorganizadas, incluindo os correios, a assistência pública e os telégrafos;
  26. Havia um plano para a rotação de trabalhadores;
  27. Considerou-se instituir uma Escola Nacional de Serviço Público, da qual a atual ENA francesa é uma cópia;
  28. Os artistas passaram a autogestionar os teatros e editoras;
  29. O salário dos professores foi duplicado.

O exército regular da França, entretanto, com mais de cem mil soldados, grande parte libertada pela tropas do Kaiser, no primeiro exemplo do colaboracionismo ínternacional burguês da História, toma a cidade, depõe o governo popular e, numa chacina inédita e sem piedade, executa entre 50.000 e 80.000 parisienses, tanto no assalto militar, quanto na repressão política que se seguiu.

Em meio ao furacão da primeira grande revolução socialista, o poeta Eugéne Pottier compõe o que se tornaria, mais tarde, o hino da Associação Internacional dos Trabalhadores, e o próprio manifesto musical da luta de todos os revolucionários do mundo (sendo o próprio hino oficial da extinta União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, na era estalinista), cujo conteúdo,  bem mais radical e efetivo que muito programa político formal de muito partidinho socialisteiro, abaixo reproduzo:

 

A Internacional

 

De pé, ó vítimas da fome!

De pé, famélicos da Terra!

Da idéia a chama já consome

A crosta bruta que a soterra.

 

Cortai o mal bem pelo fundo!

De pé, de pé, não mais senhores!

Se nada somos neste mundo,

Sejamos tudo, ó produtores!

 

Bem unidos façamos,

Nesta luta final,

Uma terra sem amos,

A Internacional.

 

Messias, Deus, chefes supremos,

Nada esperamos de nenhum!

Sejamos nós quem conquistemos

A Terra-Mãe livre e comum!

 

Para não ter protestos vãos,

Para sair deste antro estreito,

Façamos nós por nossas mãos

Tudo o que a nós nos diz respeito!

  

Bem unidos façamos,

Nesta luta final,

Uma terra sem amos,

A Internacional.

 

Crime de rico a lei o cobre,

O Estado esmaga o oprimido.

Não há direitos para o pobre,

Ao rico tudo é permitido.

 

À opressão nãos mais sujeitos!

Somos iguais todos os seres.

Não mais deveres sem direitos,

Não mais direitos sem deveres!

 

Bem unidos façamos,

Nesta luta final,

Uma terra sem amos,

A Internacional.

 

Abomináveis na grandeza,

Os reis da mina e da fornalha

Edificaram a riqueza

Sobre o suor de quem trabalha!

 

Todo o produto de quem sua

A corja rica o recolheu.

Querendo que ela o restitua,

O povo só quer o que é seu!

 

Bem unidos façamos,

Nesta luta final,

Uma terra sem amos,

A Internacional.

 

Fomos de fumo embriagados,

Paz entre nós, guerra aos senhores!

Façamos greve de soldados!

Somos irmãos trabalhadores!

 

Se a raça vil, cheia de galas,

Nós quer á força canibais,

Logo verá que as nossas balas

São para os nossos generais! Bem unidos façamos,

 

Nesta luta final,

Uma terra sem amos,

A Internacional.

 

Somos o povo dos ativos,

Trabalhador forte e fecundo.

Pertence a Terra aos produtivos;

Ó parasitas, deixai o mundo!

 

Ó parasita que te nutres

Do nosso sangue a gotejar;

Se nos faltarem os abutres

Não deixza o sol de fulgurar!

 

  Bem unidos façamos,

Nesta luta final,

Uma terra sem amos,

A Internacional.

 

Comuna de Paries, 1871

 

Eugéne Pottier

 

 

O BONDE DO LADRÃO


Riquinho é um primo magrela do Zé Doidinho (aquele mesmo que sugeriu enterrar o Peruca, em coma alcoólico, no cemitério municipal) que foi trabalhar num estabelecimento comercial alternativo (loja de R$ 1,99) de seu tio em Cacimbinhamburguer. Desenfreado das guampas e metido a gozador, comunga, entretanto, da mesma lendária lerdeza do Peruca.

