Um flagrante hilário da ingenuidade matronal


Já vai algum tempo que uma depressão enrustida (destas que se confunde com rabugice ou simples exasperação perante uma realidade cada dia mais disfuncional  e precária em termos financeiros e funcionais) tem me mantido num humor e imaginação tão limitados  que o máximo que permitem além da rotina sonolenta e sem graça de todo dia é um ataque de inconformidade daqueles cujo auge é o proferir de umas tantas frases indignadas e recheadas de palavrões.

Há pouco, entretanto, percorrendo as inúmeras mensagens rotineiras do “zap-zap” dei com a mensagem de um amigo que  tem vivido mais ou menos na mesma condição que eu, me dando conta da seguinte  comunicação, em um destes grupos de apoio comunitário e auto-organizado da vigilância, em prol da segurança do logradouro comum em que mora, feita por uma dona de casa da turma: “Pessoal, tem uma cachorrinha preta, acho que é uma pintcher, percorrendo a rua, com um lencinho rosa no pescoço… Acho que está no cio. Os cachorros estão estão atrás dela!”

cachorra da madame


Vinda do nada, em meio à eterna avalanche de desgraças, entre elas as sucessivas enchentes que têm devastado o Rio Grande do Sul em decorrência óbvia das consequências climáticas do aquecimento global, esta postagem teve simplesmente o efeito de correr a vassouradas o ancião reumático e ranzinza que ultimamente me habita e dar plenas asas ao voo de um moleque irreverente e barulhento. Confesso que tive vontade, apesar dos protocolos óbvios de sobriedade moralista, séria e circunspecta que regram o comportamento nesta espécie de grupo, de lhe sugerir que respondesse: “Então tá tudo normal. Que bom pra eles! Deixa a cachorrada ser feliz!”  O primo do ancião, indignado e furioso, revolucionário metido a palmatória paradoxalmente libertária do mundo, que ocupa um nicho em segundo plano entre os arquétipos do meu inconsciente, porém, deu-me um puxão de orelha e impediu-me de concretizar a gaiatice em nome do sofrimento que estas pobres senhoras da classe trabalhadora passam todo dia nas mãos de uma elite sádica, metida a emancipada e sabichona, a qual eu acabaria, involuntariamente, fazendo couro.

Mas a pura verdade é que quase me mijei de rir (literalmente) e só não instei meu camarada a publicar o infame comentário pra evitar maiores encrencas públicas e domésticas.

Afinal, por maior que seja o zelo da comunicante em eventualmente localizar o pobre dono da imprudente  e “ingênua” cachorrinha que pulou a cerca (e saiu por aí, em plena efervescência de seus caninos hormônios de fêmea, se expondo ao violento assédio destes mal-intencionados primos do lobo mau, e possibilitar o seu resgaste  – e da respectiva honra), o texto peca por tamanha e paradoxal ingenuidade que poderia ser atribuído a qualquer protagonista de piada de português.

Se, por outro lado, pretendia  chamar à responsabilidade os proprietárias de tão nefanda e devassa fêmea que, com seu irresistível poder de sedução, saia por aí a lançar os pobres paspalhões caninos na mais barulhenta e infeliz disputa (da qual sairiam somente lanhados e despedaçados pelas recíprocas e agudas agressões), perturbando, com a barulheira insuportável, a tranquilidade dos moradores da infeliz rua, o comentário redundante não teria, igualmente, outra consequência, pela obviedade cretina, que conduzir os donos da cadela a uma raiva maior ainda que a da malta de machos excitados contra a sua autora.

Seja como for, por maior indiferença com que a besteira foi recebida (ninguém se deu ao trabalho de responder a mensagem), pelo menos deu alguns instantes de puro prazer hilário a um pobre  cinquentão entendiado em uma madrugada domingueira.

Ubirajara Passos

Da Índole Sádica da Pornografia Hodierna


Para deleite dos velhos fãs da sacanagem deste blog, vai abaixo publicado mais um sermão na igreja de satanás:

Da Índole Sádica da Pornografia Hodierna

Jamais se viu nada tão próximo da genuína volúpia moleque e sorridente, banhada nas profundezas sacanas do impulso vital livre e espontâneo, voltado voluntariamente à satisfação de um cio sem hora nem lugar, sempre pronto ao exercício sublime do gozo mútuo que nos diferencia de nossos irmãos mamíferos (jungidos aos ciclos reprodutivos da programação genética), identificado com a própria potência saudável da vida em si, como a velha sacanagem cinematográfica, ingênua e implícita nas imagens, mas poderosa na evocação mental sub-reptícia, das pornochanchadas brasileiras do século passado.*

Por mais que reproduzissem, em tom gaiato, digno da mais debochada avacalhação da velha malandragem do terço final do século passado, os preconceitos próprios da velha moral sexual patriarcal, com títulos como “O Super Manso”, as picarescas comédias eróticas da época celebravam o sexo, ou antes a putaria, como a fonte dos mais refinados e alegres prazeres proporcionáveis por nossos corpos, que efetivamente é, passando muito longe do desespero trágico e truculento incorporado pela indústria pornográfica mundial desde os anos 1990, a partir da imposição massiva do receituário sexual yankee, filho típico da rebeldia desusada e imatura à mais repressora moral puritana.

