De um certo pastor de homens…


Não vim ao mundo por obra de outra coisa
Que o acaso sem rédeas que a todos nós comanda
E, insciente, só transporta a ânsia
De prazer puro que anima-nos os corpos.

Senti, no fundo de cada molécula,
A espontânea vibração de vida
Que se elevava junto a outras tantas
No crepitar arisco à rigidez
E, camarada das outras chamas livres,
Unidas na empatia mútua,
Compunham o fogo que ceifava campos
De ervas amargas e intragáveis
Abrindo espaço ao prazer doce e vívido.

Por não saber de sádicos tesões
Que satisfazem-se fustigando os lombos
Dos rebanhos submissos mourejantes,
Eu, cujas mãos sempre proveram-me os dias,
Fui me juntar aos mais simples e oprimidos
Pelo látego da soberba cruenta,
Em cujos corpos a fagulha reprimida
De prazer e liberdade ainda vivia.

Não procurei armar milícias revoltosas,
Porque sabia que a vida livre e digna
Não se garante na imposição
Dos aparatos do obrigatório,
Mas na recusa íntima à obediência
Por cada servo desperto da ilusão
E erigido em soberano de si mesmo.

Foi assim que provi meus companheiros
Da jornada simples e espontânea
Não de espadas, lanças e porretes,
Mas da consciência autodeterminada
Para romper com o servilismo vil
E se negar a continuar rebanho
Sob os pastores da iniquidade.

Foi assim que, sabedor do meu destino,
Não recuei, nem fiz firulas
Aos pés dos poderosos que temiam
A faísca que, soprando em cada
Humilde peão tornado refratário à servidão inglória,
Daria cabo, na fogueira imensa
Das almas livres, à opressão sem nome
E ao butim glamourizado do alheio sofrimento.

Se me furtasse ao compromisso assumido
Seria apenas mais um ruidoso
E narcísico hipócrita infrutífero,
Ou um covarde refletido que, sabendo
Que o rebanho ainda era temeroso,
Se encolheria em uma vidinha confortável.

Não procurei, portanto, algum martírio,
Mas, coerente com a vida que habitava-me,
Desprezei aos que advertiam-me,
Segui o caminho traçado e vi-me entregue,
Impotente e sem defesa,
Ao suplício
Nas garras alarmadas da opressão.

Vila Natal, 23 de dezembro de 2020

Ubirajara Passos

Enquanto bocejamos, a morte escorre sob nossos pés – É URGENTE AFASTAR O VÍRUS BOLSONARO DO PLANALTO!


morte bolsonaro

O equivalente a uma cidade de porte médio inteira (100 mil pessoas) desapareceu do solo do  Brasil, desde março, por conta da política de “omissão” do governo federal e continuamos a viver como se nada estivesse acontecendo, enquanto a mídia dá destaque à canalhice de prefeitos paus mandados do empresariado local. Em Itajaí, o ilustre alcaide quer, agora, literalmente “enrabar” o povo (sem cuspe e com ozônio) para não ter de tomar as medidas sérias de combate ao Covid-19 (isolamento social).

A questão é que a grande massa de infectados e mortos está justamente na classe trabalhadora, não somente entre os que trabalham no contato direto (área da saúde) ou nas atividades essenciais à sobrevivência de todos (como no abastecimento, correios, fornecimento de água e luz), mas um grande contingente se encontra no comércio e indústria, e mesmo na precariedade da economia informal, forçado a abraçar o “Corona”  em razão da sádica sede de lucro dos patrões.

E este povão miserável, de cara amassada, roupas desbotada e sapatos gastos, pouco importa para o topo sofisticado de nossa sociedade, que pode tranquilamente fazer suas caminhadas e exercícios diários nos equipamentos domésticos de ginástica, tomar seu vinho de milhares de reais a garrafa e acompanhar na tela de N polegadas o show da desgraça alheia na banalidade estatística dos boletins.

Enquanto não morrer um figurão da alta sociedade ou da classe política (coisa praticamente impossível, pois os donos do país e seus lacaios de luxo não precisam botar a cara nas ruas na mesma condição da escravaria assalariada), continuará a anestesia midiática que nos envolve.

Na raiz de tudo, se encontra um governo, o único no mundo, que caga e anda para a ralé majoritária, se recusando a utilizar os recursos (arrecadados ou mantidos nas contas dos detentores do grande capital) gerados pelo trabalho suado, sem retorno e à custa da própria vida, da peonada, para salvar as centenas milhares de vidas brasileiras, pisoteadas como formigas pela desfaçatez genocida, que logo se tornarão milhões.

Não há outra saída que a rebelião da grande massa “descartável” que agora já não padece somente a morte em vida de mourejar como gado para o conforto e o luxo sádico dos nossos amos, mas literalmente caminha para a própria extinção física, para gáudio dos feitores de escravo do imperialismo econômico internacional e suas respectivas sinhazinhas e sinhozinhos.

É urgente tomarmos as ruas, não na marcha rumo ao morticínio sem sentido nos locais de trabalho, mas para, no mínimo, derrubar o grande responsável pela tragédia no segundo país mais infectado do mundo e impedir sua absurda continuidade.

Como primeiro passo, cabe engrossar a petição da Frente de Servidores Pró-Impeachment e pela Vida do Judiciário Brasileiro, clicando aqui, assinando e a espalhando pelo máximo de contatos possíveis.

