O Guri Importuno


Provavelmente eu esteja cometendo um plágio não intencional ao abordar o assunto, que me parece já ter sido magistralmente descrito por algum de nossos grandes cronistas brasileiros.

Sem falar no lugar comum (como o qualificava o Carlão – aquele colega da crônica do Vinho), já vastamente explorado, sobre tipos similares e conexos (todos os matizes do chato de plantão), que mereceram mesmo uma dissertação completa no antológico “Tratado Geral dos Chatos”, publicado em 1962 pelo refinado irmão do último ditador formal do ciclo brasileiro autoritário de 1964, Guilherme Figueiredo. Livro que, aliás, não li, tendo até hoje apenas ouvido ou lido comentários a respeito, na televisão e na internet, mas que parece dar conta genialmente da questão.

Mas a pura e xaropíssima verdade (tão enjoada que recostou seu braço sobre o meu ombro e se pôs a me exigir, com sua voz maçante de bêbada chorona até eu ceder-lhe em publicar esta crônica)  é que uma das grandes e urgentes conclusões impostas pela experiência do casamento, em plena meia idade, que me jogou numa sarabanda de convivência com o universo infantil, em que pululam piás de todo tipo, de que achava afastado há anos, foi a tese aqui informalmente exposta.

Ele, o guri importuno, encarna evidentemente as mais diferentes figuras físicas e aparece, a todo momento, nos mais diversos cenários sociais e culturais. Pouco lhe importa se se trata de um palacete sustentado pela especulação financeira falcatrua, pela falcatrua política que impregna um apartamento funcional de um político qualquer em Brasília, de um barraco feito de todo tipo de resto de madeira na margem de um canal do DNOS  em Porto Alegre, de uma palafita amazônica ou de uma velha casa de alvenaria de um obscuro bairro de pequena classe média no Rio de Janeiro ou em Belo Horizonte, os três últimos cenários resultantes da falcatrua dos primeiros, embora completamente apartados e distantes de sua realidade.

Ele está sempre, incansável e presente, a postos para nos atacar e empestear a vida, evitando que possamos curtir sossegada e pachorrentamente a tediosa rotina de um domingo à tarde com o jornal em punho ou daquela, cada vez mais rara e impossível, rápida sesta no horário do almoço, em uma quarta-feira.

Em geral é gordinho, com bochechas rosadas, e tem um ar bonachão e meio abobalhado, e se encontra na faixa etária que os chatos adultos metidos a especialista classificam como pré-adolescência (dos dez aos treze anos de idade), época em que a gurizada urbana, na impossibilidade de dar ao tesão nascente da puberdade, outra vazão que a punheta, se compraz em masturbar-se mentalmente nos perturbando a paciência, e a precária tranqüilidade.

Quando mais mergulhados nos encontramos na leitura ou em qualquer um devaneio, daqueles que supomos geniais e, apesar de sua incrível banalidade ingênua, nos parecem a própria descoberta definitiva que irá garantir a felicidade eterna à humanidade, ele irrompe, sorridente, agitado e estridente a nos tirar do sério.

E a forma mais inofensiva de suas aparições é quando nos põe, de um salto, com os cabelos em pé e o olhar esbugalhado, com o estampido repentino de uma bombinha, ou a gritaria vinda do nada.

Se suas intenções e motivos forem banais como nos solicitar alguns centavos ou reais para comprar qualquer asneira, do chiclete ao DVD virgem, ou ao jogo de vídeo-game pirateado, até teremos sorte, abençoados que fomos pela providência protetora dos importunados. Embora a única forma de afastá-los sem maior delonga e com alguma eficácia seja aliviar o peso do bolso, e perder uns cobres, providenciando logo a verba para a compra.

Mas se o meigo fedelho, com aquele insuportável ar de criança ingênua, estiver realmente disposto a lhe brindar com sua afável companhia, siga o leitor o conselho que o velho Dante deixou inscrito na porta do Inferno, no seu best seller medieval, a Divina Comédia: “Vós que aqui entrais, perdei toda a esperança”.