meme-desvistas

Assim é que, com disparates típicos da nação onde um simples seio nu se assimila à mais descarada manifestação da devassidão pecaminosa que haverá de arrastar a humanidade depravada à condenação eterna do inferno, o moderno imaginário da ficção sexual (das cartas de leitores de revistas de mulher pelada ao cinema especializado) se ressente dos esquetes mais sádicos, abobalhados e broxantes, só capazes de inspirar tesão e entusiasmo a punheteiros juvenis recém ingressados na puberdade, destes cuja experiência concreta mais próxima do supremo ato do gozo mútuo foi a prática eventual da zoofilia com a cadela do vizinho, no matinho do subúrbio, o romance sem-vergonha com a vaquinha mimosa  dos velhos matutos ou a barranqueada  de égua da gauchada antiga.

Qual grau de excitação genuína é capaz de ser despertado por cenas como a de um afobado touro reprodutor musculoso, de olhos esbugalhados e ar apatetado, se masturbando frente a uma ou mais fêmeas de ar aparvalhado que aguardam, com a boca escancarada e o olhar perdido, que o protagonista acerte a pontaria da esporrada, na atrapalhação mais impagável da cenografia típica? Ou a gritaria artificiosa e desafinada de uma loira padronizada, de cabelos alisados na chapinha e peitos estufados qual balões a ponto de estourar, enquanto o machão cheio de si a barranqueia com a concentração própria de quem pilota uma britadeira, sem emitir o menor pio ou suspiro?

Tais são os exemplos básicos da gélida e raivosa fantasia erótico-psicopática disseminada, desde o fim do século, nas diferentes mídias, sem falar é claro, nas bizarrices mais estapafúrdias, como  madames tentando trepar com cães são bernardo (entediados e contrafeitos), transas de anões com velhos travecos ou outras asneiras do gênero, que as povoam, transformando a velha e boa foda sacana no coito insosso e prenhe dos anseios de um misógino enrustido cujo maior prazer, inconfessado não é o compartilhamento do oceano de sensações vívidas e alegres, nas ondas da mais pura sacanagem, mas o uso do próprio caralho como uma espada a dilacerar ventres submissos.

Se as velhas pornochanchadas dos anos 1970 e 1980 sintetizavam, na sua malícia festeira e irreverente, com a pitada do deboche nacional, séculos ou milênios da mais tesuda, entusiasmada e criativa literatura erótica, o imaginário sexual pasteurizado, produzido e distribuído em massa, com a chancela de uma globalização totalitária que simula a pretensa liberação sexual nas relações compulsórias e coisificadas, nos empurram todo dia, sem apelação, sob o disfarce do mais infeliz e estouvado catálogo erótico, os ideais sádicos filhos do dominador frustrado – que, se encontrando pisoteado sob os pés da ordem burguesa, desrecalca sua impotência frente aos amos, fudendo, de todas as formas, com a vida alheia, especialmente daqueles sobre os quais possui alguma hierarquia. O próprio marquês, revoltado e incontrolável, cuja obra, bem mais imaginosa e refinada, deu nome ao adjetivo que o caracteriza, coraria como uma freirinha frente ao breviário fascista enraivecido que inspira a nossa modernosa ficção sacana.

O gozo está no meio de nós!

Gravataí, 5 de março de 2019*, 5 de dezembro de 2020

Ubirajara Passos

Busca


Meio documentário sobre o velho Vinicius, assistido na Netflix, uma cerveja, e me veio à tona a frase e o episódio já mencionados neste blog defunto, que não custa relembrar, ocorridos no saudoso cabaré da Cláudia, até hoje ainda em atividade, no finalzinho da lomba sul da Marechal Floriano, em Porto Alegre, nos tempos da velha boemia do final do século: “Tu é um intelectual. E vem aqui procurar um amor que não existe”.

O filme, a frase dita por um sessentão de camisa de física branca (o que hoje se chama tecnicamente de regata) que fazia estripulias no salão, íntimo da dona e dos garçons (mais do que eu era, então), e que se apresentou como professor da Ufrgs, em seguida, ao censurar o meu espanto com a sua declaração; assim como o depoimento do companheiro de “república” (a do Alemão Valdir, na Amélia Teles, no bairro Petrópolis) Luiz Ferraz (que, no final do ano, esteve em expedição nostálgica ao cabaré Le Boheme, na Pinto Bandeira) – “… é aquela coisa de puteiro, quando a gente a sai de lá volta pra realidade e a realidade é dura e sem mulher” – acabaram por inspirar o poema que segue, infelizmente abstrato e mal concatenado:

Busca

Não conseguindo trazer ao quotidiano
O enlevo intenso das paixões sentidas,
Que se quebravam na rotina besta
Dos protocolos da sobrevivência,

Foi procurá-lo no duro chão da vida
Vivida à força, na contrariedade,

No dilaceramento
Da instância mais recôndita de si.