Ubirajara Passos

Ou o Brasil acaba com o Messias, ou o Messias acaba com o Brasil!



saúva bolsonaro

Há exatos 132 anos o Brasil era o último país do mundo a abolir a escravatura. E o fazia num único e breve artigo (o segundo se limitava a revogar as disposições em contrário) que, ao invés de extinguir definitivamente o uso da maioria dos brasileiros como coisa ou animal de criação, sem direito a nada além do que mourejar debaixo da chibata de seus donos, deixava os “libertos” na condição de “desocupados” vagantes pelas estradas rurais rumo à periferia urbana, caso não se sujeitassem a, permanecendo no local do antigo cativeiro, continuar como servos do sinhozinho, que se negava a pagar salários e ainda estava puto com o Império por não ter lhe “indenizado” pela perda das rezes falantes.

Não foi aventada sequer a realização da mínima reforma agrária, para extinguir o latifúndio que vivia da mão de obra cativa e garantir a sobrevivência dos ex-escravos na terra em que trabalhavam, e nem qualquer esquema estatal que lhes garantisse qualquer emprego digno, nas cidades, da nova condição de  trabalhadores livres… para morrer de fome ou alugar seus braços na mais reles funções assemelhadas à antiga condição, como a de empregada doméstica, cozinheira ou faxineira da casa pequeno-burguesa. Proeminentes abolicionistas haviam tentado discutir a necessidade da reforma agrária, mas o Império, embora constitucional, era Império, regime monárquico que mal ou bem guardava os velhos ranços da monarquia feudal europeia, onde o rei era formalmente o “dono da nação”, abaixo do qual se sucedia uma hierarquia de sucessivos coproprietários nobres, até chegar ao nível dos despossuídos do direito à própria vida, que podia ser revogado numa simples gritaria do Sinhô.

Esta mesma reforma agrária, aliás, foi o pretexto, na tentativa tímida de desapropriação dos latifúndios localizados ao longo das rodovias e açudes federais, para derrubar o Presidente João Goulart e estabelecer a ditadura que começou a revogar os direitos trabalhistas formais adquiridos pela peonada na ditadura de Getúlio e entregou o Brasil definitivamente nas mãos do imperialismo econômico internacional, para gestar a miséria e a violência, que o NOVO SINHOZINHO, RETARDADO E BIRRENTO pretendia combater com o dístico “bandido bom é bandido morto”, que cada vez mais se faz aplicável a ele próprio.

Hoje o Brasil se notabiliza por ser o único país na face da Terra  cujo chefe máximo do Poder Executivo (que acumula as funções de Chefe de Estado) se recusa a tomar medidas racionais para combate ao Coronavírus e à precariedade econômica dele decorrente. Ao invés de incentivar e fiscalizar a única forma concreta de preservação da vida atualmente (o isolamento social) e prover os meios de garantia da sobrevivência econômica e do emprego do grosso da população, Bolsonaro reitera, dia após dia, suas invectivas contra as medidas adotadas espontaneamente por prefeitos e governadores.

Há semanas, reclama aos brados, com seus seguidores, pelo retorno da peonada aos postos de trabalho e a abertura do comércio, sob o pretexto de garantir empregos (ao invés de coibir demissões e bancar a folha de pagamento de pequenos e médios empresários) e o “bem-estar da economia”  (na verdade os lucros exorbitantes dos “donos do Brasil”, encerrados em suas luxuosas mansões e resguardados a sete chaves da contaminação a que pretendem expor seus escravos assalariados).

E suas debochadas e furibundas bravatas, neste exato momento, já surtem fartamente os efeitos denunciados por quem se opõe a sua atitude, não se restringindo ao terreno das hipóteses. Ultrapassando as dez mil mortes e batendo, ontem, o recorde de 881 mortes em 24 horas, o Brasil já se classifica entre os seis maiores países afetados pela apocalíptica pandemia e, se mantiver o atual ritmo, decorrente do relaxamento das medidas de isolamento a que autoridades e boa parcela da população aderiram, em no máximo dois meses, terá ultrapassado um milhão de mortos, deixando para trás a nação mais afetada, os Estados Unidos da América.

Entretanto, apesar da crise instalada após a saída do Ministério da Justiça de seu ex-comparsa, Sérgio Moro, cujas denúncias de tentativa de interferência nas investigações da polícia federal seriam suficientes para o impeachment do Presidente da República, nada acontece de novo no solo do Brasil. Nem os representantes do poderio econômico das classes dominantes que poderiam dar início ao processo para afastar o algoz da nação (especificamente o Presidente da Câmara dos Deputados, casualmente eleito pelo sucessor do partido dissidente da antiga ditadura – o DEM, provindo do PFL, que fazia parte do PDS, antiga Arena, às vésperas da eleição indireta que deu fim formal ao regime militar), nem mesmo a oposição hegemônica de “esquerda” (afastada do governo da República no golpe parlamentar a la Paraguay de 2016), movem um único dedo para afastar o louco genocida e garantir a vida do povo brasileiro.

Sem que Rodrigo Maia cogite de instaurar o processo pelos crimes de responsabilidade e Lula se disponha a entender que já não haverá eleitores para garantir, evitando o confronto, a vitória de seu partido nas próximas eleições municipais, assistimos diariamente, isolados em nossas casas (os que ainda não foram coagidos pelos fofos patrões ao retorno ao trabalho ou se lançaram espontaneamente nas ruas, atendendo ao canto de sereia de seu misógino e sexualmente enrustido líder) a escalada do contágio e da mortandade, sem que nenhuma entidade formal ou grupo organizado tome efetivamente a liderança para derrubar os responsáveis  institucionais pela tragédia que está acabando fisicamente com o Brasil.

