Memórias juvenis da contestação à “redentora” (de como se forma uma militante revolucionária)


O texto aqui reproduzido foi-me foi enviado, via whats app, há alguma semanas pela camarada Lúcia Saldanha Caiaffo, companheira de luta sindical e política de longa data, que conheci, na condição de jovem representante de comarca, em 1992, quando ela ocupava o cargo de presidente do Sindjus-RS, escolhida na primeira eleição direta do sindicato, fundado em 1988, no ano anterior.

Desde então formou-se entre nós uma amizade, e parceria na militância política e sindical, que as décadas decorridas não arrefeceram, mantendo aceso e incrementando o entusiasmo. Embora separados por centenas de quilômetros (ela residindo no litoral catarinense e eu na região metropolitana de Porto Alegre), raros são os dias em que não trocamos alguma mensagem e (membros ambos da corrente sindical Luta e Indignação, por mim liderada, no judiciário gaúcho) e seguidamente temo-nos ombreado de forma radical e incansável na luta política e social, metendo o bedelho não somente nas questões específicas da  categoria dos servidores da justiça, mas também no combate ao fascismo circense do bolsonarismo e na luta sem quartel pela revolução profunda de nossa sociedade.

E é, com o maior prazer que publicamos, para deleite dos leitores deste blog extemporâneo e moribundo, as memórias de sua inquieta e inconformada juventude como estudante nos anos de chumbo, no Rio Grande do Sul, cujo entusiasmo os anos não arrefeceram:

Amanhecia o dia 1° de abril de 1964. Morávamos em Santa Maria RS, bem no centro da cidade. Acordamos com um barulho estranho e vimos da janela do ap., um comboio de Urutus, muitos, em fila. Tinha eu 14, quase 15 anos e sem a menor ideia do que estava acontecendo. Cursava a 4° série do Ginásio e fazia parte do Grêmio Estudantil que cuidava apenas dos direitos e das atividades sociais dos alunos.  A primeira informação que tive, foi que os milicos estavam aquartelados e nem sabia o que era isso, estava mais focada no Baile de Debutantes, que seria em outubro próximo. Muito curiosa fui procurar informações.

Uns 2 anos depois disso, já percebendo os horrores da Ditadura, comecei a militar no Movimento Estudantil da cidade.  Sempre ouvindo minha mãe dizer que eu não me ” metesse nisso”, que era perigoso, etc… Mas, como dizia ela, sorrindo: “a Lúcia não tem jeito”. E não tenho, mesmo, até hoje .

Em 66 a família foi morar em Porto Alegre. Aí sim achei meu caminho.  Fui cursar o Ensino Médio na melhor Escola Pública do RS, considerada “Modelo”, ao mesmo tempo que o Don Pedro II do Rio de Janeiro, o Colégio Júlio de Castilhos.

Excelentes Professores tive no Científico. Mas, imediatamente substituída a Direção por gente da confiança dos Ditadores.

É claro que logo entrei no Grêmio Estudantil, chamado na época de Grêmio Literário e submetido à supervisão de uma Professora de direita que inclusive assistia às Reuniões da Diretoria!!!

A Escola era mista mas não “misturada”. No turno da manhã estudavam só as meninas e à tarde os rapazes. Entretanto, nós do Grêmio, tínhamos permissão para entrar a qualquer hora.

Na porta de entrada havia um Guarda desses de Empresa, que trabalhava fardado. No espaço em baixo da escadaria, havia um Barbeiro!! Quando o tal Guarda achava que um dos alunos estava “cabeludo”, levava para cortar o cabelo!!!

Esse foi nosso primeiro embate com a Direção da Escola. Era 1968. Combinamos que as meninas permaneceriam dentro da Escola no intervalo do almoço e os rapazes chegariam antes do horário de início das aulas da tarde.  Lotamos completamente o saguão de entrada e sentamos no chão. Fizemos uma Comissão da Diretoria do Grêmio e fomos ao Diretor.

Evidente que se recusou a nos receber. Com um megafone na mão, informamos aos colegas a decisão do imbecil Diretor. Pelo prédio todo ecoaram nossos gritos. A Besta quadrada botou a cara pra fora da sua sala e voltou pra trás em um segundo, com cara de incredulidade e mudou de ideia: “Vou receber o pessoal do Grêmio”!

Enquanto isso, a galera carregou a maldita cadeira de barbeiro e deixou na Praça Piratini, que é em frente à Escola.

Depois desse fizemos vários outros protestos. Um deles A Revolta da Minissaia.

Cansei de escrever, qualquer dia  conto mais.

Amo essa Escola até hoje!”