Foi às putas,

Tristes retalhos da paixão edênica,
Pra ver se  o achava,
No câmbio frio e árido

Do metal que arde nas mãos
Precárias da necessidade,
A carne morna que promete paraísos,

Trazendo à vida a crispação efêmera
Do gelo seco, a queimar de frio intenso.

Não encontrou a ternura refinada,
Cujos anelos o lar extraditava.
Mas, nas precárias tardes apertadas,
Nas breves noites cambaleantes,
No entusiasmo

Que se esvaia aos últimos vapores
Da madrugada bêbada e boêmia,
O surpreendeu, mais real que a seriedade
Dos secos dias sem sal “normais” da vida,

O amor concreto, alugado por minutos,
Mas livre e camarada, exatamente
Por não viver de outras exigências
Além daquelas do instante mágico.

Bem mais real que os idílios sacros
Do bem aceito na decência hipócrita.

Gravataí, 17 de janeiro de 2020

Ubirajara Passos

Do Caráter Moralista do Carnaval


Faz séculos (para ser exato, uns dezessete anos) que este texto está elencado entre os Sermões na Igreja de Satanás sem que jamais tenha conseguido escrevê-lo, embora tenha prometido, nos últimos carnavais de cada ano, desde 2010 pelo menos, fazê-lo sob a inspiração direta dos eventos.

Eis que hoje, em plena Era do Ranço Fascista brasileiro mambembe, não menos sádico e cruel do que o velho nazismo, entretanto, me forcei a fazê-lo e está aí para deleite dos leitores que não tiveram meios ou ânimo para curtir a velha festa de Momo, embora tenha me saído, tão enferrujado me encontro, terrivelmente pedante e artificioso. Boa leitura:

Do Caráter Moralista do Carnaval

Assim como o bordel, com que compartilha a irreverência, o gáudio e a inexistência de um roteiro obrigatório e insosso no exercício do gozo dos corpos e dos copos, o Carnaval é uma festa que não se contrapõe à interdição moralista do prazer e da liberdade costumeiramente impostos ao rebanho imenso da peonada, em prol do deleite sádico e desenfreado de nossos amos, mas justamente, por seu caráter de excepcionalidade aos dias de sisuda e “responsável” dedicação à rotineira faina e aos imperativos graves da vida quotidiana, a confirma.

E, como válvula de escape, compensatória à vida reprimida, impede a derrocada da dominação, que subjuga nossas mentes e corpos, maneados e enrijecidos no curral sem sal e sofrido do cumprimento de deveres e obrigações impostos pelo estelionato ‘ético” dos hipócritas senhores que organizam nosso mundo.

Mas, embora a epifania pagã do cabaré (restrita aos ditames hipócritas de um negócio informalmente integrado à sociedade hierarquizada – a sacanagem explícita no salão não é bem vista, seja por ameaçar o recebimento do “aluguel” do quarto, seja por destoar do bom tom dos “bailes de família”, que mesmo no puteiro deve ser preservado) não tenha dia, e nem hora, para se realizar, os festejos de Momo, no curto espaço de seu ciclo anual de cinco dias, possuem a vantagem da universalidade.

Para encher bem a cara e se lambuzar na putaria, na dança frenética, e se afundar na “loucura divina” até se exaurir na farra amoral e edênica como um jogo de criancinhas; para usar e gozar da imaginação desenfreada, sem roteiros nem limites, e mandar à puta que pariu todas as velhas recomendações das comadres e tias de pudor e compostura, ou mesmo viver por um dia a fantasia de se sentir único e com direito a tratamento respeitoso e digno, não é necessário possuir um tostão além daquele capaz de adquirir um litro de cachaça, nem ter nascido com um envaidecedor pêndulo, irascível e violento como uma onça pintada, pendurado entre as pernas.

E, êxtase supremo, é possível, se berrar aos quatro ventos, e em plena luz do sol, tudo quanto lhe vier aos cornos, num discurso com um mínimo de coerência ou simplesmente aleatório, escangalhando e denegrindo todos os compenetrados, sóbrios e severos grandes chefes, chefetes e capitães-do-mato da modernosa escravidão assalariada, seus grandiloquentes discursos redentores e sagrados manuais de procedimento.

Oriundo das velhas bacanais romanas (celebrações públicas ao deus do vinho e do prazer), diante do recrudescimento totalitário do cristianismo oficialmente altruísta e sofredor, inimigo do corpo e do bem estar (dos deserdados servos e escravos indignos de representar a vontade divina – prerrogativa exclusiva de reis e nobres senhores), elevado ao poder com a decadência do Império, o Carnaval se tornará, a partir da Idade Média, o refúgio provisório e intocável da ralé subordinada ao autoritarismo furibundo dos dominadores (que serão debochados descaradamente nos gestos, vestes, e atitude), tornando-se vítima de sucessivas tentativas de enquadramento, do reconhecimento oficial da Igreja como ritual pré-quaresma à transformação em festival oficialesco excêntrico e exótico, e por isto mesmo inofensivo e inócuo (porque apartado ao espaço físico ou ideal restrito do “desvio”, a moda da loucura levada ao manicômio) para ser mostrado como curiosidade turística ao mundo, promovida pelas prefeituras, das grandes cidades, como o Rio Janeiro, aos rincões interioranos, de países como o Brasil, afora.

