Provavelmente eu esteja cometendo um plágio não intencional ao abordar o assunto, que me parece já ter sido magistralmente descrito por algum de nossos grandes cronistas brasileiros.
Sem falar no lugar comum (como o qualificava o Carlão – aquele colega da crônica do Vinho), já vastamente explorado, sobre tipos similares e conexos (todos os matizes do chato de plantão), que mereceram mesmo uma dissertação completa no antológico “Tratado Geral dos Chatos”, publicado em 1962 pelo refinado irmão do último ditador formal do ciclo brasileiro autoritário de 1964, Guilherme Figueiredo. Livro que, aliás, não li, tendo até hoje apenas ouvido ou lido comentários a respeito, na televisão e na internet, mas que parece dar conta genialmente da questão.
Mas a pura e xaropíssima verdade (tão enjoada que recostou seu braço sobre o meu ombro e se pôs a me exigir, com sua voz maçante de bêbada chorona até eu ceder-lhe em publicar esta crônica) é que uma das grandes e urgentes conclusões impostas pela experiência do casamento, em plena meia idade, que me jogou numa sarabanda de convivência com o universo infantil, em que pululam piás de todo tipo, de que achava afastado há anos, foi a tese aqui informalmente exposta.
Ele, o guri importuno, encarna evidentemente as mais diferentes figuras físicas e aparece, a todo momento, nos mais diversos cenários sociais e culturais. Pouco lhe importa se se trata de um palacete sustentado pela especulação financeira falcatrua, pela falcatrua política que impregna um apartamento funcional de um político qualquer em Brasília, de um barraco feito de todo tipo de resto de madeira na margem de um canal do DNOS em Porto Alegre, de uma palafita amazônica ou de uma velha casa de alvenaria de um obscuro bairro de pequena classe média no Rio de Janeiro ou em Belo Horizonte, os três últimos cenários resultantes da falcatrua dos primeiros, embora completamente apartados e distantes de sua realidade.
Ele está sempre, incansável e presente, a postos para nos atacar e empestear a vida, evitando que possamos curtir sossegada e pachorrentamente a tediosa rotina de um domingo à tarde com o jornal em punho ou daquela, cada vez mais rara e impossível, rápida sesta no horário do almoço, em uma quarta-feira.
Em geral é gordinho, com bochechas rosadas, e tem um ar bonachão e meio abobalhado, e se encontra na faixa etária que os chatos adultos metidos a especialista classificam como pré-adolescência (dos dez aos treze anos de idade), época em que a gurizada urbana, na impossibilidade de dar ao tesão nascente da puberdade, outra vazão que a punheta, se compraz em masturbar-se mentalmente nos perturbando a paciência, e a precária tranqüilidade.
Quando mais mergulhados nos encontramos na leitura ou em qualquer um devaneio, daqueles que supomos geniais e, apesar de sua incrível banalidade ingênua, nos parecem a própria descoberta definitiva que irá garantir a felicidade eterna à humanidade, ele irrompe, sorridente, agitado e estridente a nos tirar do sério.
E a forma mais inofensiva de suas aparições é quando nos põe, de um salto, com os cabelos em pé e o olhar esbugalhado, com o estampido repentino de uma bombinha, ou a gritaria vinda do nada.
Se suas intenções e motivos forem banais como nos solicitar alguns centavos ou reais para comprar qualquer asneira, do chiclete ao DVD virgem, ou ao jogo de vídeo-game pirateado, até teremos sorte, abençoados que fomos pela providência protetora dos importunados. Embora a única forma de afastá-los sem maior delonga e com alguma eficácia seja aliviar o peso do bolso, e perder uns cobres, providenciando logo a verba para a compra.
Mas se o meigo fedelho, com aquele insuportável ar de criança ingênua, estiver realmente disposto a lhe brindar com sua afável companhia, siga o leitor o conselho que o velho Dante deixou inscrito na porta do Inferno, no seu best seller medieval, a Divina Comédia: “Vós que aqui entrais, perdei toda a esperança”.
O mínimo que fará é lhe encher de perguntas as mais metafísicas e fora de hora, desde qual a razão de te encontrares lendo o jornal, quem foi que o inventou e porque o publicam até o resultado da multiplicação de 3 por 9 e 27 e os demais resultados por três até o infinito. Se não quiser saber, é claro, afinal, se o Brasil vai conquistar o hexacampeonato mundial de futebol e qual a origem do apelido de seu treinador, além da possível relação dele com o debilóide anão Dunga, do conto da Branca de Neve, e, aliás, porque é Branca de Neve e não Crioula Pixe, que discriminação é esta?
Se o piá estiver de bom humor, e não ficar chorando ou praguejando com os possíveis palavrões e xingações proferidos com o intuito de afastá-lo, mas, pacientemente, resolver mudar de assunto e abordá-lo com toda sutileza com aquela frasesinha perigosa: “tio, o senhor tá nervoso, posso fazer algo pra ajudar?”, aí o caro companheiro está simplesmente perdido.
Porque, com sua proverbial capacidade de incomodar, emendará uma pergunta mais constrangedora e irrespondível a cada resposta e, quando não tiveres mais paciência alguma para responder nada, será capaz de presenteá-lo com a mais sofrível e insuportável demonstração de sua performance artística, cantando esganiçado, e dançando freneticamente, imitando o Jonh Travolta, que um amiguinho, filho de um amigo da mãe dele, lhe mostrou, fantástico, num vídeo velho do teu tempo, ô coroa, que ele não sabia que era tão maneiro!
Isto é claro, se não resolver te dar uma boa “sacudida” no ânimo, e colocar o teu astral pra cima, com elogios cretinos e insistentes do tipo: “tio, o senhor, apesar da idade e já estar gagá, até que é inteligente, estes teus óculos ficam tão bonitos, combinam tanto com a tua careca e os teus cabelos brancos”, ao que só te restará responder com um desanimado e indignado “muito obrigado, meu guri”.
E o pior de tudo, é que, por mais desaforado que sejas com ele, o guri importuno, por definição, não possui o menor senso de conveniência ou dignidade, e continurará grudando como um carrapato em ti, te enchendo o saco irremediavelmente, até o milagroso momento em que ele próprio se entediar da “brincadeira” e resolver ir xaropear outra infeliz vítima.
Infelizmente contra esta espécie de incômodos quotidianos não há qualquer remédio e até o zumbido daquele pernilongo em noite de verão escaldante parece um paraíso comparado a ele.
Ubirajara Passos