Não vim ao mundo por obra de outra coisa
Que o acaso sem rédeas que a todos nós comanda
E, insciente, só transporta a ânsia
De prazer puro que anima-nos os corpos.
Senti, no fundo de cada molécula,
A espontânea vibração de vida
Que se elevava junto a outras tantas
No crepitar arisco à rigidez
E, camarada das outras chamas livres,
Unidas na empatia mútua,
Compunham o fogo que ceifava campos
De ervas amargas e intragáveis
Abrindo espaço ao prazer doce e vívido.
Por não saber de sádicos tesões
Que satisfazem-se fustigando os lombos
Dos rebanhos submissos mourejantes,
Eu, cujas mãos sempre proveram-me os dias,
Fui me juntar aos mais simples e oprimidos
Pelo látego da soberba cruenta,
Em cujos corpos a fagulha reprimida
De prazer e liberdade ainda vivia.
Não procurei armar milícias revoltosas,
Porque sabia que a vida livre e digna
Não se garante na imposição
Dos aparatos do obrigatório,
Mas na recusa íntima à obediência
Por cada servo desperto da ilusão
E erigido em soberano de si mesmo.
Foi assim que provi meus companheiros
Da jornada simples e espontânea
Não de espadas, lanças e porretes,
Mas da consciência autodeterminada
Para romper com o servilismo vil
E se negar a continuar rebanho
Sob os pastores da iniquidade.
Foi assim que, sabedor do meu destino,
Não recuei, nem fiz firulas
Aos pés dos poderosos que temiam
A faísca que, soprando em cada
Humilde peão tornado refratário à servidão inglória,
Daria cabo, na fogueira imensa
Das almas livres, à opressão sem nome
E ao butim glamourizado do alheio sofrimento.
Se me furtasse ao compromisso assumido
Seria apenas mais um ruidoso
E narcísico hipócrita infrutífero,
Ou um covarde refletido que, sabendo
Que o rebanho ainda era temeroso,
Se encolheria em uma vidinha confortável.
Não procurei, portanto, algum martírio,
Mas, coerente com a vida que habitava-me,
Desprezei aos que advertiam-me,
Segui o caminho traçado e vi-me entregue,
Impotente e sem defesa,
Ao suplício
Nas garras alarmadas da opressão.
Vila Natal, 23 de dezembro de 2020
Ubirajara Passos
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