Não há partido, com exceção da chamada “extrema esquerda”, central sindical, ou qualquer outra força política e social de massas, que esteja efetivamente  conduzindo a última e única possibilidade efetiva que temos de continuar vivos, e não submetidos ao infausto sorteio das vítimas que comporão, no mínimo, o milhão de pessoas a serem eliminadas do chão brasileiro pela maior pandemia desde a Gripe Espanhola.

Tudo se passa diária e recorrentemente, de uma tal forma que, na hipnose resultante do cansaço pela repetição, acabamos por nos acostumar ao genocídio em andamento, como se fosse a mais comezinha das rotinas, sem esboçar a menor contrariedade ou simplesmente nos acomodando à inércia dos que poderiam e deveriam estar na vanguarda da reação ao morticínio patrocinado pelo Governo Federal.

Até quando nos submeteremos, abobalhados e incapazes, como o gado conduzido ao matadouro, sem ameaçar qualquer inconformidade e a mínima resistência à nossa própria extinção física, em nome dos lucros de meia dúzia de senhores que se julgam nossos donos (nos considerando uma ralé com menor importância do que seus cachorrinhos de estimação) e são tão arbitrários que não se dão conta de que logo poderá não haver escravos suficientes para produzir seu luxo injustificável e consumir suas mercadorias?

Quantos milhões de nós terão de deixar a existência em nome da sádica sede de luxo e privilégio de uns poucos a que pouco importam nossas vidas, pois têm condições de substituir, sem maior preocupação, os trabalhadores que sucumbirem, como se repõe peças de uma máquina, até o momento em que o contágio tiver crescido tanto que venha bater à própria porta de suas mansões?

Infelizmente, para os mais ponderados e “racionais” opositores da ideia revolucionária  (não a mera revolta a substituir governos, mas a transformação voluntária e consciente de toda a sociedade, eliminando a dominação  da grande massa dos trabalhadores responsáveis pela produção material diária da vida), a própria garantia física concreta de nossas vidas passa necessariamente, neste momento, no Brasil, pela organização espontânea, consciente e determinada dos milhões de peões de todo o tipo (de agricultores a professores universitários) por este país afora, de modo a garantir, no mínimo, o afastamento do facínora que nos governa, e a adoção das devidas providências sanitárias e econômicas para garantir que o Brasil continue existindo, e seja governado pelo povo e para os brasileiros! Dê o primeiro passo, acesse AQUI o link, assine e compartilha a petição da Frente de Servidores do Judiciário Brasileiro pela instauração do processo de impeachment do palhaço tétrico Jair Bolsonaro.

Ubirajara Passos


Banzo


Do fundo do meu ser uma tristeza
Dolorosa e empedernida me apunhala.
Impiedosa e ressentida, não há rogo
Que faça cessar suas investidas.

Ante o brutal poder que me esmaga
Nas densas ondas de uma reina antiga e azeda
Não há revolta eficaz ou afetada fuga.

O menor esforço, a indiferença mais buscada
Se dissolvem tão logo os empreendo
E afundo ainda mais no melancólico.

Mas o negror que anula a alma e a cristaliza
Numa apatia imóvel e excruciante
Não vem de fora, está sedimentado
Nas mil camadas de uma vida rota.

Gravataí, 11 de janeiro de 2019

Ubirajara Passos

Paixões, Asneiras e Tristezas finalmente publicado


Jamais usei este blog para promover minha vaidade (que simplesmente não existe, por questões meramente técnicas e não por inclinação emocional, é claro). Tanto que, quando uma crônica deste blog (A foda sagrada de Drukpa Kunley) foi ao ar, na primavera de 2011, com direito a comentários efusivos e sacanas de mais de meia hora em programa noturno da KFK, rádio web de meu amigo Barata Cichetto, não dei a notícia aqui.

Mas este velho livro de poemas foi tão maltratado nas tentativas feitas, no século passado e neste, pelas editoras nacionais, que sua autopublicação no site da multinacional Amazon (em versões e-book e impressa) e no nacional Clube de Autores (versão impressa sob encomenda que pode ser paga com boleto), merece o registro neste blog, no qual seus poemas foram integramente publicados.

Não há no livro, portanto (com exceção da profunda revisão ortográfica e gramatical) grandes novidades para os leitores do Bira e as Safadezas, além do possível prazer de ter os poemas reunidos num único volume impresso ou num prático e-book.

Mas, para que a frustração não seja completa, reproduzo abaixo alguns trechos da biografia constante no final, que traz alguns fatos ainda não mencionados neste blog sobre a “República” do Alemão Valdir no bairro Petrópolis, em Porto Alegre:

“Com a chegada do sobrinho de Valdir, Rogério Seibt, de Santa Rosa, que se hospedou no apartamento para realizar o curso pré-vestibular, em abril de 2002, se constituiria, no Edifício Morumbi da Rua Amélia Telles, a lendária “República do Alemão Valdir” (que durou até janeiro de 2004, quando o alemão retornou a Santa Rosa), frequentada, entre outros, por Alexandre Vorpagel (o “Gordo Ale”), amigo e conterrâneo de Rogério, que cursava Radiologia na capital, e por Luiz Miranda Pedreira do Couto Ferraz (o “Baiano Luiz”), emigrado de Salvador, formado em Física e Filosofia e emérito boêmio, blogueiro e colecionador de falenas, que Valdir conhecera no Hotel Elevado, na Avenida Farrapos, quando viera morar em Porto Alegre, em 1996, e se tornaria parceiro de cachaçada, boemia e sacanagem de Bira e Valdir na sauna La Luna, na rua Barão do Amazonas.