O mínimo que fará é lhe encher de perguntas as mais metafísicas e fora de hora, desde qual a razão de te encontrares lendo o jornal, quem foi que o inventou e porque o publicam até o resultado da multiplicação de 3 por 9 e 27 e os demais resultados por três até o infinito. Se não quiser saber, é claro, afinal, se o Brasil vai conquistar o hexacampeonato mundial de futebol e qual a origem do apelido de seu treinador, além da possível relação dele com o debilóide anão Dunga, do conto da Branca de Neve, e, aliás, porque é Branca de Neve e não Crioula Pixe, que discriminação é esta?

Se o piá estiver de bom humor, e não ficar chorando ou praguejando com os possíveis palavrões e xingações proferidos com o intuito de afastá-lo, mas, pacientemente, resolver mudar de assunto e abordá-lo com toda sutileza com aquela frasesinha perigosa: “tio, o senhor tá nervoso, posso fazer algo pra ajudar?”, aí o caro companheiro está simplesmente perdido.

Porque, com sua proverbial capacidade de incomodar, emendará uma pergunta mais constrangedora e irrespondível a cada resposta e, quando não tiveres mais paciência alguma para responder nada, será capaz de presenteá-lo com a mais sofrível e insuportável demonstração de sua performance artística, cantando esganiçado, e dançando freneticamente, imitando o Jonh Travolta, que um amiguinho, filho de um amigo da mãe dele, lhe mostrou, fantástico, num vídeo velho do teu tempo, ô coroa, que ele não sabia que era tão maneiro!

Isto é claro, se não resolver te dar uma boa “sacudida” no ânimo, e colocar o teu astral pra cima, com elogios cretinos e insistentes do tipo: “tio, o senhor, apesar da idade e já estar gagá, até que é inteligente, estes teus óculos ficam tão bonitos, combinam tanto com a tua careca e os teus cabelos brancos”, ao que só te restará responder com um desanimado e indignado “muito obrigado, meu guri”.

E o pior de tudo, é que, por mais desaforado que sejas com ele, o guri importuno, por definição, não possui o menor senso de conveniência ou dignidade, e continurará grudando como um carrapato em ti, te enchendo o saco irremediavelmente, até o milagroso momento em que ele próprio se entediar da “brincadeira” e resolver ir xaropear outra infeliz vítima.

Infelizmente contra esta espécie de incômodos quotidianos não há qualquer remédio e até o zumbido daquele pernilongo em noite de verão escaldante parece um paraíso comparado a ele.

Ubirajara Passos

Nossas Homenagens ao doutor “Inácio Guilhotão”


Outro dia, um companheiro meu de luta sindical, pra variar, me advertia que talvez o insucesso do Movimento Indignação nas eleições para a direção do Sindjus-RS se devesse ao fato de que, por mais que a chapa se esforçasse em se expressar na linguagem mais sóbria e racional possível, abrindo mão do panfletarismo sectário, havia uma contradição manifesta entre tal linha de campanha e a tônica dos textos publicados neste blog.

Que, segundo o meu sincero e bem intencionado crítico, e simpatizante,  primariam pela pior iconoclastia anarquista revolucionária, zombando solenemente não apenas das construções teóricas cientificistas e do imaginário alienante da cultura burguesa, mas não reconhecendo mesmo visões filosóficas e políticas puramente racionais e cientificamente irrefutáveis, além das opções e simpatias político-ideológicas.

Confesso que tive vontade de mandá-lo imediatamente à merda, no melhor estilo de resposta, mas, cedendo aos hábitos de absurda e absoluta paciência que desenvolvi em um ano e nove meses de casamento, me fiz de desentendido. E, ruminando vagarosamente a crítica que me foi servida como um prato medicinal e restaurador, acabei por concluir que o meu amigo, afinal, tinha razão.

O Bira e as Safadezas… vem se caracterizando por uma linha completamente destrutiva, que senta o pau, a torto e a direito, em tudo e em todos, sem propor nenhuma solução propositiva, e sem reconhecer os méritos de tantas instituições, ações e indivíduos que tem colaborado, no correr da História, para a melhoria da vida da humanidade de forma indiscriminada.