As suas características anárquicas, no sentido mais profundo do caótico e não organizado, da alma livre das peias de toda rotina e ordenamento obrigatórios (que persistem em permanecer, em meio ao fundo das festividades padronizadas e folclorizadas pela mídia antropofágica, que a tudo engole e reprocessa em seus ruminantes estômagos , para regurgitar numa versão mansa e abobalhada, infensa à rebeldia do moderno gado humano) guardam, entretanto, justamente por sua renitente teimosia,desobediente e mal-educada, as sementes capazes de nos conduzir ao rompimento da opressão mecanicista que se serve até o cerne de nossos seres para o usufruto alheio de meia dúzia dos todo poderosos amos que conduzem-se sobre nossos lombos.

Se diante do avanço reacionário e obscurantista do totalitarismo famélico e voraz da ordem burguesa do nosso século já não surte efeito um espírito épico e estoico na luta revolucionária, o que hoje pode nos conduzir, de forma folgazã ainda que renhida, à liberdade é a insurreição gaiata, a desafiar a seca e petrificada ordem diária da rotina, a disposição avessa à gravidade sacrificante, numa rebelião barulhenta e zombeteira, digna de um carnaval, a cada santo dia.

Seja feita a vossa gandaia!

Gravataí, 3 de março de 2019

Ubirajara Passos

Toby e os prisioneiros


FB_IMG_1502467873373

Esta foto emblemática foi feitas às cegas (o reflexo do sol sobre a tela da câmera digital precária não permitia visualizar nada), às 15 h 33 min de um velho domingo, em 6 de fevereiro de 2011, na subida à direita após a esquina da rua Ibirapuitã com a Av. Dorival de Oliveira em Gravataí, quando retornávamos (eu e seu protagonista) da casa que herdei de meu pai (morto em novembro de 2010), e que venderia em fevereiro de 2013.

Filho do Dodó (o cachorro mais antigo da família, que aparece junto ao Bernardinho em retrato na matéria Bernardinho (o contestador galã de quatro patas) e eu”, identificado na legenda como “Totó”, doado quando nos mudávamos da casa da Rua Barbosa Filho, no outro lado da quadra onde foi tirada a foto, para a Rua Maringá, na Vila Natal), este ilustre exemplar da malandragem quadrúpede excedeu em muito à irreverência do parceiro canino de seu pai, bem como à rebeldia indômita deste, que (tendo sido sequestrado e mantido preso por uns vizinhos da pá virada, quando morávamos na Rua Jorge Amado, em frente à Ferragem Gaúcha, na Vila Santa Cruz, só foi libertado após nos mudarmos, em fevereiro de 2009) não se deixava prender por cercado nem cancela de qualquer altura ou espécie, além de possuir a mania de trazer suas eventuais namoradas cadelas para  casa, umas delas a Rosquinha, de cuja ninhada nasceu a Branquinha, mãe falecida do nosso cachorro mais velho, atualmente, o Maique.

Me seguia por todo lado, como o faziam os outros dois, e se divertia tremendamente quando cruzávamos, todo dia, a esquina das ruas Nestor de Moura Jardim e Alfredo Emílio Allen, já próximos do Foro, e era “saudado” aos latidos  mais histéricos por uma trupe de uns seis cachorrinhos alvoroçados com a sua presença.

De bela e chamativa estampa, e “charme” irresistível, o rabo a balançar constantemente, numa vivacidade incrível, chegou ao ponto de um dia entrar comigo em plena Padaria (a Miolo do Pão, na Rua Otávio Schemes, próximo da Avenida Dorival de Oliveira), e, ao invés de ser corrido como se esperaria, foi abraçado, acarinhado e apreciado por praticamente todas as gatinhas que atendiam no balcão, entusiasmadas com o “alegre, fofo e lindo cãozinho!”  Pena que nenhuma delas lembrou-se de solicitar ao seu acompanhante humano o número do celular do bicho…

Mas, voltando-se ao assunto desta crônica, a foto que a encabeça, nela O nosso cachorro travesso da época, o Toby, parece gozar esplendidamente seus parceiros de espécie, abichornados atrás das grades do portão! “ (publicação minha no Facebook em 10 de agosto de 2017).

E, literalmente, ilustra, de forma perfeita e acabada, o paradoxo em  que se encontra a humanidade inteira nos seus últimos seis mil anos de existência sobre a face do Planeta Terra.

Encarcerada na pior das prisões, aquela que conta com a participação voluntária e inamovível do próprio prisioneiro, a enorme maioria da espécie se aferra ao sofrimento e desprazer de suas vidas limitadas e oprimidas, como se fossem a própria essência da vida, mirando, de olhos murchos, desconfiados (muito raramente invejosos), e mesmo enraivecidos, os que conseguem escapar à prisão da redução à coisa em nome do prazer alheio abastardado, e usufruir da força vital de expansão e busca do prazer e conforto biológico e mental genuíno de que nos dotou a própria natureza.