Lúcia Saldanha Caiaffo

Um flagrante hilário da ingenuidade matronal


Já vai algum tempo que uma depressão enrustida (destas que se confunde com rabugice ou simples exasperação perante uma realidade cada dia mais disfuncional  e precária em termos financeiros e funcionais) tem me mantido num humor e imaginação tão limitados  que o máximo que permitem além da rotina sonolenta e sem graça de todo dia é um ataque de inconformidade daqueles cujo auge é o proferir de umas tantas frases indignadas e recheadas de palavrões.

Há pouco, entretanto, percorrendo as inúmeras mensagens rotineiras do “zap-zap” dei com a mensagem de um amigo que  tem vivido mais ou menos na mesma condição que eu, me dando conta da seguinte  comunicação, em um destes grupos de apoio comunitário e auto-organizado da vigilância, em prol da segurança do logradouro comum em que mora, feita por uma dona de casa da turma: “Pessoal, tem uma cachorrinha preta, acho que é uma pintcher, percorrendo a rua, com um lencinho rosa no pescoço… Acho que está no cio. Os cachorros estão estão atrás dela!”

cachorra da madame


Vinda do nada, em meio à eterna avalanche de desgraças, entre elas as sucessivas enchentes que têm devastado o Rio Grande do Sul em decorrência óbvia das consequências climáticas do aquecimento global, esta postagem teve simplesmente o efeito de correr a vassouradas o ancião reumático e ranzinza que ultimamente me habita e dar plenas asas ao voo de um moleque irreverente e barulhento. Confesso que tive vontade, apesar dos protocolos óbvios de sobriedade moralista, séria e circunspecta que regram o comportamento nesta espécie de grupo, de lhe sugerir que respondesse: “Então tá tudo normal. Que bom pra eles! Deixa a cachorrada ser feliz!”  O primo do ancião, indignado e furioso, revolucionário metido a palmatória paradoxalmente libertária do mundo, que ocupa um nicho em segundo plano entre os arquétipos do meu inconsciente, porém, deu-me um puxão de orelha e impediu-me de concretizar a gaiatice em nome do sofrimento que estas pobres senhoras da classe trabalhadora passam todo dia nas mãos de uma elite sádica, metida a emancipada e sabichona, a qual eu acabaria, involuntariamente, fazendo couro.

Mas a pura verdade é que quase me mijei de rir (literalmente) e só não instei meu camarada a publicar o infame comentário pra evitar maiores encrencas públicas e domésticas.

Afinal, por maior que seja o zelo da comunicante em eventualmente localizar o pobre dono da imprudente  e “ingênua” cachorrinha que pulou a cerca (e saiu por aí, em plena efervescência de seus caninos hormônios de fêmea, se expondo ao violento assédio destes mal-intencionados primos do lobo mau, e possibilitar o seu resgaste  – e da respectiva honra), o texto peca por tamanha e paradoxal ingenuidade que poderia ser atribuído a qualquer protagonista de piada de português.

Se, por outro lado, pretendia  chamar à responsabilidade os proprietárias de tão nefanda e devassa fêmea que, com seu irresistível poder de sedução, saia por aí a lançar os pobres paspalhões caninos na mais barulhenta e infeliz disputa (da qual sairiam somente lanhados e despedaçados pelas recíprocas e agudas agressões), perturbando, com a barulheira insuportável, a tranquilidade dos moradores da infeliz rua, o comentário redundante não teria, igualmente, outra consequência, pela obviedade cretina, que conduzir os donos da cadela a uma raiva maior ainda que a da malta de machos excitados contra a sua autora.

Seja como for, por maior indiferença com que a besteira foi recebida (ninguém se deu ao trabalho de responder a mensagem), pelo menos deu alguns instantes de puro prazer hilário a um pobre  cinquentão entendiado em uma madrugada domingueira.

Ubirajara Passos

Aos militantes que se acotovelam em frente aos quartéis, agora embalados por uma representação judicial maliciosa e falaz no TSE:


Saibam que Bolsonaro não poderia nem ter sido candidato. Deveria estar preso, inclusive, em razão dos 700 mil brasileiros mortos em consequência de sua política sanitária anti-isolamento, anti-máscara e anti-vacina.

Tentou roubar a eleição mandando a polícia federal reter virtuais eleitores do adversário em pleno pleito e mesmo assim perdeu.

Não existe fraude, não existe manipulação. Por escassa margem, é bem verdade, o setor mentalmente saudável da população brasileira o impediu de se reeleger no dia 30 de outubro e esta vontade está legitimamente expressa nas urnas.

O fascismo doentio, anti-prazer e anti-vida foi derrotado e não tem mais volta.

Admitam a verdade e voltem para casa a fim de lamentar, com oceanos de lágrimas, a desgraça do "mito" assassino. 

Seu calvário nem iniciou ainda e o sangue de cada brasileiro desnecessariamente falecido nos braços do Covid só será devidamente honrado quando este monstro for condenado a pagar seus crimes na masmorra pelo resto de sua ignóbil vida!

