Busca


Meio documentário sobre o velho Vinicius, assistido na Netflix, uma cerveja, e me veio à tona a frase e o episódio já mencionados neste blog defunto, que não custa relembrar, ocorridos no saudoso cabaré da Cláudia, até hoje ainda em atividade, no finalzinho da lomba sul da Marechal Floriano, em Porto Alegre, nos tempos da velha boemia do final do século: “Tu é um intelectual. E vem aqui procurar um amor que não existe”.

O filme, a frase dita por um sessentão de camisa de física branca (o que hoje se chama tecnicamente de regata) que fazia estripulias no salão, íntimo da dona e dos garçons (mais do que eu era, então), e que se apresentou como professor da Ufrgs, em seguida, ao censurar o meu espanto com a sua declaração; assim como o depoimento do companheiro de “república” (a do Alemão Valdir, na Amélia Teles, no bairro Petrópolis) Luiz Ferraz (que, no final do ano, esteve em expedição nostálgica ao cabaré Le Boheme, na Pinto Bandeira) – “… é aquela coisa de puteiro, quando a gente a sai de lá volta pra realidade e a realidade é dura e sem mulher” – acabaram por inspirar o poema que segue, infelizmente abstrato e mal concatenado:

Busca

Não conseguindo trazer ao quotidiano
O enlevo intenso das paixões sentidas,
Que se quebravam na rotina besta
Dos protocolos da sobrevivência,

Foi procurá-lo no duro chão da vida
Vivida à força, na contrariedade,

No dilaceramento
Da instância mais recôndita de si.

Foi às putas,

Tristes retalhos da paixão edênica,
Pra ver se  o achava,
No câmbio frio e árido

Do metal que arde nas mãos
Precárias da necessidade,
A carne morna que promete paraísos,

Trazendo à vida a crispação efêmera
Do gelo seco, a queimar de frio intenso.

Não encontrou a ternura refinada,
Cujos anelos o lar extraditava.
Mas, nas precárias tardes apertadas,
Nas breves noites cambaleantes,
No entusiasmo

Que se esvaia aos últimos vapores
Da madrugada bêbada e boêmia,
O surpreendeu, mais real que a seriedade
Dos secos dias sem sal “normais” da vida,

O amor concreto, alugado por minutos,
Mas livre e camarada, exatamente
Por não viver de outras exigências
Além daquelas do instante mágico.

Bem mais real que os idílios sacros
Do bem aceito na decência hipócrita.

Gravataí, 17 de janeiro de 2020

Ubirajara Passos

Respeitável manifestação de um bom burguês puto da vida


Desceu à rua completamente embriagado
E pôs-se a girar, a gritar e a cantar,
Jogando as roupas longe, para todo lado.

Nu, completamente nu,
Giravam ele e o caralho mole,
Dando laçaços como rabo de cachorro.

Era uma figura burlesca e inusitada.
Dava gritinhos, corcoveava, foi-se
Num tropel louco, pelo largo afora,

Mas ninguém riu-se, absolutamente, não se viu
Um único olhar reprovador a sua volta.

Porque, desnudo na alma e em suas carnes,
Vestido estava do mais considerado
Na honrada sociedade hipócrita!!!

Bunda de fora, cu a mostra, corcoveando
O enlouquecido cidadão cumpridor de seus deveres
Trajava ainda a superstição brava
Do “respeito” irracional e reverente:

Trazia à mão negro chapéu de feltro,
Velha gravata floreada no pescoço,

E, garantia total de seriedade,
Uns velhos óculos sem vidro sobre as fuças!

Gravataí, 7 de fevereiro de 2013

Ubirajara Passos

Soneto do Penúltimo Dia


Profundo sábado,
Refúgio sagrado,
De todos êxtases,
És de outra esfera.

Viceja em ti
Um gozo tão sereno.
Não há canção que não conduza às lágrimas.
Não  há cachaça que não alargue a alma.

Em tuas noites
Qualquer raio de lua
É uma viagem às esferas do nirvana.

E qualquer banco de praça nos conduz
Aos mais estranhos deleites
Dos altares ou das camas.

Gravataí, 3 de dezembro de 2012

Ubirajara Passos

O Ermitão


Poeminha cretino surgido em meio ao tédio do final de sexta-feira:

O Ermitão

Ele era um chato,
Pra caralho um chato!
Velho eremita bêbado, vivia
Em transe etílico no seu castelo.

Sua companhia eram cães e gatos,
E a vizinhança debatia, ardente,
Se era bruxo, veado ou lobisomem!

Muitos rondaram a velha propriedade,
Bisbilhotando, sem ouvir um ai
E mais entediados voltaram que o asceta.

Ninguém supunha as fantásticas orgias
Que, nas viagens astrais, realizava
Com sílfides e ondinas deslumbrantes!

Gravataí, 30 de novembro de 2012

Ubirajara Passos

Soneto do Quinto Dia


Sexta da cerveja,
A tua noite reveja
A velha boemia de eras distantes.

Traga o fim do dia
A redenção divina
Da cruz do serviço
Às três horas da tarde.

E, o batismo no copo,
A iluminação
No altar do buteco,
Em comunhão bêbada.