E, mesmo se instados, com toda a argumentação racional possível, a romper as grades da cadeia e passar para o lado de cá (o da liberdade, da alegria e busca do movimento, do bem estar digno e vital), as forças internas que os mantém no cárcere são tão intensas que a única reação possível, diante do choque da vitalidade simples e autônoma (exposto como chicoteada à sua face abobalhada), destes corpos vivos transformados em verdadeiros autômatos (ferramentas de carne e osso, apegadas ao trabalho compulsório e às regras limitadoras, sufocantes e geradoras de sofrimento) é a rejeição e, pior ainda, a fiscalização, delação, perseguição e condenação daqueles que tiveram a capacidade e a coragem de romper a biopatia generalizada que envolve nosso mundo desde que meia dúzia de arrogantes metidos a valente impuseram-se, pela força de suas imprecações perante a grande massa, como pretensos amos e senhores da sociedade, organizando , empesteando  e deformando a vida de todos os demais em prol de seus apetites!

Não há tratado, palestra, documentário ou descrição de qualquer natureza capaz de descrever, com a minúcia implícita e viva da fotografia, os matizes da peste emocional, a ossificação dos corpos e emoções que nos habitam desde que o velho patriarcalismo (o domínio do senhor macho “pai” de todos, com poder de vida e morte,  sobre todos os aspectos da vida de seus “familiares”, escravos de mesa e cama, do campo, comprados, capturados ou gerados de seu próprio corpo) nos impôs a disciplina inquestionável e obrigatória, regrando nosso comportamento, e nossos próprios pensamentos e emoções, segundo suas necessidades e perversos apetites.

Aí nasceram todos os tabus e proibições, muitos deles transformados em leis divinas, portanto irrefutáveis e imperativas, pela própria ideologia dominante do Ocidente (o cristianismo), a qualificar e punir como crime imperdoáveis o simples exercício da liberdade, a busca do gozo, do prazer e do bem estar de corpos e mentes na satisfação das mais comezinhas necessidades biológicas e mentais próprias da condição de ser vivo, como o paladar, o sexo, o descanso e o repouso necessários, a liberdade de pensamento e atitude individual etc., enquadrados nos 7 pecados capitais.

E desta teia de imposições, proibições e punições se construíram todas as sociedades posteriores, em que as classes dominantes vem exercendo o velho papel do patriarca, em prol de seus privilégios (que são a versão sádica e impositiva dos “prazeres perversos” proibidos aos peões relegados à vida de sofrimento), contando para tanto com a colaboração da maioria infectada de sua ideologia, que se alimenta da própria raiva em que se transforma a força vital básica ao tentar se expressar num organismo coberto por camadas de rígida couraça imobilizante.

Os cães visivelmente contrafeitos que estão atrás da grade observando o Toby, com ar estupefato, frustrado, até mesmo curioso por achar o caminho da fuga, ou ameaçador, poderiam unir-se e derrubá-la, mas as correntes que os mantêm acomodados são tão fortes, tão bem enterradas no profundo de seus seres, que continuam prisioneiros e se lhes fosse dada a oportunidade da fuga, pela abertura do portão que os retém, permaneceriam no seu interior, ou, em saindo, ao invés de gozar da liberdade, simplesmente saltariam sobre o cachorrinho livre e alegre e o trucidariam a mordidas e patadas, por não suportar a visão da liberdade!

Ubirajara Passos

Sagu de merlot


O tédio e uma melancolia pegajosa que me invadiram nos últimos dias (sem qualquer relação com a condenação de Lula, vide minha manifestação ontem no facebook, que será reproduzida na próxima matéria) tem me remetido a velhíssimas e saudosas recordações, de todas as estampas, inclusive caquéticas anedotas, da vida real, como a relatada nesta crônica.

Fato é que, coisa de uns 5 ou 6 anos atrás (já nem me lembro ao certo), o companheiro Carlão (o mesmo que eu havia sacaneado tomando o vinho argentino que lhe prometera, conforme narrado em uma das primeiras crônicas deste blog, em 2006), teve, involuntariamente, a sua vingança daquele fato, sem que saiba até o presente momento, dado o natural constrangimento, e os rogos de minha mulher e sogra, diante dos acontecimentos, que agora já podem ser revelados sem maior impacto.

Tendo se removido, depois de anos como Escrevente em Santo Antônio da Patrulha, para a comarca de Garibaldi, em plena região vinícola do Rio Grande do Sul, o meu velho amigo, colega e companheiro de sindicalismo, foi morar justamente em frente a uma vinícola e assim, tendo acesso na porta de casa, aos mais diversos e refinados vinhos, resolveu me presentear com uma garrafa de um excepcional Merlot que havia degustado, o que me anunciou por MSN ou outro meio de comunicação eletrônica, que na época nem se cogitava do tal zap-zap.

Se encontrando em férias, e eu trabalhando, o camarada deu uma passada uma bela manhã na minha casa (na época eu ainda morava na Rua Barbosa Filho, próximo à casa em que me criei e vivi até casar e à garagem regional da empresa gravataiense de ônibus, a SOGIL), deixando com minha sogra, que andava lá passeando, o valioso mimo. O que me avisou enviando um torpedo para o meu celular.