Ubirajara Passos

Bolsonaro é a manifestação arquetípica deturpada de Macunaíma


No imaginário de boa parte de seus seguidores Bolsonaro é a expressão (espúria) da rebeldia irreverente do brasileiro comum ao pedantismo opressivo do representante politico clássico e institucional da ordem oligarquica.

Isolado dos demais e incapaz de se rebelar de forma a derrogar a ordem escravocrata em que vive (justamente por seu isolamento, que herda do individualismo atávico do índio), o trabalhador historicamente estruturou seus meios de sobreviver à opressão por uma resistência passiva, adaptando-se à ordem pela transgressão clandestina à disciplina rígida e soberba do feitor e do sinhozinho. É a fruta ou o biscoito que se furta sub repticiamente para matar a fome que a ração fornecida pelo amo não satisfaz ou a esperteza, o engodo na transação de um negócio, venda ou trabalho qualquer contratado com o coroné a única forma do peão desprovido de qualquer direito, que se vê nulo e impotente diante do domínio absoluto e incontestável dos senhores, de burlar precariamente a indigência material e social em que vive.

Não por acaso Macunaíma é o arquétipo literário da mentalidade profunda do Brasil. Se o índigena, acostumado a prover autonomamente a própria vida, sem receber ordens nem prestar contas a quem quer seja (até por dominar todas as técnicas necessárias à sua sobrevivência adaptada à natureza), uma vez escravizado pela força do mando armado e disciplinador, não vê muitas vezes outra saída que o suicídio (assim como o negro trazido à força da África deixava-se morrer lentamente, no banzo), seus futuros descendentes mestiços de corpo e alma desenvolverão a rebeldia individualista disssimulada à opressão disciplinadora e moralista (de uma falsa moral que intuitivamente identifica), que o faz desprezar não somente o doutor empolado, cheio de ademanes que (sob o pretexto do progresso ou bem maior de uma abstrata nação) executa, com a força das leis que impõe ou cumpre, a vontade dos “donos” da grande senzala brasileira, mas também o caricato “revolucionário”, cartilhesco e cheio de éticas e disciplinas, que quer lhe tolher o menor deboche irreverente (que faz parte de sua estratégia em sobreviver suportando a opressão) como expressão do “preconceito” pecaminoso e intolerável contra segmentos sociais oprimidos. 

Levado ao auge da exaustão e da miséria, o grosso do povo brasileiro, exausto da hipocrisia edulcorada do patriciado político (que odeia por intuir que as filigranas falazes de complexidade de um discurso oco e estéril escondem tão somente a voracidade insaciável do senhorio que lhe destroça a vida na lide extenuante e miseravelmente remunerada) se atira sofregamente ao primeiro salvador da pátria cujos modos informais e desbocados parecem incorporar o próprio espírito de simplicidade contrafeito à pompa prepotente da casa grande. Assim surgem os Jânios Quadros que param o discurso para tirar uma banana do bolso do paletó e traçá-la e os Bolsonaros que disparam palavrões e xingamentos desconexos ao que aparentemente é a política burocrática, inóqua e ossificante da vida praticada pelas elites.

O fascismo não é somente a expressão política da peste emocional, do autoritarismo voluntarioso, raivoso e anti-prazer que constitui a outra face da mentalidade deste mesmo povo submetido, e integrado voluntariamente de certa forma, à disciplina patriarcal tradicional que informa inconscientemente a dominação social. Ele se alimenta também da incapacidade da esquerda (eivada da disciplina impositiva e dogmática de um programa revolucionário similar, na cômica seriedade rígida, às atitudes “patrióticas” ou apologéticas de progresso do político conservador) em entender e se aproximar da mentalidade hedonista e libertária (ainda que abastarda pela distorção do domínio impositivo) do “povão”, se perdendo nas discussões teóricas abstratas inquestionáveis no caso de uma Alemanha pré-Hitler e na asfixia da patrulha identitária que busca em cada esquina um transgressor verbal do bom mocismo convertido em filosofia política, no caso do Brasil.

Se a Alemanha, impregnada em seu inconsciente coletivo pela dedicação estoica ao trabalho própria de seu imaginário profundo, deixou-se possuir pelo arquétipo de Wotan, o deus nórdico da Guerra, e pariu o nazismo racista e imperalista, o Brasil, cevado num hedonismo epicurista espontâneo, grávido do prazer de bem viver, livre, informal e sereno do índio, reprimido e pisoteado por séculos pelo tacão dos senhores pretensos donos da terra e de nossas vidas, incorporou Macunaíma e pariu o bolsonarismo, que é o fascismo tingido de deboche e informalidade, o qual encanta e fanatiza os incautos justamente por aproximar sua linguagem da revolta do cidadão comum a uma atitude artificiosa e ostentatória própria da mentalidade do opressor.