Aí, na “República” (como Valdir constatara se parecer o apartamento, numa súbita inspiração num almoço de domingo), os fins de semana, e às vezes os dias úteis, eram agitados pelas infindáveis conversas, anedotas e histórias rocambolescas dos frequentadores, sempre devidamente regadas à cerveja, com exceção do “dono da casa”, que mantinha, desde 2001, tratamento com antidepressivos e raramente bebia. Às vezes, na ausência do Luís, em noites entediadas, muitos poemas amorosos deste livro vieram à tona pela primeira vez na internet, nos “chats” do alemão Ale com suas namoradas virtuais, enquanto Bira os lia em voz alta. E aí nasceram uns quantos poemas datados de Porto Alegre, aqui publicados, como “!” , Amargo Mate da Amargura , Embriaguez e Menestrel Equívoco.”

Ubirajara Passos

A negra noite da alma


A negra noite da alma

A dor da madrugada,
O desatino duro e distante dos quartos anônimos,
O mergulho na embriaguez disforme
Da escuridão silente e indiferente aos gritos

Desesperados dos que se perderam
De si nas brenhas diurnas da rotina
E penetraram na profundidade
Apavorantemente branca

De uma vigília eterna cumpridora dos deveres
E vem buscar refúgio nos porres tristonhos
De velhos butecos de luz amarela.

Uma rota bandeira que já não balança
Nem nas tardes mornas de um céu de domingo.
Um café sem açúcar, esquentado de novo.
O riso obrigatório da euforia falsa.
As novidades velhas das redes sociais.

O sem sentido tão grande
Que nem dói, mas só arrasta
Nossas mentes insones num mar branco e sem ondas.

Não grite ao portão de granito quando vierem
Te visitar todas estas “entidades”.
Pois não há rogo que as afaste e só após varrerem
Todo sossego modorrento e informe
Te abandonarão ao calor de um novo dia.

Gravataí, 17 e 20 de julho de 2016

Ubirajara Passos

Conto de um Velho Tempo


Após a derrota do Movimento Indignação nas eleições para a direção do Sindjus-RS, em maio de 2010, decidi que iria escrever “literatura para ganhar dinheiro”, como andava me recomendando o companheiro Régis Pavani, e um belo dia resolvi participar de um concurso de contos.

O detalhe é que o texto não poderia ter menos de 20 páginas e tinha exatamente um mês para escrevê-lo. E, passados uns vinte dias, eu havia redigido no máximo os sete primeiros parágrafos e o poema que o segue. Comentei, na época, com o alemão Valdir este meu projetinho de conto e ele, para variar, se entusiasmou e me disse que, a pretexto do que já havia escrito, poderíamos aproveitar para discorrer sobre as mais diversas questões filsóficas e políticas, parindo um verdadeiro conto de tese!

No embalo da euforia bergmanniana (não do sueco escandinavo, mas do “alemão” sul-riograndense descendente de imigrantes), escrevi os parágrafos 8º a 23º, mas então já estávamos em 13 de setembro (o conto havia sido iniciado em 10 de agosto), e o prazo de envio para o concurso já se havia ido.

O conto ficou engavetado e tempos depois acabei por copiar um diálogo meu com o companheiro Valdir no msn que pretendia aproveitar nele e simplesmente esqueci-o.

Semana passada, indo revê-lo, tive o maior susto ao dar com a cópia da conversa no final do texto, de que já não me lembrava, e, acrescentando os 6 últimos parágrafos (no qual cometi um certo anacronismo na fala final do “Fausto” em relação ao ano em que passa a conversa no texto) e, trocando os nomes, aproveitei-a na íntegra, até para homenagear o velho amigo, dando o conto por finalizado e deliberando publicá-lo aqui.

Saiu-me, infelizmente, um texto bastante sofrível, cheio de discussões e devaneios filosóficos, mas até por recordatário, resolvi publicá-lo. Ao leitor que tiver a coragem de emaranhar-se nesta selva literária, garanto que, apesar da forma, não perderá de todo seu tempo, desde que tenha a devida paciência. Segue o texto:

Conto de um Velho Tempo

Naquela manhã, pouco antes do nascer do sol, levantou-se, na penumbra, sob a luz quase morta da lamparina, vestiu a toga e foi andando lentamente até a ampla porta envidraçada que dava acesso ao balcão.

Na clareira em frente, os primeiros raios pálidos do dia se esgueiravam, preguiçosamente, rompendo a semi-escuridão povoada de sombras esquivas e fugidias.
Enquanto a brisa úmida e gelada lhe roçava o rosto, sorveu a taça metálica com vinho e sentiu a estranha presença.

Não. Não se tratava do espírito mensageiro daquela estranha seita oriunda dos confins do Oriente, cujo apelo místico-histérico e escatológico era tão forte que se espalhara como um rastilho de pólvora pelo Mediterrâneo ao ponto de entusiasmar a própria mãe do Imperador, que a ela aderira e convencera seu filho a dar-lhe alguma proteção.

Nem era Lídia, desperta de um profundo sono, povoado de sonhos maravilhosos e envolventes, que vinha, lânguida e doce, lhe entusiasmar o corpo com um devoto e apaixonado beijo na tábua do pescoço e suas mãos a percorrer-lhe o peito, sob a túnica, num afago enternecido e provocante.

Mas era uma vibração profunda e densa, dotada de uma luminosidade arrebatadora, convincente e entusiástica como a carne fresca da mais dedicada, espontânea e excitada amante. Não havia naquela ante-manhã qualquer ruído além do farfalhar das folhas e do bater de asas abrupto e veloz da última das aves noturnas a largar de seus afazeres e ir buscar o repouso nos braços de Morfeu. Porém, era como se o próprio Pan estivesse, absorto e inspirado, a tocar melancolicamente a sua flauta, no encerramento da farra dos elementais.