Passei o dia entusiasmado, ansioso para chegar logo em casa e provar o tão elogiado licor. Mas qual não foi a minha absurda surpresa ao descobrir que, no afã de fazer um agrado para a filha, a velha havia feito um sagu para sobremesa do almoço. E justamente com o meu merlot!

Nem pensei em protestar, pois além de ficar sem o vinho, contrariar a sogra diante da filha me renderia, na certa, uma dor de cabeça pior que ressaca de vinagre, e ainda, a pedido da dupla, agradeci cortesmente ao amigo, quando questionado sobre a qualidade da bebida.

Mas, por óbvio, fiquei puto da vida e mal me consolei com a ideia de, pelo menos, aplacar o paladar comendo o tal sagu. Mas, como diz o velho adágio, desgraça pouca é besteira e nunca vem desacompanhada. E assim foi que, quando me dirigi a geladeira para saborear o fino manjar, descobri que ficara tão bom, mas tão bom mesmo, que a turma comera tudinho e não deixara o menor bocado para um pobre bêbado frustrado.

 

Ubirajara Passos

Velho feio da peste


Não é de anteontem que o anonimato, ou a própria distância, tem propiciado, na internet, uma imensa sinceridade e autenticidade (muitas vezes um tanto intolerante) nesta sociedade autoritária e hipócrita em que vivemos. Até mesmo nas redes sociais, onde, em tese, todos nos tornamos íntimos e informais. Mas o que me aconteceu recentemente foi simplesmente inédito!

Cansado da antiga (e pretendendo divulgar meu visual de cabelo pintado e cortado a máquina, operações sem as quais os meus 52 verões aparentam a infeliz decrepitude de um ancião centenário), resolvi trocar a foto de meu perfil no facebook e postei, ontem à noite, já sentado na cama (e “fardado” com meu mais vistoso pijama), a “selfie” feita no momento (sem o auxílio de nenhum “pau”) com o próprio celular. Barba por fazer e um certo ar sonolento, o retrato realmente não é nenhum primor, mas, atual, satisfazia os fins que pretendia dar-lhe.

Vários amigos (de colegas a parentes) o saudaram com a tradicional curtida. Uma velha e querida amiga, companheira de militância sindical, postou nos comentários o gif de um cachorrinho abanando alegremente. E um amigo que não vejo pessoalmente há tempos me brindou com o emoticom do sorriso (que muitas vezes se usa para se expressar a risada mesmo), o que já me deixou meio cabreiro.

20180121_205006

aqui a indigitada foto que rendeu o comentário, para apreciação dos leitores

Até aí tudo bem. Nada além do previsto, e até tedioso, nestas ocasiões. Mais eis que, do nada, sabe-se lá a que pretexto e por que diabo inspirado, um sujeito, que não conheço, mas ainda assim cumprimentei por ocasião de seu aniversário, e que só aceitei no meu rol de amigos do facebook por ser amigo comum de uma colega de Judiciário (que também não conheço pessoalmente, não é da minha comarca, mas foi aceita em razão da minha militância e liderança sindical, cuja popularidade deve tê-la levado a me solicitar amizade), resolveu lascar o seguinte comentário: “VELHO FEIO DA PESTE”!

Confesso que, apesar de libertário e desassombrado (embora um tanto destreinado da histórica malandragem aprendida na política e na boemia), levei um susto tão grande que, não estivesse, agora de manhã, deitado em plena cama, teria caído para trás. Já vi de tudo, até xingamentos homéricos e descabelados em razão da intolerância ideológica que anda pautando fascistas de direita e de “esquerda” no Brasil pós-golpe de 2016, inimizando velhos camaradas e dividindo famílias a pretexto das mais infelizes questiúnculas, artificiais e sem graça, acerca de questões de gênero, raça e parceria sexual. Mas esta de brindar, sem nenhuma intimidade gaiata que o justifique, uma simples foto de perfil com tão jocoso comentário não havia visto ainda.

Depois de meditar por um bom tempo, diante do inusitado, me decidi e postei a seguinte resposta ao meu irreverente amigo (que estampava antigamente a imagem de um corvo, mas agora nenhuma em seu perfil do face):

“Muito obrigado pelo comentário. Vou me lembrar de postar um semelhante quando o companheiro (que deve ser meu colega no qualificativo estético) tiver coragem de colocar sua foto no próprio perfil!!!”.

Até agora, infelizmente, não recebi nenhuma réplica.

Ubirajara Passos

 

“Surubinha de leve” apenas explicita o sadismo do funk em geral


Ao contrário do estardalhaço politicamente correto (entenda-se vigilância infantiloide e totalitária) que levou à retirada do catálogo do Spotfy, o exame completo da letra do estrondoso sucesso do fanqueiro Diguinho permite concluir que a música não faz a menor apologia ao estupro, nem  à prática criminosa alguma.

Se ao invés de se deter no desaventurado refrão (Taca a bebida/Depois taca a pica/E abandona na rua), prestar-se a devida atenção ao contexto das demais estrofes (Pode vim sem dinheiro/Mas traz uma piranha, aí!/Brota e convoca as puta), o máximo que se poderá constatar, é uma incitação ao estelionato (a gurizada vai convocar as profissionais do amor para uma festinha, gozar do seu serviço e depois mandá-las port’afora, com um ponta-pé na bunda, e nenhum mísero tostão de pagamento), ou quando muito à celebração da prática da zoofilia com vorazes peixes carnívoros!