Assim, dificilmente sairemos do abismo genocida e sufocante de qualquer manifestação real de vida em que mergulhamos (muitos crendo, inconsciente e paradoxalmente, estar defendendo esta mesma vida, espontânea e imbuída de prazer), ao menos que os verdadeiros revolucionários, comprometidos e identificados com os interesses e sofrimentos da peonada, se despojem de suas plumas intelectualóides e professorais e, descendo do pedestal (como já ocorreu nos tempos do Comando Geral dos Trabalhadores, do CPC da UNE e da frente de Mobilização Popular, nos idos do pré-1964), sentem ao rés do chão juntamente com o povo que anseia não apenas por um existência decente, por comida na mesa e um sapato confortável, mas por uma vida em que possa manifestar e expandir a alegria sem frescuras e isenta do ranço autoritário e disciplinador do “bom comportamento” sisudo e cheio de etiquetas e das preocupações com a compostura e os “compromissos” que informa a velha “ética” anti-prazer e pró-sofrimento do Ocidente cristão e de todas as sociedades estruturadas no trabalho compulsório e servil da grande maioria em prol dos restritos prazeres e interesses de uma minoria dominante.

Ou resgatamos a profundidade das matrizes indígenas e africanas, que, sufocadas e transformadas em sombra psíquica pela mentalidade de trabalho austero e heterônimo, se manifestam na forma da adoração ao fascismo mambembe, ou prosseguiremos séculos afora, nas palavras de Darcy Ribeiro, como um grande moinho de gastar gente pra adoçar a boca de europeu.

Ubirajara Passos

E a rua, além de desaparecer do mapa, tornou-se um corredor gradeado e inóspito



novo prédio subindo a lomba após o Gensa

Em abril de 2010 (há quase 11 anos, portanto), publiquei neste blog matéria, sob o título A rua que desapareceu do mapa, a respeito da esquecida “Travessa Tiradentes” (rua do centro de Gravataí que havia se transformado num beco cujo traçado já não constava da planta da cidade. Cheguei na época a enviá-la por e-mail para o maior jornal local, o Correio de Gravataí, para ver se surgia interesse pelo assunto e se aprofundava a investigação a respeito, mas nunca recebi qualquer resposta.

O tempo foi passando e eis que um dois ou três anos atrás, já não me lembro ao certo, o antigo casarão em que ainda se encontrava afixada a velha placa da travessa, na época da publicação, foi demolido, se erguendo em seu lugar mais um flanante prédio de apartamentos destes que não cessam de brotar no solo gravataiense desde a instalação da General Motors neste pagos, no princípio do século.

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entre o novo prédio e o do Gensa, a antiga travessa, isolada da calçada por grades

Numa cidade sem memória nem política municipal de preservação de prédios históricos (onde até uma árvore provavelmente centenária, no Parcão – praça Juarez Soares de Vargas- da parada 79, foi simplesmente arrancada para dar lugar a uma nova calçada, junto a um “paradão” de ônibus na Avenida Dorival de Oliveira), eu não esperava, evidentemente, que a placa fosse guardada e recolocada no edifício novo.

Mas o que vi, ao verificar como havia ficado a situação da minha rua “secreta e esquecida” (ia usar o vetusto termo olvidada, mas, antes que alguém me tomasse por tão senil quanto a via pública, resolvi ceder à linguagem mais popular e modernosa), de que ninguém toma conhecimento, simplesmente me deixou estarrecido.


lixo acumulado no interior do corredor

Separada da calçada por uma grade (cuja função de proteção acabou por servir justamente ao depósito irremovivel de todo tipo de lixo), a pobre Travessa Tiradentes é agora um corredor “privado” entre os dois prédios, do qual sequer restou memória concreta da antiga escadaria.

Se antes era uma via pública que simplesmente havia sido deletada dos esquemas gráficos de localização urbana, mas ainda possuia vida, habitantes e trânsito, agora está convertida definitivamente num momumento visível e irrefutável à desfaçatez, que não se presta sequer de moradia aos mendigos.

Ubirajara Passos

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Do pretenso racismo do hino rio grandense (ou, por que o combate à opressão deve incluir a interpretação desassombrada dos textos…)


Não pretendo discutir a legitimidade da postura dos vereadores negros do Psol de Porto Alegre em se manterem sentados durante a execução do Hino oficial do Rio Grande do Sul no ato de sua posse, cuja atitude se tornou polêmica a partir da reprimenda de uma vereadora nitidamente fascista.

Mas é preciso, em meio ao festival de questionamentos e elucubrações de natureza política, histórica e sociológica suscitados, em cujo emaranhado polarizado até as raias do desconhecimento histórico e do revisionismo tacanho (há quem pretenda extirpar mais uma estrofe do hino, além da que já o foi em plena vigência da ditadura militar, por haver nela referência a “tiranos”) não intento mergulhar, que se traga alguma sanidade e lógica ao debate, evitando assassinar o português em prol do folclore político e ideológico desusado.