O mergulho nas ondas edênicas do inconsciente rompeu-se, então, importuno e inesperado. Um galho seco estalou no chão, no canto sudoeste do jardim, e surgiu, diáfano como um espectro habitante do Hades em viagem entre os mundos, a figura de um velho ancião, cuja postura ereta, intensa e decidida contrastava com as melenas brancas, que desciam, pródigas, desde o topo da cabeça, engrossando e confundindo-se na barba espessa, como uma branca e espumante cachoeira. O aspecto revolto e volumoso, agitado no verbo do poderoso arquétipo feito carne, lhe dava exatamente esta impressão: a de uma corredeira veloz e violenta a romper em meio a um declive coberto de plácida e densa relva.

E, tronitoante e metálica como o a cachoeira, irrompeu a voz, que dizia:

“Sou o espírito do tempo,
No espesso breu dos confins do universo
Eu dormitava, imóvel,junto ao pólo
Do setentrião, enquanto os homens se agitavam
Nos afazares vãos e iguais de todo dia,
Até que tua mente despertou-me
Com um ruído que rompeu a aurora!”

– Maldito vinho é este que me faz ver sombras falantes no primeiro gole, e, ainda por cima, esnobes e metidas a eruditas, a fazer discurso em tom declamatório?

– Não é o vinho, meu caro amigo. Não te preocupes que não estás delirando, mas mais sóbrio do que nunca! Vives, todo dia, tua vida em quase absoluto sonho, inciente e heterônimo, e agora despertaste, em meio às estranhas e acidentadas fronteiras entre a escuridão prateada e a dureza pétrea da claridade!

– E, além de intelectual almofadinha, é metido a poeta de quinta! Puta que pariu! Se não é o delírio do princípio do envenenamento (sabe lá o que Lídia não anda pretendendo – tanta espontaneidade na entrega e tanta doçura é de desconfiar mesmo!) é loucura, com certeza! Pelo visto as minhas engrenagens mentais se desarranjaram de vez e ando pior que os adeptos do tal Nazareno!

– Se delírio fere, experimenta isto então! – E o vetusto vulto, deslocando-se em uma velocidade instantânea, veio bater-lhe com um bastão no cotovelo, provocando aquela sensação de choque elétrico, que na época devia ter outro nome, o que lhe fez desconfiar que – talvez – estivesse bem acordado e senhor absoluto dos seus sentidos.

– Muito bem, meu camarada, se não és o produto da minha pobre mente insana (que diabo é isto? estou eu mesmo, agora, a falar em tom empolado e declamatório!), que diabo fazes aqui e o que pretendes?

– Como te disse sou o espírito do sempre, o presente absoluto, que, paradoxalmente é limitado e eterno! E, já que me rompeste o imensurável descanso, vim te mostrar algumas coisas que te farão perder a tranqüilidade pelo resto de teus dias, mortal impertinente!
– O tempo é sádico, então?

– E tu tens alguma dúvida sobre isto? Basta olhar ao teu próprio redor e terás as provas mais banais, óbvias e esclarecedoras! O velho Cronos é extremamente cruel e tosco, e tem o mau hábito de seguir sempre na mesma direção, e nunca pára por nada, nem ninguém! Além disto é surdo, senão dissimulado, e não adiantam rogos, nem lamentos. Nem mesmo espinafrações. Por mais que o mandem tomar no cu ou o ameacem, ele que é o próprio fiofó do universo, jamais volta atrás! E pior de tudo, é que, além de teimoso e rabugento, tem um oceânico humor negro. Basta que uma peça de qualquer coisa saia fora de seu próprio lugar que, se deixares a coisa por conta do Tempo, vão outras se perdendo, e a coisa vai se desmontando e desfazendo numa bagunça infinda, da qual não há volta e nada sai de útil e organizado. Ou quem sabe pensas que é por acaso, ou culpa exclusiva de forças como a gravidade, que tudo aquilo que vive pendurado, e no início aponta para cima, com o andar do Tempo, vai cansando, perdendo as forças e pendendo para baixo até cair e, muitas vezes, arrojar-se ao chão e apodrecer! E tudo quanto é liso ou brilhante e belo, mesmo a cara ou a bunda da mais culta e fogosa hetaira, fatalmente acaba por enrugar-se, desbotar e transformar-se num horrendo monte de ruínas, qual mocréia palaciana ou escrivã cristã? Ou te iludes que é a ação do vento, do sol, ou o desgaste do uso repetido que faz as coisas que crescem e aceleram irem depois diminuindo e se tornando vagarosas e, por fim, mortas e paradas? Porque não crescem, se tem dentro de si o tesão do aumento da estatura e do movimento, para sempre e acabam chochas, moles e sem graça? A culpa toda é do tempo!

– Me desculpe, sábio e calculista mestre (que medes muito bem o teu discurso, como fosses senador), mas não lhe parece que esta força da Natureza deveria, como um dos criadores deste mundo, agir segundo propósitos racionais e organizados e não por uma vontade arbitrária e temperamental, qual deus grego reinento e vingativo?