Na noite exaltada
Mergulhemos rumo
Ao paraíso das setenta mil loucuras!

Gravataí, 28 de novembro de 2012

Ubirajara Passos

Soneto do Terceiro Dia


Terceiro poema da Heptalogia de Novembro (título sugerido pelo Carlão, ontem à tarde):

Soneto do Terceiro Dia 

Quarta-feira linda,
Velha namorada,
Sol e ventania,
Saias levantadas! 

Suave e esperançoso
Topo da semana,
Faz-nos rir a toa,
Num bater de asas! 

As feiras são feiras,
Mercúrio, o mensageiro,
Entrega-nos cartas de pura bonomia. 

E nosso olhar se perde,
Apesar da rotina,
Nas coxas sedosas daquela messalina. 

Gravataí, 28 de novembro de 2012 

Ubirajara Passos

 

Soneto do Primeiro Dia


Poeminha auto-explicativo, parido em plena circunstância concreta (ainda que a ressaca de hoje seja apenas o resquício, mais moral que físico, da do dia anterior):

Soneto do  Primeiro Dia 

Segunda-feira:
Ressaca e asneira.
Torto levanta-se
E torto anda-se. 

Vai-se arrastando,
Junto com as horas,
Aos trambolhões,
Toda a leseira!

 Abandona  a cama
Com um peso enorme
O morto-vivo. 

Vai ao trabalho
Tendo-o por feira
E lá descobre que é funerária! 

Gravataí, 26 de novembro de 2012 

Ubirajara Passos

Maldição


Poeminha pessimista que escrevi em Porto Alegre, uma semana antes de viajar para a “fazendola” do alemão Valdir, em “Esquina União”, às margens do Rio Cascavel, que dá nome à localidade fronteiriça (Rincão Cascável), no distrito do Mato Grande, interior do município missioneiro e gaúcho de Giruá:

Maldição

Maldito seja o sadismo que sepulta,
Antes mesmo do próprio nascimento,
Os suspiros de tesão e os gritos de prazer!

Maldita a tirania introjetada
Que interdita aos seres a doçura
Dos afagos e dos fogos mútuos,
A uns secando a vida em soberbia,
A exigir mil predicados para a entrega,
E a outros frustrando e sufocando o impulso
Na rejeição cheia de si dos desejados.

Maldita seja a manipulação hipócrita e infame
Que, atendendo pelo apelido,
De moral, etiqueta ou estética
Separa corpos, dilacera almas,
Infelicita meia humanidade

E cria este poema empolado e seco
Cheio de eruditismos e ademanes
Para tratar de assunto, ao natural,
Irreverente, malandro e folgazão!

Porto Alegre, 3 de fevereiro de 2012

Ubirajara Passos

Lua Nua


Poema escrito hoje de manhã, enquanto vinha para o trabalho, a pé, ainda inspirado na fantástica lua de sábado passado (a mais próxima da terra em 18 anos, fiquei sabendo hoje em um blog do wordpress):

Lua Nua

Ó lua nua, que te mostras,
Despudorada, a toda humanidade,

Tu nos incitas, com tua pele branca,
A mente e as pernas a vagar nas madrugadas
Frias do outono,

Conduz-nos com este teu olhar
A obscuros e cálidos refúgios
E faz-nos uivar,
Encharcados de cachaça,
No frenesi do gozo sem barreiras.

Gravataí, 21 de março de 2011

Ubirajara Passos

Tertúlia de Compadres em Fundo de Quintal


Segue abaixo publicado um pobre poema que escrevi hoje à tarde, entre o vento varredor compulsivo e a simpatia fascinante e as gracinhas de minha filha Isadora, que, nos seus profundos e espontâneos dois aninhos, encarna  um buda embriagado no epicurismo (toda feita de sorrisos e travessuras que, indagada sobre o que está fazendo, responde, entusiasmado que é “arte!”):

Tertúlia de Compadres em Fundo de Quintal:

A tarde corria
Embalada no vento,
Ao sussuro da aragem,
No arrepio da brisa.

Na tépida sombra
Do arvoredo antigo,
Refrescando a alma,
Aquecendo os corpos
A vetusta garrafa
De “São João da Barra”.

E o leal compadre,
Comparsa de eras
De boemia e trago,
Entre um gole e outro,
Lhe recomendava,
Por falta de assunto:

Companheiro velho,
Não te atires tanto
Na paixão da noite,
Desmanchando-te todo
No fogo do afago,
Na graciosidade
Das lindas tigresas
De pelo macio e tesão ronronante,
No vulcão do gozo,
No riso picante
E na sutil ternura
Dos salões sacanas.

É (clichê antigo)
Uma perda de tempo,
Um desgaste inútil,
E, acima de tudo,
É pura ilusão!

E o parceiro, inspirado
Pelo sagrado conhaque,
Redarguiu, entusiasmado:


Caríssimo amigo,
Sei que tens razão
Em tudo que me dizes,
Mas prefiro ainda
À realidade dura
E sem sal dos lares
Pequeno-burgueses,
Da opressão doméstica,
Uma gostosa e lúbrica ilusão!

Gravataí, 13 de novembro de 2010

Ubirajara Passos