Que se questione conteúdos subliminarmente preconceituosos é muito louvável e absolutamente necessário. Mas, para tanto, é necessário não assassinar a lógica linguística básica e se forçar o sentido de um texto pela construção externa a sua própria estrutura. E, muito menos, ao contextualizá-lo no ambiente histórico e geográfico em que foi parido, induzir sua caracterização a partir de critérios arbitrários e toscos.

Salta aos olhos de qualquer um que examine o conteúdo do hino rio grandense, tachado de racista, com um mínimo de isenção ideológica (isenção esta não entendida como a falsa neutralidade da razão frente ao privilégio e ao preconceito gritante, mas como atitude desarmada da mente pronta a examinar os fatos concretos a partir de si, sem nenhum julgamento prévio – pré-conceito – a  realidade empírica), que os seus pretensamente ofensivos versos (“mas não basta pra ser livre/ser forte, aguerrido e bravo/povo que não tem VIRTUDE/ acaba por ser ESCRAVO”) não se referem a um segmento determinado da sociedade gaúcha ou brasileira existente na época de sua confecção, mas ao conjunto do povo rio grandense que, na visão política idealizada do poeta, posterior aos fatos que retrata (a revolução farroupilha) se encontrava submetido, dominado, escravizado (metaforicamente falando) aos interesses da corte imperial, que lhe seriam contrapostos e prejudiciais. Se troque, numa descontextualização mais próxima de nosso ambiente, o sul da América Latina, Bento Gonçalves por Leonel Brizola ou Fidel Castro e teremos um libelo anti-imperialista e anticapitalista dos brasileiros ou latino-americanos frente ao domínio do grande capital yankee, europeu ou transnacional do século 20 ou 21.

E é notório que a “virtude” a que se refere o texto se identifica, no contexto político interno que o informa, menos à pretensa RETIDÃO MORAL dos “puros” e soberbos “homens de bem” (senhores brancos de propriedades fundiárias, pecuárias e humanas – fazendeiros privilegiados que lideravam o movimento), contraposta a uma suposta devassidão criminosa e anti-ética da ralé (o “povinho”, que na forma de escravo negro ou peão avulso, sem terra, gaudério mestiço de índio e descendentes brancos de europeus ibéricos, sustentava os privilégios dos estancieiros no suplício da faina exercida debaixo do tacão e sem condições dignas de sobrevivência), que tende a justificar historicamente as diversas formas de dominação social desde a Pré-História ao nosso capitalismo pós-moderno virtualizado, do que às qualidades necessárias à manutenção da liberdade deste povo ou nação frente ao avanço de seu opressor, no caso específico os interesses da elite hegemônica representados no governo central do período regencial frente aos da marginalizada elite regional dos estancieiros farrapos. Se transportarmos a ideia para nossos dias, de pretensa igualdade política formal (em que teoricamente a maioria trabalhadora escorchada e dominada detém o mesmo privilégio político de escolher seus representantes no aparato estatal que os antigos eleitores possuidores de renda e propriedades privilegiados que os habilitavam a votar, no regime monárquico), a VIRTUDE a que se refere o hino seria antes a consciência, a capacidade de defender os próprios interesses e necessidades frente ao domínio espúrio e contraposto de outrem, que nós próprios, revolucionários socialistas, libertários e anti-imperialistas defendemos com unhas e dentes.

Não é porque os líderes do movimento eram fazendeiros (estancieiros) proprietários de escravos, que não pretendiam abolir a escravatura, nem porque a liderança militar final compactuou com o inimigo para o genocídio absurdo dos lanceiros negros, que se deve forçar a interpretação dos versos do “Chiquinho da Vovó”, até onde se sabe escritos posteriormente ao fim da Guerra dos Farrapos.

A injúria sub-reptícia da estrofe “maldita” existiria concretamente e teria toda a lógica, além das simples regras linguísticas, se estivéssemos tratando de um hino feito por ou na intenção de líderes dos Estados Confederados da América, cujo grande motivo de sua rebelião era a necessidade de manutenção do Instituto ignóbil da escravidão ameaçado pelo governo central americano sediado em Washington. Na boca destes revoltosos sulistas dos “States”, com certeza, a intenção dos versos de um poema laudatório adotado como hino estadual pelos positivistas republicanos gaúchos ciosos da autonomia regional (no seio dos quais foi parido Getúlio, cujo governo legou aos modernos escravos assalariados brasileiros os direitos trabalhistas básicos, revogados pelo fascismo racista e anti-povo dos nossos dias) seria sim arrogante, racista e condenável, mas não no caso concreto!

