Em 21 de junho de 2004, numa fria noite de inverno, no galpão onde morei com meu pai durante dois anos e meio, na Vila Palmeira, interior de Santo Antônio da Patrulha – RS, eu escrevia em meu diário: “Morreu Leonel Brizola. Foi-se a grande inspiração política e arquetípica da minha vida, de forma totalmente imprevista e dolorosa. Eu que, com certeza, fui desde os meus 14 anos, em 1979, o seu maior e mais incondicional admirador, sempre vi em Brizola a coragem e o entusiasmo radical imbatível e brilhante, a sinceridade incoercível capaz de enfrentar a tudo e a todos em prol da verdade, da libertação e felicidade do nosso povo injustiçado. Morre um homem que jamais curvou a espinha, que teve a coragem de enfrentar, dando a cara a tapa, as maiores incompreensões, em nome de seus ideais de justiça e solidariedade. Tenho quase 40 anos, mas, ‘quando crescer’, quero ser como o Brizola.
Naqueles dias, infelizmente, as limitações financeiras e funcionais de funcionário público fudido me impediram de comparecer ao seu velório em Porto Alegre, no Palácio Piratini (onde, como se vê na foto acima, de metralhadora empunho, o Leonel enfrentou a sanha golpista dos ministros militares fascistas e pró-yankees, e garantiu a posse de João Goulart, o herdeiro político de Getúlio, na presidência da república).
Mas hoje, três anos depois, presto a minha retardária homenagem, justamente numa época em que a minha vida fecha um ciclo. Em 2004, após três anos de ostracismo no sindicalismo, eu me candidatava a vereador pelo PDT (fiz uma votação pífia, mas dei, na campanha feita a pé pelas ruas de Gravataí, o meu recado socialista, revolucionário e anti-fascismo lulista), apoiava, através do Grupo 30 de Novembro, a vitoriosa chapa classista “Sindicato é pra lutar”, e, no final do ano, me elegia Coordenador do Núcleo Regional da Grande Porto Alegre, no Sindjus-RS, me tornando, a partir de então, um dos grandes líderes da gestão sindical que se encerrou no último dia 12. Hoje o PDT, englobado no fisiologismo do fascismo petista, tornou-se uma decepção e a chapa, pela qual fui candidato a diretor da Executiva do Sindjus, foi duramente derrotada na eleição de 14 de maio.
Brizola, assim como o “Che”, foi um revolucionário atípico. Ao contrário do Ernesto, jamais disparou um tiro contra o imperialismo em toda sua vida, embora empunhasse a metralhadora na “campanha da legalidade”, quando, governador do Estado do Rio Grande do Sul, em agosto de 1961, diante do veto dos ministros militares direitistas de Jânio Quadros (que renunciara à presidência da república) à posse do vice-presidente João Goulart, utilizando a institucionalidade do cargo, organizou uma verdadeira revolução popular, impedindo o golpe e garantindo a posse de Jango, que encarnava as esperanças de dignidade e justiça dos trabalhadores brasileiros.
Sua arma, que garantiu uma mobilização popular nacional e transformou Porto Alegre em uma verdadeira praça de guerra, tomada por multidões de centenas de milhares de trabalhadores (aos quais o governo do Estado chegou a distribuir revólveres, para a eventual resistência armada), foi a palavra contundente e destemida, transmitida através do rádio, em uma rede que cobria todo o Brasil e, através das ondas curtas, a América Latina: “A cadeia da Legalidade”.
Dois anos antes, em 1959, e menos de um ano após, em 1962, Brizola utilizaria como fuzil a caneta, desapropriando, e transferindo para o controle do Estado, as multinacionais da energia elétrica, Bond and Share, e da telefonia, International Telegraph and Telephone, respectivamente. O que lhe granjeou a posição de inimigo número um, no Brasil, do imperialismo yankee e de persona non grata no Estados Unidos.
Embora formado no estilo matreiro da política gaúcha e brasileira dos anos cinqüenta, o que o levou muitas vezes a cometer equívocos como apoiar o direitoso Ciro Gomes para presidente da república em 2002, Brizola encarnava, com sua verve simples, direta e radical, o que havia de mais próximo do povo comum na política brasileira. E revolucionários de bravata como Hugo Chaves são simples gatinhos angorás perto desta fera. Leonel Brizola não foi nenhum teórico socialista formal e profundo como Lênin, Marx ou o anarquista Kropotkin, mas possuía na sua forma de agir e falar a sabedoria profunda e viva do povo simples – filho de pequenos agricultores que foi – e, embora formado na Faculdade de Engenharia, jamais pensou ou agiu com o elitismo superior e hermético dos doutores.
Sua profunda identificação com o povo trabalhador, de que era oriundo, fez-lhe, em muitos momentos, principalmente na última década, a única e teimosa voz a criticar profundamente a injusta e autoritária sociedade em que vivemos, a reivindicar, concretamente, uma vida real, digna de gente e não de vira-latas, para a grande massa anônima dos brasileiros que rala todo dia, enriquecendo com o seu suor a afetada burguesia local e seus sócios imperialistas internacionais!
Quem mais, senão Brizola, teria a coragem de defender, às ante-vésperas do golpe que derrubou Jango e criou o Brasil da miséria absoluta que hoje conhecemos, no comício da Central do Brasil, em 13 de março de 1964, no Rio de Janeiro, a eleição de uma Assembléia Constituinte popular, que fizesse as reformas de base capazes de iniciar a libertação do trabalhador brasileiro, como a reforma agrária, contra um Congresso Nacional de parlamentares conservadores e capachos do grande capital multinacional?
Ou de defender a renúncia do Presidente da República civil títere do regime militar, no início da redemocratização formal (1985-1989), o poeta de meia-tigela José Sarney, durante todo seu mandato? Ou pregar a renúncia e o fuzilamento do irmão siamês neo-liberal de Lula, Dom Fernando Henrique I e único, em 1999, num dos tantos momentos em que sua atitude, muito mais do que a de um simples social-democrata ou socialista radical, o aproximava de um verdadeiro anarquista!
Brizola foi um tanto personalista e centralizador na condução do PDT (embora, ao contrário das críticas pequeno-burguesas geralmente aceitas, tenha acertado ao se livrar de lideranças partidárias como Cesar Maia e Garotinho, que, mais do que lhe fazer sombra, representavam a demagogia aburguesada, o que acabou por se revelar nas suas trajetórias, após deixar o partido). Mas mesmo seus defeitos não foram mesquinhos, porém dignos das grandes personalidades. Daqueles que têm profundamente enraizada em si a certeza de seus ideais, que sentem correr no sangue a energia revolucionária. E não cansam, teimosamente, até o último suspiro, de combater por um mundo digno da nossa condição de animais conscientes, racionais, sensíveis e criativos, que têm direito a ser algo mais do que uma ferramenta estéril e muda nas mãos insossas, infecundas e sádicas de milionários burgueses, alimentando suas vidas ocas, cheias do brilho artificial dos festins insanos.
Ubirajara Passos
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