No primeiro dia de trabalho, ficou com as mãos em carne viva de tanto esfregar papel carbono, com o intuito de deixá-lo limpo e branquérimo como cueca lavada com Alvex, como lhe havia pedido o gerente falcatrua. E até hoje não entende por que, apesar do esforço e sofrimento inútil, quase todos os colegas deram a mais estrondosa gargalhada na sua cara, inclusive o próprio gerente – que, pela lógica, lhe devia passar uma mijada.

O único que se compadeceu do idiota foi o Gordonando, o varredor do estabelecimento, que, nas folgas, ganhava uns trocos vendendo, coincidentemente, vassouras na praça principal. Por afinidade de criatura estranha, desengonçada e rejeitada (mais conhecido na loja como Baleia Branca ou “Vassoura Leve”), aproximou-se do Riquinho e se tornou seu melhor e único amigo.

Não saíam da casa um do outro, estavam sempre juntos tomando um absinto, na noitinha, no buteco em frente à loja, para ver se o álcool pesado os tornava mais malandros e espertos e consta, mesmo, que andaram caçando travecos (convencidos de que eram fogosas panteras) nas ruas secundárias e escuras das madrugadas do centro.

Tudo ia às mil maravilhas, apesar de pequenas rusgas: o Riquinho, além do salário, recebia regularmente uma mesada do pai e fazia questão de esnobar o amigo, ostentando o “i pode?” novinho em folha, comprado em uma única parcela, enquanto o Baleia gramava como um louco para pagar as prestações do rádio portátil. E, nestas raras ocasiões, o gordinho fazia beiço e se dizia humilhado. Fora isso eram como a corda e a caçamba.

Até que um belo dia, tresnoitado de uma farra com o gordo, Riquinho chegou tarde no “um e noventa e nove” e, já tendo dado pela falta do amigo (coisa que muito o preocupou, que o cara não era de gazear serviço, mesmo na ressaca – será que estava doente ou tinha sido esfaqueado por algum vagabundo na volta de casa, o coitado?), foi à farmácia comprar uns engoves e, na hora de passar no caixa, deu pela falta do cartão bancário.

Mas, como ainda tinha uns trocos, voltou para o serviço, atabalhoado (que o atraso lhe rendera a primeira reprimenda gerencial) e se esqueceu do caso. Somente no dia seguinte, ainda apreensivo pelo amigo (que simplesmente sumira do mapa – não veio trabalhar e ninguém sabia dele, nem no buteco, nem na zona gay), como convém a todo lerdo, foi ao banco mandar bloquear o cartão e encomendar novo – e aproveitou pra sacar uma graninha. E tamanha foi a surpresa que deslocou a mandíbula (de tão enorme “boca aberta”) e foi levado, furioso, ao hospital, grunhindo e espumando, para botar o focinho no lugar.

O fato é que lhe haviam sacado o salário e a mesada inteirinhos (uns R$ 800,00). E, ao assistir o filme da câmera de segurança do terminal onde ocorrera o furto, deu com a balofa e saltitante figura do amigão do peito, no papel de galã da fita, rindo, histérica, e enchendo os bolsos com os maços de “onças”.

O caso em si é bastante banal, e os leitores devem estar novamente preocupados com minha sanidade mental: o que o Bira, afinal está querendo com esta historinha insossa, contada em tom coloquial de comadre pesarosa e tendente ao moralismo recalcado?

O fato é que, tão logo a turma do Peruca me narrou a façanha, eu, que casualmente conheci, de passagem, a “Orca ladrona” e o Riquinho, tive uma inspiração iluminada e escrevi a seguinte paródia ao maior sucesso do medíocre e xaroposamente porno-sádico funk do “Bonde do Tigrão” (umas das pérolas clássicas do machismo popular, pra não dizer lumpen, do Brasil do século XXI):

Bonde do ladrão

Quer sacar, quer sacar,
O baleião vai te ensinar.
Quer humilhar, quer humilhar
O gordão vai te ferrar!

Vou passar o cartão na mão
Assim, assim.
Eu vou te roubar, meu irmão
Vou sim, vou sim!
Não vou parar na gaiola.
Din-din, din-din
Vou trazer muito pra mim.
Vou sim, vou sim!

Eu vou sacar oitocentão,
Vou mostrar que eu sou ladrão,
Vou te dar muita tensão.

Então se escabela, escabela
Se escabela, que o teu cartão
Eu levo na mãozinha
Na palma da mão!
É o bonde do ladrão!