Ubirajara Passos

 

De um certo pastor de homens…


Não vim ao mundo por obra de outra coisa
Que o acaso sem rédeas que a todos nós comanda
E, insciente, só transporta a ânsia
De prazer puro que anima-nos os corpos.

Senti, no fundo de cada molécula,
A espontânea vibração de vida
Que se elevava junto a outras tantas
No crepitar arisco à rigidez
E, camarada das outras chamas livres,
Unidas na empatia mútua,
Compunham o fogo que ceifava campos
De ervas amargas e intragáveis
Abrindo espaço ao prazer doce e vívido.

Por não saber de sádicos tesões
Que satisfazem-se fustigando os lombos
Dos rebanhos submissos mourejantes,
Eu, cujas mãos sempre proveram-me os dias,
Fui me juntar aos mais simples e oprimidos
Pelo látego da soberba cruenta,
Em cujos corpos a fagulha reprimida
De prazer e liberdade ainda vivia.

Não procurei armar milícias revoltosas,
Porque sabia que a vida livre e digna
Não se garante na imposição
Dos aparatos do obrigatório,
Mas na recusa íntima à obediência
Por cada servo desperto da ilusão
E erigido em soberano de si mesmo.

Foi assim que provi meus companheiros
Da jornada simples e espontânea
Não de espadas, lanças e porretes,
Mas da consciência autodeterminada
Para romper com o servilismo vil
E se negar a continuar rebanho
Sob os pastores da iniquidade.

Foi assim que, sabedor do meu destino,
Não recuei, nem fiz firulas
Aos pés dos poderosos que temiam
A faísca que, soprando em cada
Humilde peão tornado refratário à servidão inglória,
Daria cabo, na fogueira imensa
Das almas livres, à opressão sem nome
E ao butim glamourizado do alheio sofrimento.

Se me furtasse ao compromisso assumido
Seria apenas mais um ruidoso
E narcísico hipócrita infrutífero,
Ou um covarde refletido que, sabendo
Que o rebanho ainda era temeroso,
Se encolheria em uma vidinha confortável.

Não procurei, portanto, algum martírio,
Mas, coerente com a vida que habitava-me,
Desprezei aos que advertiam-me,
Segui o caminho traçado e vi-me entregue,
Impotente e sem defesa,
Ao suplício
Nas garras alarmadas da opressão.

Vila Natal, 23 de dezembro de 2020

Ubirajara Passos

Da Escala de Salários e a Dominação Burguesa


Diversamente das velhas crenças oriundas da mentalidade tradicional, que distingue pretensos níveis de dignidade vinculados às diferentes atividades na lida diária, não é o mérito, a maior exigência de conhecimento ou a complexidade técnica envolvida nos diferentes ofícios, cargos e funções laborais que justificam a diversidade remuneratória da peonada na moderna escravidão assalariada.

Se os nossos proprietários burgueses não reduzem a “ração” de todos os trabalhadores ao minimamente necessário a manter-se em pé e a serviço dos privilégios senhoris, distinguindo alguns dentre os submetidos a sua dominação com um quinhão maior na repartição das riquezas que lhe subtrai, é porque estes lacaios “privilegiados” preenchem funções auxiliares intermediárias do exercício do domínio, cujo “leal” e pleno exercício sobre o lombo da massa brutalizada só se justifica e garante mediante o mimo que lhes proporciona uma vida material e mental mais próxima da dignidade de seres pensantes e criativos, ainda que jungidos à função de lamber as botas e viver ao redor das necessidades dos seus amos.

A perversidade da organização da vida das grandes multidões que mourejam sob o sol é, neste caso, bem maior que aquela que distingue o tratamento e a qualidade da comida, água e local de pouso aos diversos animais de criação, em que o gato angorá e o cão de caça, o touro reprodutor ou o cavalo de passeio do sinhô gozam de leito e alimentação bem mais confortáveis e apetitosos que aqueles destinados ao boi que puxa o arado, o burro que transporta a carga agrícola ou a galinha que fornece os ovos.

Tal é a exclusividade dos restritos interesses dos dominadores que organiza a vida do restante da humanidade que o nível de salário atribuído, e as consequentes condições de sobrevivência, mais toscas e miseráveis ou mais confortáveis, a cada um se dá dentro das estritas necessidades da classe dominante às quais atendem, o que justifica os poucos cobres atribuídos ao trabalho de um varredor de rua ou um professor de bairro popular, em flagrante e absurdo contraste com as montanhas de dinheiro destinadas a um gerente de grande indústria multinacional ou um nobre e intocável político ou , ministro de alto coturno encarregado da organização formal que encarna, de forma incontestável e sob o disfarce da “lei” originária da vontade nacional e dos ditames da racionalidade abstrata, os interesses reais e ocultos dos senhores burgueses do mundo.