Assim é que, para sanar tão irreparável e inexcusável lacuna,  resolvi, em comum acordo com o Alemão Valdir, que, discutindo longamente comigo o assunto, passou a comungar da minha conclusão, e me autorizou a publicar o texto em seu nome também, render neste blog as nossas homenagens a um dos maiores e mais denodados benfeitores da humanidade, senão o maior.

Trata-se de cientista de renomada sapiência e altruíssimo interesse pelo bem estar coletivo dos homens, que, estranha e casualmente se chamava também Inácio, muito embora possuísse, íntegros, os dez dedos das mãos, e seu principal invento pudesse ter sido a causa que colocou o Luizinho na condição de possuidor de apenas 19 dedos. O nosso benemérito e honrado inventor é nada mais nada que o doutor Joseph-Ignace Guillotin, nascido em Saintes, França, em 28 de maio de 1738 e morto em Paris, em 26 de março de 1814.

Eminente e humanitário médico, foi presidente do Comitê de Vacinação de Paris em 1805, uma época em que a recém-descoberta técnica terapêutica preventiva de Edward Jenner era reconhecida e apoiada por poucos, sendo terrivelmente rechaçada pelo ranço da comunidade científica européia. Guillotin foi também um dos fundadores da Academia de Medicina de Paris.

Mas seu grande mérito foi a invenção da guilhotina, a lâmina articulada que permitia aos condenados uma execução suave, rápida e honrosa, isenta do horror de tortura e sofrimento prolongados a que eram submetidos no Ancien Régime da monarquia absoluta francesa.

Graças a ele a república revolucionária jacobina pode fazer uma faxina na canalha da nobreza corrupta e privilegiada do século XVIII em seu país, muito embora o instrumento inventado pelo doutor não fosse suficiente para garantir fossem extirpados todos os safados que submetiam o povo francês à miserável condição de burro de carga e viesse a ser utilizado contra o próprio líder republicano extremista, Robespierre.

O invento de Guillotin é, na verdade, o mais eficaz artefato de revolução e redenção social da humanidade e, se utilizado pela justiça revolucionária indignada, poderia nos garantir a plena eficácia da eliminação da classe opressora e exploradora, a burguesia, separando, de forma definitiva e irreversível, o pescoço e o corpo dos senhores burgueses e seus lacaios políticos que infelicitam a maioria de bilhões de peões escravizados e infatilizados, reduzidos a gado faminto e neurotizado e a infelizes súditos coniventes com sua própria dominação,  mergulhados num triste e sombrio quotidiano de privação material e tortura mental, que mata um pouco todo dia, quando não de uma vez só nas guerras pretensamente étnicas e religiosas patrocinadas pelo imperialismo multinacional, e nos morticínios civis não declarados do enfrentamento com a polícia, nas favelas dos Haitis ou Rio de Janeiros do mundo afora.

Infelizmente, entretanto, nem sua utilização, nem a situação revolucionária que a permitiriam tem resultado da luta político-ideológica dos últimos dois séculos e vinte anos, e os nossos eminentes militantes socialistas de todos os matizes, quando lograram eventualmente o poder, ou se converteram em apoiadores do privilégio e do aparato da nobreza capitalista, se transformando eles mesmos em patrícios da ordem vigente, ou recriaram a dominação das massas através de um sistema de espoliação burocratizado e totalitário.

E, onde eventualmente o início da  revolução socialista foi levado a cabo em real comprometimento com a causa da liberdade e da dignidade popular, como no Chile de Allende, nos anos 1970, não só a guilhotina foi estupidamente desprezada como meio de consolidação da revolução, como a própria eliminação radical da burguesia não foi efetivada antes que a reação fascista sanguinária, violenta e descabelada transformasse o sonho da redenção da maioria trabalhadora no pesadelo da ditadura militar torturadora de extrema-direita.