Então pra ela, pra ela
Pra ela, vou dá um sorrisão
Pra camerazinha,
Vou abanar a mão.
É o bonde do ladrão!

Ubirajara Passos

O SAPATO DO RAUL


Não sou muito dado a escrever sobre essas “banalidades” (como diz o meu amigo Valdir Bergmann), mas o fato é que ainda estou convalecendo mentalmente, o que me impede, por enquanto, de alçar maiores vôos políticos e literários e poupa Lula, a petesada da direção do Sindjus-RS e a governadora “gaúcha” nascida em São Paulo de uma saraivada de pau bem merecida, neste início de 2008.

Antes que algum leitor ou amigo apavorado imagine que desta vez não foi alarme falso (como na volta de São Paulo em março) e que tive um acidente vascular cerebral vou logo avisando: podem relaxar que não foi nada disto. Nem o meu sumiço de Gravataí ou do blog se explica pelo possível internamento em algum hospício como o São Pedro, em Porto Alegre (que é o destino de todo louco pobre).

O fato é que (devido a um encontro com a minha gata preferida que atrasou apenas sete horas) tive de mudar os planos de assistir a virada de 2008 na praia do Hermenegildo, no extremo sul do Brasil, com a ex-coordenadora geral do Sindjus, Magali Bitencourt e a turma da oposição sindical de esquerda, e fui passar o ano-novo em Santa Rosa-RS. E depois de sete dias contínuos de porre com o Alemão Valdir (que principiou já na madrugada de 31 de dezembro, quando lá cheguei pelas 6 horas, e se estendeu até o domingo dia 6), me vi com o cérebro totalmente formatado (ou seja, completamente vazio). Ainda mais que “somos intelectuais” e nossas bebedeiras são animadas pelas mais abstrusas discussões políticas, filosóficas, esotéricas, além de outras “banalidades”, é claro, cujo esforço mental exigido deixa um portador de DDA como eu completamente exaurido.Eu enchendo os cornos de goró na véspera do ano-novo

O “diabo do Valdir” (que é DDA também), por exemplo, lá pelo terceiro dia de porre, num raro momento de lucidez, em que curtia a mais atroz ressaca, se viu tão desconfortado como o mundo e consigo mesmo que ameaçou, com os olhos esbugalhados e a boca escancarada, comer o ventilador de teto em movimento e, não tivesse eu lhe arrebatado das mãos os vidrinhos de sal e pimenta (com que tencionava temperar o pobre eletrodoméstico), a esta hora estaria soltando a maior ventania pela boca!

Mas vamos falar de coisas sérias, chega de asneiras subjetivas e cretinas! Lá o que querem saber os leitores da minha bebedeira, de quantos peidos (que são o foguete dos “sem-dinheiro”) soltei à meia-noite de 1.º de janeiro, ou se chamei o Hugo na primeira madrugada do ano (o que juro não ter feito). Há muito assunto profundo e grave a ser aqui esmiuçado. Como a plaqueta de madeira artesanal com que me deparei em uma tenda de camelô, no túnel que dá acesso à Estação Rodoviária de porto Alegre, na partida para o Noroeste do Rio Grande do Sul, no domingo dia 30 de dezembro: “Não adianta ser rico. A melhor coisa da vida a gente faz pelado“. Concordo plenamente com o autor. Tanto que, não fossem as limitações impostas pela minha timidez e falta de atributos físicos e artísticos padrão porque suspira a maioria das gatinhas (que não impediu, entretanto de comer umas oitenta mulheres ao longo da vida), fuderia umas três vezes ao dia, no mínimo. O filosófo popular se esqueceu, entretanto, que , na maior parte das vezes, o prazer sádico da classe endinheirada não só “fode” com a nossa vida de peões, como ainda obriga , pela força de seu poder social e econômico, velhos boêmios como eu a esvaziar a carteira para poder estar pelado com as mais gostosas e fogosas fêmeas.

 

O diabo do Valdir, puto da vida por que não lhe deixei comer o ventilador

O assunto, aliás, o sexo, parecia estar na pauta dos deuses da “sincronicidade” (a “coincidência” providencial de esotéricos e junguianos), naquele dia. Tendo de suportar uma espera de mais quatro horas pelo ônibus (e me encontrando na rodoviária por absoluta faltas de opção de lazer na noite de domingo da capital do extremo sul do Brasil), comprei em uma banca de revista o velho poema do romano Ovídio, “A Arte de Amar”, que me encontrava lendo quando uma abelha sentou-me mansamente no indicador da mão direita e ali ficou passeando até ser enxotada pela minha fobia histérica, sem picar. Resta saber se foi atraída pelo cheiro de algum resto da coca-cola que eu acabara de beber, ou simplesmente queria conferir as dicas do “Kama Sutra” latino.