O texto da estrofe intercalada entre a convocação e o desenlace da orgia (Mais tarde tem fervo/Hoje vai rolar suruba/Só uma surubinha de leve/Surubinha de leve/Com essas filha da puta) deixa bem claro tratar-se de uma suruba destas que muito velhote metido a playboy detentor de mandato parlamentar costuma fazer em Brasília, na qual as meninas participarão espontaneamente, bebendo e gozando dos prazeres carnais previstos, sem receber, entretanto (e aí é que repousa a malícia da gurizada da favela carioca) a devida retribuição monetária. 

Conforme matéria de O Globo recentemente publicada, duas advogadas especialistas na matéria criminal invocada teriam afirmado categoricamente que seria necessário bem mais do que as meras alusões a trago, sexo e abandono para caracterizar o estupro, que consiste na prática forçada de sexo, mediante violência ou grave ameaça, e não fica expresso que o ato de “tacar a bebida” consistiria em fazer a mulherada ficar inconsciente para usufruir de seu corpo.

Polêmicas a parte, a verdade pura e simples é que 99% das letras de funk no Brasil primam, desde o boom inicial do ritmo, no início dos anos 2000, com a banda Bonde do Tigrão, pelo mais medíocre sadismo (vide os versos de Prisioneira,  onde a gata é advertida  que seus únicos direitos são os de “sentar, de quicar, de rebolar”, e, fora isto, o “de ficar caladinha”) abordando as relações sexuais (diferentemente da velha sacanagem bem-humorada e gaiata, de duplo ou mais ou menos explícito sentido, das marchinhas clássicas, como “A Perereca da Vizinha”) sob a ótica do machão prepotente,  que vê e usa a mulher como uma simples coisa, a moda do barranqueador de égua que submete a fêmea no ato  maneando-lhe as patas (quem for dos pagos sulinos entenderá perfeitamente do que estou falando).

E é muito admirável, de causar arrepios nos pentelhos, mesmo, ter sido necessário uma peça tão explícita para, após duas boas décadas de exaltação glamourizadora e massificada (a ponto de se tocar impune e entusiasticamente nas mais comezinhas festas infantis de aniversário, até mesmo nas mais pudicas casas de família) do imaginário musical erótico mais sem graça, misógino e machista,  alguém se dar conta e trazer a baila (ainda que de forma equivocada) a essência ideológica do funk brasileiro, onde a mulher é vista como coisa, nada mais que um objeto de prazer, sem direito necessário a ele.

Mas daí a se partir para a censura, com a proibição ou retirada da canção (e suas congêneres), entretanto, é se banhar nas mesmas águas da peste emocional que, da impotência orgástica (resultado do prazer reprimido por séculos de patriarcalismo ainda vigente, sob o disfarce da liberação dos costumes) à consequente intolerância moralista e totalitária tipicamente fascista, pretende controlar nossos mínimos gestos, privados ou em público, sob os auspícios da falsa moral disciplinadora, robotizante e anti-prazer da pior espécie (digna das velhas beatas rançosas, reeditadas sob a forma de histéricos e alvoroçados rapazes do MBL) ou do aparentemente inocente e comportado discurso politicamente correto de uma infeliz esquerda cor de rosa e tributária do Estado burguês. Tudo para garantir que continuemos a marchar dentro das bitolas e não desviemos por um segundo o olhar para os lados, o que pode acarretar a derrocada da escravidão assalariada e o fim dos privilégios dos amos que nos submetem a uma vida de cachorro, devidamente regrada pela ética da obediência cega e o pretexto  do bom senso.

Todo este ímpeto em demonizar, e proibir a expressão, o que é mais grave, tudo quanto possa escapar aos ditames  ingênuos típicos do Joãozinho do Passo Certo, logo no início de um ano de eleições presidenciais, que serão pautadas pela disputa espúria e entusiasmada entre os representantes mambembes aparentemente inofensivos da extrema direita raivosa rediviva (leia-se Jair Bolsonaro) e os apóstolos de uma esquerda cor-de-rosa defensora de uma ética distorcida e policialesca pretensamente defensora das minorias oprimidas, é no mínimo preocupante, para não dizer apavorante.

Ubirajara Passos

 

 

De como não assisti ao show do Zé Ramalho


Houve uma época, nos velhos tempos da República do alemão Valdir, que, tendo o Rogério Seibt retornado a Santa Rosa, e o baiano Luiz, se casado (e se afastado dos amigos), os frequentadores do apartamento de Petrópolis se restringiram ao próprio Valdir, a mim e ao alemão Ale, com o qual eu costumava varar as madrugadas de sábado para domingo enxugando um litrão de fanta com uma vodka de garrafa plástica (que era o máximo que nossos escassos reais permitiam), enquanto o Valdir (na época se tratando com a Dileusa e com pisquiatra e, portanto, se mantendo abstêmio) roncava solenemente.