– Meu caro e ilustre “pupilo”, não concluas do que falo que ele é pérfido e maldoso! O Tempo possui lá os seus, por mim nominados, defeitos, mas são particularidades da constituição de sua personalidade e de seu temperamento, não o resultado de decisões sacanas e propositais! Se os seios de uma princesinha cheirosa, cheia de mimos e maliciosas e birrentas vontades nocivas, (como aquela gostosa e exótica dançarina da nobreza colonial da periférica Palestina, que atendia pelo apelido meio italiano de Salomé), acabam por perder suas cores, sua tepidez e se transformam num nauseante monte de rugas caídas, ou se um garboso e arrogante escravo reprodutor, forte e imbecil como Peruca Camargorum, acaba por se tornar um raquítico, cambaleante e inofensivo ancião, sem serventia nem prazer nenhum, certamente a culpa não é do velho Tempo. Há um outro deus, cretino por princípio este, de nome Genes, que se diverte à custa dos mortais e lhes amarra os pés na caminhada sem volta nem desvio por que os leva Cronos, e, depois de alçá-los ao cume dos montes, se acaba todo em gozo e gargalhadas (as mais doidas e agudas dos infernos) ao jogá-los ao mais profundo e pantanoso abismo!

– Que tenha um cúmplice safado se admita. Mas convenha, meu nobre “Senhor” (com todas as prerrogativas do termo, que parece que és mais teimoso ainda que o próprio asno, ou o tal gladiador de serviçais bucetas), nestas coisas de levar ao absoluto dano tudo quanto tem um mínimo deslize há sem-vergonhice pura, pensada e caprichosa!

– Pois é neste ponto, justamente, que o rio dos sucessivos momentos é mais inocente e poderia, amoral e livre, apesar de seu jeito arredio e sem imaginação, tornar-se o mais brilhante e benfazejo colaborador dos homens! Se ele não pode contra seus irmãos mais poderosos, que respondem pela constituição da essência dos mortais, a estes foi dado o poder, ao qual o Tempo, infelizmente, não tem o menor acesso, de mudar suas atitudes e decisões e de repor ou reparar a peça quebrada ou deslocada, ou reorganizar e mudar o plano todo de suas existências específicas, e o tempo, burro e limitado como é, que segue sempre em frente e para um único ponto, acabará, por guiar as coisas pelos novos rumos determinados pelos pobres tipos humanos, sem nenhuma concessão, até que seus cósmicos irmãos reconduzam os mortais ao atroz e final destino. Nada mudará no final da jornada dos precários animais pensantes. Todos fatalmente serão conduzidos à cova para desfazerem-se como objetos largados ao léu e desaparecem da memória das gerações vindouras, mas, se ao invés de se envolver em minhas lamuriosas e recalcitrantes manifestações, se desviarem do mal enjambrado, do monótono e do repetitivo (da tradição de seus anciões azedos, inclusive), se refizerem seu itinerário como se fosse possível renascer e reiniciar todo dia tudo, terão a mim, Eternidade unidirecional, burra e obediente, por aliado o suficiente para gozar de algum prazer e validade em sua condição precária e provisória!

– Isto de se refazer sempre, como se nada houvesse antes há de tornar-se monótono e besta também! Mas vem cá! Cadê os entes ou fatos inquietantes? Com truques como este do bastão tu prometias bem mais do que este discurso filosófico sem fim! Eu esperava mais ação! Meditações sobre a finitude humana eu as encontro em Sêneca, Heráclito ou em Platão e Sócrates… Pra um espectro elemental és um tanto humano! Quem te mandou aqui pra me encher o sac…

Não terminou a frase e, previsível e obedientemente (para nós que acompanhamos as acompanhamos de longe) as coisas começaram a mudar. Árvores, a casa, o céu, o chão, todo o cenário começou a girar como uma esfera, a trocar de lugar, a se desfazer e misturar como uma aquarela borrada. Tivessem aparecido aquelas luzinhas coloridas logo no início e suspeitaria ter fumado um daqueles estranhos cigarrinhos de hachiche que eram fabricados no Oriente, lá pelas bandas de origem dos tais nazarenos, que só podiam viver no barato da tal erva para seguirem ao sacrifício no Coliseu, direto à boca dos leões, com o olhar esbugalhado, cantando, alegres,como uns loucos. Isto até a Imperatriz-Mãe Helena adotar seu culto e resolver protegê-los. Pois agora tudo andava se invertendo em Roma, também, e os ex-perseguidos começavam a ocupar postos de poder e a oprimir por sua vez, igualmente.

Mas não vira qualquer luz diferente flutuando a sua frente. Simplesmente o mundo parecia estar se dissolvendo e revolucionando por si e por todo lado. O que reavivou suas suspeitas de envenenamento. E, antes que pudesse iniciar a ladainha de auto-piedade paranóica e hipocondríaca, viu-se projetado num novo mundo, estranho e barulhento, tremendamente sujo e tão ou mais agitado que a turba no espetáculo previsível e horrendo das arenas de jogos.

Não mencionarei aqui as surpresas de Lucilius (que este era o nome de nosso protagonista, se não o citei antes foi por estilismo frívolo e a fim avivar no leitor alguma inquietação mental no meio desta monótona e arrastada narrativa) com as tecnologias incompreensíveis (para os seus olhos, sobrenaturais) e as sutilezas excêntricas do novo cenário. Isto para nós é óbvio, além de ser um discurso narratório extremamente surrado. Cabe apenas mencionar que, excetuando-se alguns comportamentos de bizarra especificidade, os dramas e rotinas da vida conjunta entre os homens não diferiam absolutamente daqueles com que nosso personagem encontrava-se acostumado, uns 1600 antes, no amanhecer do casarão rural, Pois, como efeito do vórtice em que se viu envolvido, dera um pulo de mais de um milênio e se encontrava em 2003. Para ser exato, num sábado qualquer do mês de agosto, numa esquina da rua Ramiro Barcelos, em Porto Alegre, metrópole do extremo sul do Brasil, a maior população das nações de então das que nasceram da miscigenação dos soldados da velha Roma com os povos do Ocidente bárbaro europeu.

