Já vai algum tempo que uma depressão enrustida (destas que se confunde com rabugice ou simples exasperação perante uma realidade cada dia mais disfuncional e precária em termos financeiros e funcionais) tem me mantido num humor e imaginação tão limitados que o máximo que permitem além da rotina sonolenta e sem graça de todo dia é um ataque de inconformidade daqueles cujo auge é o proferir de umas tantas frases indignadas e recheadas de palavrões.
Há pouco, entretanto, percorrendo as inúmeras mensagens rotineiras do “zap-zap” dei com a mensagem de um amigo que tem vivido mais ou menos na mesma condição que eu, me dando conta da seguinte comunicação, em um destes grupos de apoio comunitário e auto-organizado da vigilância, em prol da segurança do logradouro comum em que mora, feita por uma dona de casa da turma: “Pessoal, tem uma cachorrinha preta, acho que é uma pintcher, percorrendo a rua, com um lencinho rosa no pescoço… Acho que está no cio. Os cachorros estão estão atrás dela!”
Vinda do nada, em meio à eterna avalanche de desgraças, entre elas as sucessivas enchentes que têm devastado o Rio Grande do Sul em decorrência óbvia das consequências climáticas do aquecimento global, esta postagem teve simplesmente o efeito de correr a vassouradas o ancião reumático e ranzinza que ultimamente me habita e dar plenas asas ao voo de um moleque irreverente e barulhento. Confesso que tive vontade, apesar dos protocolos óbvios de sobriedade moralista, séria e circunspecta que regram o comportamento nesta espécie de grupo, de lhe sugerir que respondesse: “Então tá tudo normal. Que bom pra eles! Deixa a cachorrada ser feliz!” O primo do ancião, indignado e furioso, revolucionário metido a palmatória paradoxalmente libertária do mundo, que ocupa um nicho em segundo plano entre os arquétipos do meu inconsciente, porém, deu-me um puxão de orelha e impediu-me de concretizar a gaiatice em nome do sofrimento que estas pobres senhoras da classe trabalhadora passam todo dia nas mãos de uma elite sádica, metida a emancipada e sabichona, a qual eu acabaria, involuntariamente, fazendo couro.
Mas a pura verdade é que quase me mijei de rir (literalmente) e só não instei meu camarada a publicar o infame comentário pra evitar maiores encrencas públicas e domésticas.
Afinal, por maior que seja o zelo da comunicante em eventualmente localizar o pobre dono da imprudente e “ingênua” cachorrinha que pulou a cerca (e saiu por aí, em plena efervescência de seus caninos hormônios de fêmea, se expondo ao violento assédio destes mal-intencionados primos do lobo mau, e possibilitar o seu resgaste – e da respectiva honra), o texto peca por tamanha e paradoxal ingenuidade que poderia ser atribuído a qualquer protagonista de piada de português.
Se, por outro lado, pretendia chamar à responsabilidade os proprietárias de tão nefanda e devassa fêmea que, com seu irresistível poder de sedução, saia por aí a lançar os pobres paspalhões caninos na mais barulhenta e infeliz disputa (da qual sairiam somente lanhados e despedaçados pelas recíprocas e agudas agressões), perturbando, com a barulheira insuportável, a tranquilidade dos moradores da infeliz rua, o comentário redundante não teria, igualmente, outra consequência, pela obviedade cretina, que conduzir os donos da cadela a uma raiva maior ainda que a da malta de machos excitados contra a sua autora.
Seja como for, por maior indiferença com que a besteira foi recebida (ninguém se deu ao trabalho de responder a mensagem), pelo menos deu alguns instantes de puro prazer hilário a um pobre cinquentão entendiado em uma madrugada domingueira.
Ubirajara Passos