Ubirajara Passos

A BÍBLIA DO PERUCA: Noé Gugu e os Animais Travecos


Eis que, gerações e gerações após Adão Peruca, os descendentes da cruza do asnífero bocaberta original com a mula eva haviam transformado a Terra num cabaré de quinta categoria, e a própria fauna havia mergulhado na maior putaria!

A orgia era tão grande que sequer a inanimada flora escapava e Deus Peruca já não encontrava mais um único exemplar de mandioca para palitar os dentes, nos passeios vespertinos pelo deserto do Sahara, após o almoço, porque os raros exemplares da raiz que haviam sobrevivido ao consumo exacerbado, muito superior à produção, se encontravam sendo utilizados para outros fins, terrivelmente libidinosos, nas terras dos tataranetos do Caim Peruca, ao sul do Equador e a oriente da cordilheira dos Andes.

Deus Peruca, aliás, andava pendendo de sono e dando esbarrões em galáxias, e criando, aos cósmicos tropeços, buracos-negros a torto e a direito, pois, mesmo se escondendo nos mais remotos rincões do universo, não conseguia dormir, com a barulheira da suruba terrestre, que seguia noite e dia.

Mesmo assim ía aturando a pouca vergonha de sua criação, até que um dia viu vir em sua direção um doido cometa diferente, viscoso e sem rumo, e quase fica cego, levando em pleno divino olho uma esporrada da girafa, que curtia um agitado boquete do macaco.

O supremo Peruca Criador teve então um chilique monstruoso e, desmunhecando furibundo, pôs-se a amaldiçoar a espécie que colocara sobre a Terra para dar um agito na animalada tosca e sem imaginação. O “agito” fora demais e estavam todos perdidos na pior devassidão. Só queriam saber de fuder o dia inteiro, de tudo quanto era jeito e com tudo quanto era bicho, que nem o sapo escapava, porque, para os tarados homens peruca, pouco importava se era fêmea ou macho, o que, evidentemente, não conseguiam distinguir com sua proverbial falta de esperteza. Todos eram uns tremendos cornos e uns baitas duns filhos da puta! Só Noé Gugu, o seu caquético e afetado fiel era casto e obediente às ordens divinas, embora volta e meia se deixasse “possuir” por uns estranhos arroubos de arrogância, tentando, de nariz empinado, num passinho curto e rebolante, e com estranhos requebros de punho, passar por cima da chefia divina, e dar ordens, pra variar estapafúrdias e opressoras, à bicharada.

Assim, não tinha mais jeito! Só afogando aquela putalhada toda, Deus Peruca conseguiria livrar o universo da praga da baderna e da sem-vergonhice, e, finalmente, dormir uns 300 anos, balançando as órbitas celestiais com seus tremendos roncos, sem ser interrompido. E assim, o Grande Peruca dos Céus, chamou Noé Gugu à sua presença e encarregou-o de juntar um casal de cada espécie de animal e colocá-los numa barca blindada, para protegê-los, e mandou mijo adoidado sobre a Terra por quarenta dias, acompanhado de uma forte caganeira, afogando e atolando na merda a geração sacana da humanidade peruca.

Mas o que o Divino e Espevitado Criador não imaginava, na sua ingenuidade eterna, é que o Noé Gugu não fazia sacanagem com as fêmeas humanas ou animais da Terra pelo simples fato de ser puto, e não existir naqueles tenebrosos tempos quem se dispusesse a trepar com um veado velho e chato, com tanta fêmea humana, macaca, cadela, égua ou vaca, ou até mesmo jovens gazelas dando sopa.

E assim quase se perde toda a criação divina destinada a refundar a vida, pois Noé Gugu, fiel aos seus pendores sexuais alternativos, havia juntado na barca dois machos de cada bicho, e só não se extingue para sempre a animalada porque Sem Peruca conseguiu se enfiar clandestino na barca do dilúvio, levando consigo alguns casais heterossexuais de tudo quanto é tipo, e, pego com a boca na botija de sua companheira, subornou Noé Gugu, que levou-o ao quartinho escuro da nau e forçou-o  a fazer o papel passivo, que tanto agradou ao condutor da barca, que até lhe deu dez moedinhas de ouro em recompensa.