Pois nestes dias em que a minha carteira andava mais vazia que cabeça de periguete fanqueira, mesmo assim me cotizei com o Alemão Valdir e compramos ao salgado preço (para a época) de R$ 100,00 por cabeça os ingressos para o show exclusivo, de uma hora de duração, que o Zé Ramalho daria no auditório Araújo Viana, numa sexta, em Porto Alegre, incluindo além dos nossos o do Ale.

Durante uma semana inteira, entusiasmado, eu não falava em outra, perturbando à farta o ouvido dos estagiários da Contadoria Forense com o fato de que eu iria a um show do “Raul Seixas” (apesar de me policiar, trocava a cada vez o nome do cantor), ouvindo de volta a informação de que para tanto só fosse à mesa branca, pois este há mais década já passara por outro lado.

Quando, finalmente, chegou a noite esperada, entretanto, o Valdir e o Ale (que embora cursasse radiologia na época já manifestava os pendores culinários que o levariam à futura profissão fora do Rio Grande, ao invés de agilizarem-se, resolveram, justo próximo da hora do espetáculo (que se iniciava por volta das 9 h) fazer uma senhora janta, com dinheiro a porco assado, sob os meus protestos – contestados com a frasezinha: “show de rock sempre atrasa!”.

Assim, quando os glutões inveterados já haviam satisfeito sua “larica” sem maconha, e cedendo aos meus rogos, e chegamos ao Araújo já eram quase dez horas da noite e o resultado foi darmos com a massa do público saindo port’afora, um amigo do Ale escorado na saída, dizendo que o show (que já havia pontualmente terminado) estava muito bom.

Na volta, ainda tentei recuperar a noite e convidei a dupla para fazer algo de útil e prazeroso na extinta Sauna La Luna (puteiro da Barão do Amazonas), mas diante da recusa, tive de me contentar em sorver algumas long neck de Brahma Extra, compradas em qualquer posto de gasolina no caminho.

Foi assim que, por causa do porquinho gordo (e quem sabe por vingança do gaiato fantasma do roqueiro), não pude estar presente ao show do Zé Ramalho e, de certa forma, “assisti ao show do Raul Seixas”, que sendo realizado por fantasma ninguém viu mesmo!

Ubirajara Passos

O indiferente


O sujeito seria um buda, não fosse um desleixado completo, nem estagiário de repartição brasileira  falida do presente século.

Despreocupado com a vida, nada o abalava, ao ponto de dormir em pleno expediente (fora flagrado pelos colegas uma vez no corredor de um arquivo e outra em pleno setor, em transe “meditativo” bastante barulhento em frente ao computador). Mesmo a repreensão mais cabeluda da chefia, com direito a uma chuva de impropérios e involuntária cusparada, não lhe causava a menor reação.

Quem quer que pretendesse demovê-lo de seu satori cínico estava fadado a enfartar, surtar a ponto de sair correndo pelado e gritando como doido ou simplesmente ir parar no manicômio.

Podiam tentar lhe romper a inação com todas as afirmações e sustos mais abstrusos, desde o tradicional “a casa está pegando fogo”, “olha a cobra aí no teu pé”, até o “vi tua namorada se arretando com um negão ali na esquina agora mesmo” , ou destratá-lo com todas as ofensas possíveis e imagináveis que a máxima reação era um dar de ombros acompanhado de um esgar característico.

A única coisa que lhe entusiasmava e o fazia abandonar a imobilidade de múmia do Egito era uma vocação bastante incomum e, diriam os membros do MBL, terrivelmente repreensível! O rapaz era dado a escrever contos pornográficos dos mais sádicos e cretinos. E inspiração não lhe faltava. Qualquer velha perneta ou coleguinha tonta e desenxavida era o suficiente para viajar zilhões de quilômetros na sua imaginação pérfida e bolar as mais enlouquecidas situações, de fazer corar Restif de La Bretone, Apolinaire e o próprio Marquês de Sade.

E foi justamente uma lambisgoiazinha destas que um dia deu com galante texto do mancebo sobre a mesa e, caindo na gargalhada mais estrepitosa, ía chamando a atenção de todos, quando o iluminado Diógenes juvenil, saltou-lhe como um doido furibundo, não conseguindo reaver a peça, pois a lépida moçoila se escapou de um salto e pôs-se, insolente, na pose mais arrogante de quem tem nas mãos a vida alheia.

O nosso famoso cínico explodia em desespero e prometeu de tudo para que lhe entregasse o comprometedor papelzinho. Daria até o salário inteirinho nas mãos dela. Faria todo o serviço, o dela e o dele (que não fazia mesmo) com a maior agilidade e maestria, podia botar-lhe uma coleira ao pescoço e levá-lo a passear em praça pública com a bunda de fora, pintada de vermelho, e cara de palhaço (tinha realmente uma imaginação bizarra!), mas lhe entregasse o conto!

A sirigaita, entretanto, ouviu cada proposta e rogo feito aos gritos, no meio de intensa choradeira (quase se caga e mija de tão apavorado), fê-lo prometer mais trezentas cretinices, até casar com ela, e, ao fim respondeu dando de ombros e com um sarcástico muxoxo.

Ubirajara Passos