Se algum leitor histérico já está babando de raiva, e querendo comer um ventilador de teto, a esta altura, por não entender a relação entre o título e toda esta tagarelagem inútil, aí vai a explicação: retornado a Gravataí na quarta-feira, após descansar da viagem de oito horas e recompor o corpo (que a mente o abandonou e ainda não voltou) fui ontem comprar um sapato novo, no centro da cidade e acabei por cometer a heresia de adquirir um sapatênis, coisa que até hoje não havia usado. Por mais irreverente e debochado que seja, este anarquista e boêmio quarentão que vos fala jamais levou a sua irreverência além do limite de transar com um aparelho de ar-condicionado (ligado no frio) e tentar ensinar matemática ao Peruca. E, já que estava comprando um sapatênis, resolvi comprar o modelo mais fora da ordem possível, digno de ser usado pelo velho Raul Seixas – o pirado, desbocado e sarcástico cantor anarco-esotérico que é um dos meus heróis e escreveu e cantou coisas como “vem cá mulher, deixa de manha,/ minha cobra quer comer tua aranha”, em plena sisudez da ditadura de João Figueiredo (o general gorila que preferia cheiro de cavalo ao cheiro do povo). Feliz 2008 atrasado para todos!

Ubirajara Passos
O sapato do Raul

O NOVO HINO NACIONAL


Há coisa de uns dois meses, uma amiga (que me inspira o mais forte desejo de corpo e alma, embora não tenha achado coragem, até o momento, para abordá-la) me enviou, via e-mail, o mais novo sucesso da parada musical, que saltou de número em espetáculo teatral ao mais badalado vídeo e arquivo sonoro da internet, e rendeu à sua intérprete, merecidamente, até entrevista no Programa do Jô Soares.

O estouro foi tão grande que qualquer dia seu letrista será guindado a imortal da “Academia” (no que terá, certamente, mérito bem mais legítimo que o incendiário de marinbondos, o “amapaense” de São Luís do Maranhão, Sarney “Tem que dar Certo”). E, se bobear, nestes tempos em que o capitalismo yankee e europeu transforma tudo em propriedade e patenteia até capim da Patagônia, os brasileiros das mais diversas classes vão ter de pagar direitos autorais por berrar ou sussurrar, de becos a palácios, as frases centenárias do poema.

Não entendi, mesmo, como a melodia ainda não foi transformada em tons de campainha telefônica (ou estarei desinformado?), e alguma fábrica de refrigerantes não utilizou-a como jingle para incrementar as vendas!

O sucesso vem crescendo tanto que já suplantou, de vez, o “Rei” Roberto Carlos. E qualquer dia será cantado em seminário da FIERGS, curso de qualidade total, formatura, enterro, batizado, casamento, recital da Ospa no Teatro São Pedro (por pouco não abriu os Jogos Pan-Americanos), ou encerramento de culto da Igreja Universal.

E, dada a nossa desgraça generalizada, que o Inácio e seus capachos planejam piorar exponencialmente, a vibrante musiquinha (que o alemão Valdir, me disse, já adotou como mantra de relaxamento, ou “fashion” brado de protesto, além de recomendar como técnica reichiana para cura das reinas emocionais da humanidade) bem que poderia ser escolhida pelo povo brasileiro, em homenagem ao “paternal” e majestático “Inácio dos Nove Dedos”, como o novo hino nacional: Vai tomar no cu,/ Vai tomar no cu, /Vai tomar no cu,/ Bem no meio do seu cu!/ Vai tomar no cu,/ Vai tomar no cu, /Vai tomar no cu,/ Bem no meio do seu cu!/ Vai tomar no cu/ Vai, vai, vai, vai,/ Vai tomar no cu/ Vai, vai, vai, vai,/ Vai tomar no cu,/ Bem no meio do olho do seu cu!”
(http://br.youtube.com/watch?v=dHpSCHxb780)

Ubirajara Passos