Não fosse precisamente calculada a escala econômica, que permite aos capitães do mato e bufões encarregados de controlar e “entreter” as diversas camadas de servos remunerados usufruir de maior tempo efetivamente “livre” e de regalos materiais e “refinamentos” próximos aos dos amos , e seria impossível a manutenção da dominação, numa sociedade cuja requinte tecnológico exige uma complexidade de engrenagens bem maiores do que a articulação entre a casa grande e a senzala, para perfeita realização do sonho de vadiagem chique e exercício sofisticado do sadismo dos saqueadores que comandam o mundo sob o lombo e a mente do rebanho dominado.  E é nas condições modernas,  em que o domínio necessita se fazer cada vez mais pela hipnose auto-introjetada da manada escravizada, sob pena de perder a eficácia, que tomam relevo, gozando de uma vida principesca, aparentemente incoerente com a hierarquias laboral manifesta, os novos gladiadores e atuadores das modernas arenas, como os grandes jogadores de futebol de fama mundial e as estrelas e celebridades  da grande mídia eletrônica, o circo global e informatizado, que garantem, impregnando nossas mentes, até o mais profundo,  dos ideais correspondentes ao prazer substituto e virtual, nunca alcançado, na identificação edênica com a classe dominante, a nossa dedicação voluntária e bem comportada de rezes falantes. Que, além do velho e temeroso cumprimento do dever, se entusiasmam na possibilidade de receber a medalha de vaca premiada na exposição agropecuária, enquanto nossos donos gozam concretamente do grande prazer injustificável que lhes proporciona o saque das riquezas por nosso sacrifício produzidas.

Gravataí, 17 de dezembro de 2020

Ubirajara Passos

 

Da Índole Sádica da Pornografia Hodierna


Para deleite dos velhos fãs da sacanagem deste blog, vai abaixo publicado mais um sermão na igreja de satanás:

Da Índole Sádica da Pornografia Hodierna

Jamais se viu nada tão próximo da genuína volúpia moleque e sorridente, banhada nas profundezas sacanas do impulso vital livre e espontâneo, voltado voluntariamente à satisfação de um cio sem hora nem lugar, sempre pronto ao exercício sublime do gozo mútuo que nos diferencia de nossos irmãos mamíferos (jungidos aos ciclos reprodutivos da programação genética), identificado com a própria potência saudável da vida em si, como a velha sacanagem cinematográfica, ingênua e implícita nas imagens, mas poderosa na evocação mental sub-reptícia, das pornochanchadas brasileiras do século passado.*

Por mais que reproduzissem, em tom gaiato, digno da mais debochada avacalhação da velha malandragem do terço final do século passado, os preconceitos próprios da velha moral sexual patriarcal, com títulos como “O Super Manso”, as picarescas comédias eróticas da época celebravam o sexo, ou antes a putaria, como a fonte dos mais refinados e alegres prazeres proporcionáveis por nossos corpos, que efetivamente é, passando muito longe do desespero trágico e truculento incorporado pela indústria pornográfica mundial desde os anos 1990, a partir da imposição massiva do receituário sexual yankee, filho típico da rebeldia desusada e imatura à mais repressora moral puritana.

meme-desvistas

Assim é que, com disparates típicos da nação onde um simples seio nu se assimila à mais descarada manifestação da devassidão pecaminosa que haverá de arrastar a humanidade depravada à condenação eterna do inferno, o moderno imaginário da ficção sexual (das cartas de leitores de revistas de mulher pelada ao cinema especializado) se ressente dos esquetes mais sádicos, abobalhados e broxantes, só capazes de inspirar tesão e entusiasmo a punheteiros juvenis recém ingressados na puberdade, destes cuja experiência concreta mais próxima do supremo ato do gozo mútuo foi a prática eventual da zoofilia com a cadela do vizinho, no matinho do subúrbio, o romance sem-vergonha com a vaquinha mimosa  dos velhos matutos ou a barranqueada  de égua da gauchada antiga.

Qual grau de excitação genuína é capaz de ser despertado por cenas como a de um afobado touro reprodutor musculoso, de olhos esbugalhados e ar apatetado, se masturbando frente a uma ou mais fêmeas de ar aparvalhado que aguardam, com a boca escancarada e o olhar perdido, que o protagonista acerte a pontaria da esporrada, na atrapalhação mais impagável da cenografia típica? Ou a gritaria artificiosa e desafinada de uma loira padronizada, de cabelos alisados na chapinha e peitos estufados qual balões a ponto de estourar, enquanto o machão cheio de si a barranqueia com a concentração própria de quem pilota uma britadeira, sem emitir o menor pio ou suspiro?