Bárbaro, aliás, era aquele desgrenhado e brusco germânico que gesticulava agitado, e bradava violentamente, a sua frente, contra a putaria política e social em que viviam. Ele, Lucilius, surpreendentemente, se deu conta de que não fora transportado ao futuro nem como espectro, nem como a si próprio em carne e osso, mas agora era outro (como um avatar indiano) e ali se encontrava semi-bêbado, em meio àquela dúzia de garrafas de cerveja que enfeitava a mesa que dividia com o seu amigo. E ambos partilhavam da rebeldia e da indignação com o mundinho estreito e filho da puta em que viviam. Muito embora reconhecessem que não podiam viver sem a fumaça dos velozes automóveis na rua, a barulheira das conversas em voz alta e o tilintar de garrafas e copos que enchiam o velho bar, o Alfredo, espécie de taverna em plantão permanente, que varava as madrugadas de portas abertas, e só fechava aos domingos.

– Puta que pariu, seu Lúcio! Me dá uma raiva! Ontem a noite a Vivo não me concedeu crédito nem para mandar um simples torpedo. É outra máfia que necessita pau perene!

– Olha, camarada Fausto, estas companhias telefônicas, os agiotas de luxo regulados pelo Banco Central, a nova burguesia petista, isto é tudo cria da mesma cadela: a sociedade de classes, melhor descrita como sociedade verticalizada, em que uma piça do tamanho do mundo desce desde das alturas olímpicas da burguesada pra arrombar o rabo do povo tacanho e lambe-cu.

– O pior é a gente saber que com alguns cartuchos dá pra conceder o descanso eterno a essa máfia e ficar aqui, bebendo cerveja, parados no meio do mundo, sem fazer o mínimo gesto que pode por fim a tudo: puxar o gatilho!

– É muito fácil acabar com o sofrimento. É só ganharmos coragem. Vivemos num regime de dominação. O cara monta no teu lomba e tu carregas ele. Nessa condição, “negociar” politicamente significa: não chicoteie tanto. Ou chicoteie com menos força. Mas continue chicoteando, ó meu amo e senhor! Pra sair deste maldito brete, o gesto é muito simples: é só sacudir bem as costas e jogar o safado que está montado, de patas pro, no chão duro!

– Duro é ter saco pra aturar esta putaria disfarçada de “ética”. Lúcio, acho que vou pro mato! Me enchi o saco disto tudo aqui. Tem um amigo meu de Giruá que está criando cavalos crioulos no interior do município. Me propôs uma sociedadezinha.

– Com o que, o companheiro pretende, então aburguesar?!

– Aburguesar um caralho! Se enrico tenho como comprar as bombas necessárias pra explodir esta safadeza toda. E o rincón é um belo lugar pra se fazer um treinamentozinho básico de guerrilha…

– Lá isto é. Mas espera aí que vou ao banheiro.

Nosso herói saiu cambaleando rumo à porta ao estilo saloon nos fundos do bar e, lá chegando, naquele modorrento sábado a tarde, enquanto tirava água do joelho e admirava-se, velho Narciso, ao espelho, quase rachando o pobre vidro de susto, simplesmente adormeceu, acordando novamente em seu solar rural, na velha Roma.

A alvorada se transformava, então, em dura manhã de sol escaldante. Lídia continuava a dormir e por perto não se via nada além dos passarinhos e da cachorrada que latia, distante, na vizinhança. De nada tinha certeza, mas parece que, num estranho transe, por alguns instantes, havia entrado numa nesga do futuro, numa nova Roma, tão conflituosa e precária quanto a velha capital do Mundo. Por alguns instantes ficou imaginando como se os tais cristãos não tinham alguma razão. A morte na boca de um leão, em plena arena, não seria, afinal bem melhor que esta sarabanda eterna em que se agita a vida, fazendo mil desvios pela estrada, rodando infinitamente para, por fim, terminar sempre no mesmo ponto? Desceu a escadaria e tratou de ir à cantina, entornar um vinho logo cedo, que tomar um porre, no momento, lhe parecia o mais lúcido e razoável a fazer.

Ubirajara Passos

 

Dança das Cinzas (bolero carnavalesco)


 

Eu vi a bailarina sobre o espaço
Descrevendo
Acrobacias as mais intensas,
Desenhando
As mais horrendas e fantasmagóricas
Figuras sobrenaturais.

Eu vi a bailarina escrevendo,
A cada salto improvisado no infinito,
Umas quantas lendas dolorosas,
Esparramando
No árido chão desejos monstruosos.

Vi a bailarina,
Ia morrendo
No seu olhar qualquer humanidade
A cada brusco e palpitante passo.

Quando a vi,
Do nada vindo e ao imprevisto se jogando,
Eu a percebi como a fúria rodopiante.

Vi ir morrendo na mesma intensidade
Da paixão coreografada a alegria falsa,

Num soluço inaudível, mágoa eterna, pavor terrificante!

Vila Natal, 12 de fevereiro de 2015

Ubirajara Passos


 

Agourento 2014, tende piedade de nós! dez 31


Conforme a nossa vida vai avançando, a morte vai se tornando mais e mais nossa parceira.

Não apenas pelo fato de nos aproximarmos crescentemente dela, enquanto decrescem os anos que nos restam, numa equação em que pouco importa o valor inicial do termo (o número de anos da vida), variável a cada instante – conforme nossas decisões e atitudes – e em que a razão da progressão pode aumentar ou diminuir a vontade, mas cujo termo final é uma constante absoluta, fria e terrível, por mais complexas que sejam as expressões intermediárias entre o início e o final, que é sempre igual a zero.

