O Vinho do Carlão


Conheço o Carlão há dezesseis anos, desde o dia em que entrou cartório a dentro, funcionário novato vindo da Corlac, com um ar enfastiado de gato de buteco e logo adquiriu “olhos de turba enraivecida” ao constatar as dezenas de pilhas de processo a que lhe estava destinado dar baixa no fichário manual.

Naqueles bons e velhos tempos (era 1990 e Fernando Collor, eleito no ano anterior, acabara de confiscar a poupança de todo mundo e seria devidamente corrido dois anos depois) não se dava nada pelo ex-marinheiro Carlão (que, ao contrário do Popeye, era gordo e não comia espinafre). Mas, anos depois, quando eu já havia curtido um bom tempo como sindicalista e retornei ao setor, descobri que o Carlão havia, ou era sem que soubéssemos, se tornado um “entendedor de vinhos finos”. Foi ele quem me apresentou marcas como “Miolo”, “Jotapê” e outros.

Assim, quando soube que eu iria à Argentina (Província de Misiones), em fevereiro do ano passado, Carlão se apressou em encomendar uma garrafa de “Concha y Toro”, comprada na fronteira, que, depois de alguns meses, sem que o companheiro me procurasse (Carlão foi removido em 2000 para comarca vizinha à minha e atualmente trabalha na serra gaúcha) acabou sendo por mim consumida.

Neste ano, quando estive novamente na República vizinha, prometi cumprir a promessa do ano anterior e anunciei solenemente ao Carlão que a garrafa lhe estava reservada. Ainda assim o companheiro passou a mandar-me freqüentes mensagens pelo correio eletrônico: “Tu não tomou meu vinho?”, “se tomares meu vinho ficarás impotente”. A cada tirada desta eu enfurecia e lhe respondia secamente que não se preocupasse. Mas o tempo foi passando, as garrafas extras trazidas sendo consumidas e um belo dia, em meio ao furacão de trabalho, recebo a mensagem fatídica: “não toma meu vinho!”. Fiquei imaginando o Carlão com aquele mesmo olhar de louco de março de 1990 (bem semelhante ao Collor quando esbravejava: “Duela a quién duela”), mas não tive opção e respondi a verdade, em tom formal de bacharel falido: “Lamento infomar, mas o vinho reservado à Vossa Excelência, em crise de abstinência involuntária, num destes sábados à meia-noite, foi devidamente entornado. Possivelmente irei à Argentina no próximo feriadão e o “pecado” cometido será devidamente sanado, caso procurado em tempo hábil o vinho por Vossa Excelência”.

Carlão, que após todo este tempo de serviço no judiciário, finalmente entrou na faculdade de direito neste ano, sonhando em ser “dotô”, e que outro dia mandou mensagem em português todo empolado para este blog (comentarei isto outro dia), caiu de seus pedestal de “peão engravatado” e disparou pelo correio eletrônico (em estilo de fazer vergonha a Lula e Delúbio): “Bebum é foda mesmo”. E nunca mais falou no vinho importado.

Ubirajara Passos

COBAIAS HUMANAS


Não sou dado a lazeres insossos e banais como assistir ao “Fantástico” da Rede Globo, cujo título se justifica antes pela inacreditável audiência que mantém há uns bons trinta anos que pelo conteúdo do programa. Mas o tédio do final do feriadão de páscoa era tamanho que, entre uma garfada de pizza e um gole de cerveja Polar (que infelizmente só existe aqui no Rio Grande do Sul), dei com a notícia de que um senador carioca, cujo nome não vem ao caso (basta mencionar que é uma antiga figurinha jornalística, destas carimbadas da TV brasileira), fez aprovar projeto-de-lei seu que proibiria a utilização de animais como cobaias em laboratórios científicos, caracterizando-a como “maus tratos”. A matéria segue discutindo a atitude de grupos yankees que lutam pela mesma causa e a contrariedade dos pesquisadores, que alegam ser essencial a utilização de cobaias no teste de novos medicamentos necessários à preservação da vida humana.

Confesso que não vejo maiores problemas no caso das cobaias – salvo a hipótese de elas estarem sendo sacrificadas antes à necessidade de lucro dos laboratórios multinacionais do que à efetiva preservação da saúde da nossa espécie.

Mas diante da polêmica e da preocupação do famoso senador – que, embora não seja petista, demonstra um ânimo ecológico formal similar ao dos membros deste partido da “esquerda modernosa” – me veio à mente um questionamento interessante. Será que o governo de Lula – cujo socialismo de brincadeira foi de há muito jogado à lata de lixo por suas atitudes concretas – não poderia adotar uma postura semelhante em relação à espécie humana? Ou será que, por acaso, todo o massacre a que tem submetido o povo brasileiro, que amarga diariamente a pior fome e miséria desde a ditadura militar, além de ver freqüentemente ameaçados os seus últimos direitos legais formais (como é o caso das reformas trabalhista e sindical), não se constitui num exótico experimento sociológico, com vistas a criar a perfeita vacina contra o capitalismo, em que todos somos (com exceção da alta burguesia palaciana e dos bem remunerados capachos gerentes de multinacionais) cobaias necessárias?

A julgar pela contradição manifesta entre o programa político formal do PT e as atitudes fascistas (neo-liberal é eufemismo) do governo federal, creio que a única hipótese racional de conciliação entre ambas é esta.

Ubirajara Passos

Um poema para acordar adormecidos (“Esconjuro” Ateu e Libertário)


Como é a minha estréia neste blog, vou de cara transcrevendo um poema meu que é uma espécie de programa existencial:

“Esconjuro” Ateu e Libertário

Maldita Igreja que condenas os prazeres,
Moral maldita (que abomina o sexo)
Que todas religiões do Ocidente
E os preconceitos quotidianos reafirmam;

Funesta ética que assimila o gozo
Ao crime e interdita seus mil modos
Na etiqueta “familiar” da “honestidade”;

Nefasto discurso da “inocência”,
Do recato que odeia palavrões
E impõe-nos a vida de tédio e sacrifício
Do trabalho sem paixão e sem direitos
E converteis em zumbis a toda humanidade;

Infeliz “prudência” que só serve aos poderosos;
“Paciência e senso” que nos domesticam
Para que os “donos” gozem o produto
De nosso sacrifício quotidiano e exerçam
Em nosso lombo o prazer sádico do mando;

Doméstico idílio propalado
Que és na verdade domesticação
E opressão no “doce lar” dissimulada,

Pequenos burgueses preconceitos,
Vós não podeis eliminar a foda,
Vós não podeis eliminar o amor
A farra, a bebedeira, a amizade,

Mas converteis tudo em transgressão
E, em tal maneira, nos contaminais,
Que nós bebemos, mas não gargalhamos
Como a criança ri em seus folguedos,

Nós festejamos, mas não envolvemo-nos
Na onda da camaradagem:
Vivemos paralelos devaneios;

Enlaçamos nossos corpos e exaltamos
As emoções ao infinito, mas não amamos.
Nosso prazer é manchado de remorsos,
Gozamos, mas o outro não é nada.

Por vossa culpa não compartilhamos,
Mas torturamos com o que é doce a quem queremos.
Mesmo no auge da volúpia, que tornais
Algo ilegítimo e detestável,
Nós somos amos a impingir domínio
Ou caçadores torturando a presa.

Gravataí, 8 de dezembro de 2004

Ubirajara Passos