Tais são os exemplos básicos da gélida e raivosa fantasia erótico-psicopática disseminada, desde o fim do século, nas diferentes mídias, sem falar é claro, nas bizarrices mais estapafúrdias, como  madames tentando trepar com cães são bernardo (entediados e contrafeitos), transas de anões com velhos travecos ou outras asneiras do gênero, que as povoam, transformando a velha e boa foda sacana no coito insosso e prenhe dos anseios de um misógino enrustido cujo maior prazer, inconfessado não é o compartilhamento do oceano de sensações vívidas e alegres, nas ondas da mais pura sacanagem, mas o uso do próprio caralho como uma espada a dilacerar ventres submissos.

Se as velhas pornochanchadas dos anos 1970 e 1980 sintetizavam, na sua malícia festeira e irreverente, com a pitada do deboche nacional, séculos ou milênios da mais tesuda, entusiasmada e criativa literatura erótica, o imaginário sexual pasteurizado, produzido e distribuído em massa, com a chancela de uma globalização totalitária que simula a pretensa liberação sexual nas relações compulsórias e coisificadas, nos empurram todo dia, sem apelação, sob o disfarce do mais infeliz e estouvado catálogo erótico, os ideais sádicos filhos do dominador frustrado – que, se encontrando pisoteado sob os pés da ordem burguesa, desrecalca sua impotência frente aos amos, fudendo, de todas as formas, com a vida alheia, especialmente daqueles sobre os quais possui alguma hierarquia. O próprio marquês, revoltado e incontrolável, cuja obra, bem mais imaginosa e refinada, deu nome ao adjetivo que o caracteriza, coraria como uma freirinha frente ao breviário fascista enraivecido que inspira a nossa modernosa ficção sacana.

O gozo está no meio de nós!

Gravataí, 5 de março de 2019*, 5 de dezembro de 2020

Ubirajara Passos

A verdade precisa ser dita: por trás de Bolsonaro e dos governadores e prefeitos que afrouxaram o isolamento social, incrementando o morticínio, está o interesse indiferente e assassino do grande capital!


dinheiro assassino

Diante do espanto e lamento manifestados com a “promoção” da Região Metropolitana de Porto Alegre, litoral norte gaúcho e região de Palmeira das Missões, no norte do Rio Grande do Sul, à bandeira vermelha (classificação de alto risco de contágio) no sistema de “controle do distanciamento social” adotado pelo Governador Eduardo Leite para combate do coronavírus no Estado, é preciso que se diga algumas verdades que atingem o cerne político e social da crise sanitária no Brasil, que embora incrementada pela irresponsabilidade genocida e tresvairada do Jairzinho Capitão do Mato, teve sua condução piorada pelo relaxamento precipitado das regras de isolamento pelos governos dos estados Brasil afora.

Com o comércio e indústria abertos – antes do tempo e por pura pressão empresarial – muita gente teve de ir às ruas forçado a trabalhar. Os demais se envolveram na sensação de normalidade (se as medidas foram relaxadas é porque o perigo estava passando…) e passaram a lotar as vias públicas.

Como sempre, um bom número passou a desprezar a capacidade de contágio do vírus e saiu por aí fantasiado de malandro do corona, com a máscara no queixo… Tais comportamentos do rebanho, naturalmente rebelde às limitações burocráticas impostas por um Estado que só sabe lhe cobrar impostos e cumulá-lo de regras, sem lhe garantir em troca a mínima condição de dignidade, eram bem previsíveis (ainda mais depois da minimização feita por seu ídolo – 2/3 de Gravataí, na Grande Porto Alegre, onde moro e trabalho, votaram no Bolsonaro) e lhe imputar a exclusividade do aumento do contágio é a mais desavergonhada cretinice.

A grande responsabilidade é das autoridades (governadores e prefeitos), que – cedendo ao clamor dos amos burgueses – afrouxaram as medidas de isolamento social adotadas inicialmente entre o final de março e início de maio.

Chega ao cinismo extremo a declaração de Leite que reputa à população a exclusividade da culpa.

No plano de fundo está a causa oculta de toda a desgraça: a recusa implícita e reiterada da presidência da República em por em prática o auxílio efetivo à economia, amparando pequenas e médias empresas e bancando o emprego e salário da peonada, mediante a taxação de grandes fortunas, lucros exorbitantes dos bancos e a remessa dos lucros das multinacionais às suas sedes no estrangeiro.

Para a elite que nos suga o produto do trabalho – e seus representantes políticos – pouco importa que morram alguns milhares ou milhões de trabalhadores, quando há outros tantos ao lado esperando para serem empregados. Para esta nobrezinha capitalista colonial infeliz, e seus lacaios políticos, o mote é: “Preservação da saúde e da vida que nada! Em nome do lucro, do luxo e do privilégio, a produção não pode parar!”

Temos de dar cabo ao mal, extirpando o seu núcleo, matar a cobra esmagando a cabeça. Assine e espalhe a petição para o máximo de contatos possíveis, clicando aqui!

Ubirajara Passos