Mas, pela simples consequência matemática e biológica dos fatos, é verdade estabelecida que é possível medir intuitivamente o quanto estamos “ficando velhos” pela proporção de parentes, amigos ou conhecidos que vemos partir a cada ano, que naturalmente vai aumentando até que chega o dia em que nos vemos quase que completamente solitários no mundo, em que já não resta muita gente, além de nós próprios, que se lembre mesmo daquela célebre atriz de Hollywood, gostosíssima, de olhos eloquentes e nariz estranho (e, por isto mesmo, chamativo e sensual).

A oito meses de completar meu primeiro meio século (que espero realizar, apesar do trago e da mania de me desgastar lutando contra este nosso mundinho opressivo e infelicitante, o sonho do meu avô – e de 99,99% da espécie humana – de atingir pelo menos cem anos), não estou exatamente no caso extremo, mas, assim como todo mundo que conheço, nunca vi um ano tão absurdo, com tantas mortes de celebridades, ou mesmo de pessoas próximas, no espaço de um único giro da Terra ao redor do Sol.

Algumas, previsíveis, são daquelas que apenas confirmam que estamos, inapelavelmente, nos aproximando da velhice e que (contra a maldita convicção de nossa mente, que é desementida a cada manhã, sem muito resultado, pelo espelho) aqueles personagens quotidianos que nos pareciam eternos já estão necessariamente no momento de partir.

Foi o caso da Shirley Temple (a eterna garotinha prodígio), da Virgínia Lane (e a eterna beleza das pernas mais belas do Brasil), Marelene (a eterna Rainha do Rádio) e de Gabriel García Marquez (autor de livros eternos, como Cem Anos de Solidão e O Amor no Tempos do Cólera). Além do poeta Manoel de Barros, da atriz Lauren Bacall,  o escritor Rubem Alves; Max Nunes, Marcelo Alencar, Antônio Ermírio de Moraes, Adib Jatene e  Mãe Dinah (que não tinha a menor previsão a respeito de seu passamento).

Outras já, embora possíveis, nos surpreenderam e chocaram, como foi o caso de Ariano Suassuna e Hugo Carvana.

Mas quando se foram, sem mais nem menos, figuras como José Wilker,  Jair Rodrigues, Nelson Ned, João Ubaldo Ribeiro, Robin Willians, Eduardo Campos (que tinha minha idade – sendo a mais badalada morte do ano), começamos a nos preocupar seriamente e chegamos à conclusão que, ainda que as estatísticas possam apontar para um certo padrão de mortes anuais de famosos, dentro dos quais os falecimentos citados estariam incluídos, nunca se viu, um mês após o outro, tantas mortes relevantes em tão pouco tempo.

Quando morreu Nico Nicolaiewsky, no início de fevereiro, li  a dolorida entrevista de seu parceiro na vintenária comédia Tangos e Tragédias, Hique Gomez, e fiquei imaginado como seria a minha vida política, literária e pessoal sem a presença do meu irmão gêmeo de ideias, lutas, trago e atitudes, o companheiro Valdir Bergmann.  Mas jamais imaginei que ele viria a compor o mais doloroso e irremediável item das mortes imprevistas e absurdas deste ano apoliptico, morrendo de uma pancreatite aguda dois dias antes de completar seus jovens 57 anos.

Só que a coisa não parou por aí e já havíamos nos convencido de que 2014,  embora não tenha testemunhado a deflagração de nenhuma guerra mundial como seu irmão do século passado, era um ceifador cruel e inveterado de almas, quando velhos amigos de minha família, e meus, com presença importante em pontos capitais da minha biografia, como Juarez Vargas e o colega Adroaldo Rocha, morto tragicamente em acidente automobilístico, praticamente às vésperas das festas de final de ano, foram-se também.

Assim é que chegamos ao último dia de 2014 erguendo as mãos por ainda estarmos aqui  o esconjurando e nos ajoelhando e erguendo as mãos perante tão nefasta entidade para pedir: “Agourento 2014, tende piedade de nós!”

Ubirajara Passos

Notícias do lado de cá


Aqui estamos,  camarada
O mundo é o mesmo.
A Terra gira,
Seca, sob o sol.

Vertiginosos passos
Lomba abaixo
Vão nos conduzindo,
E o burburinho urbano continua
A nos tontear
Entre os ruídos mil
Da coletiva insanidade.

Aqui estamos
Nada mudou na superfície.
Sem ti os céus ainda estão crivados
De quero-queros e sabiás,
Neste final de agosto
Que embebedou-se e se vestiu de primavera. 

Nada mudou.
Ainda há choro e risos.
Cada segunda-feira ainda há trabalhadores
Indo arrastar-se, trôpegos, à faina.

Os escândalos de sempre
E a ficção contaminada
Do pior que apodreceu a alma
Ainda habitam as mentes
E as telas eletrônicas.

Donas de casa ainda de se afundam na rotina
E criancinhas ainda encontram um mundo novo
Num simples caracol de forma diferente.

Nada mudou.
Somente a nós, que contigo viajávamos
Nesta custosa e longa peregrinação,
Foi arrebatada a metade de nós mesmos,
Que foi acrescentar-se à terra
Para nutrir as sementes de vermelhas flores,

Assim como continua
A alimentar em nossa mente a rebeldia
E o desejo desastrado e incontrolável
De vida, prazer e liberdade.

Gravataí, 22 de agosto de 2014

Ubirajara Passos