Finalmente,  depois que Deus Peruca cessou de se cagar e mijar todo, apacentado da sua reina divina, justamente no paralelo 30 do hemisfério sul, há umas três horas da futura Inglaterra, a barca  encalhou junto a um estranho morro, de nome Itacolomi, de onde Noé Gugu avistou um enorme e colorodíssimo arco-íris, com o qual ficou tão deslumbrado que adotou como símbolo de seu brasão de família. E ali reiniciou a nova humanidade, que, com o passar dos milênios, não só retomaria a putaria, mas a refinaria, agora  com a presença dos temperamentais, violentos e sadomasoquistas Travecos humanos descendentes de Noé Gugu, a quem Deus Peruca, em recompensa à sua devoção, deu o poder de procriar com os machos, do qual o preferido era Sem Peruca, que fundou, mediante a exigência contumaz de dez moedinhas de ouro, a sacanagem profissional no mundo.

Deus Peruca, definitivamente, era um Demiurgo tonto e desastrado!

Ubirajara Passos

Eclesíastes: um hino filosófico ao prazer genuíno enrustido na Bíblia


Na crônica “Da Censura a este Blog e seu Pretenso Caráter Pornográfico”, inspirado no post “Tem putaria na Bíblia”, sobre o Cântico dos Cânticos, publicado no início do último abril, prometi postar neste blog trechos do Eclesiástes, do Rei Salomão, o que, conforme meu costume, apesar de demorar, vai sendo aqui cumprido.

Como poderão conferir os leitores, muito antes do grego Epicuro ou judeu austríaco Wilhelm Reich,dos filósofos nihilistas, de Nietzsche e de Omar Kahyyám, o velho rei semita (que, insisto novamente, para mim possuía um refinadíssimo espírito árabe), já havia concluído, em total descompasso com a apologia judaico-cristã do sofrimento altruísta besta e auto-flagelador, que a única coisa que poderia dar algum sentido à nossa condição absurda e imutável de seres mortais, e conscientes da própria impermanência no mundo, seria o prazer genuíno de usufruir do bem-estar que a vida pode nos proporcionar enquanto respiramos, sem nos atrelarmos à “deveres éticos” escravizantes e prejudiciais ao bem-estar do indivíduo. E sem, muito menos, nos deixar escravizar por ideais de felicidade artificiosos, formais e superficiais, sem qualquer contato profundo com nossas emoções e sentimentos espontâneos, ligados ao tesão de nos sentir vivos, fascinados e confortáveis.

Salomão constatou  na própria  carne, e conhecia muito bem,  que o espetacularismo oco da ostentação e da celebridade em nada amenizam nossa trágica situação de mentes de aguda consciência racional e refinamento emocional destinadas a um dia virar pó, quando não a tornam mais infeliz ainda, e responsável pela miserável infelicidade das multidões jogadas à condição de coisa sem direitos para propiciar o vão luxo dos engalanados opressores. Assim como sabia que raiva e amor, agressão e acolhimento, destruição e construção não são energias opostas e excludentes entre as quais devemos escolher, ou rejeitar, para pautar nossas vidas, mas posições necessárias e benéficas, segundo as circunstâncias em que nos encontremos.

Este não é, como bem sabem os leitores, um site religioso, um blog “sério” (da seriedade moralista e “austera”), e muito menos dogmático, mas vale a pena transcrever aqui os iniciais do fantástico livro:

Palavras do Eclesíastes, filho de Davi, rei de Jerusalém. Vaidade de vaidades, disse o Eclesíates; vaidade de vaidades, tudo é vaidade. Que proveito tira o homem de todo trabalho com que se afadiga debaixo do sol?

Uma geração passa, e outra geração lhe sucede; mas a terra permanece sempre estável. O sol nasce e põe-se e torna ao lugar donde partiu, e, renanscendo aí, dirige o seu giro para o meio-dia, e depois declina para o norte; o vento corre, visitando tudo em roda, e volta a começar seus circuitos. Todos os rios entram no mar e o mar nem por isso transborda; os rios voltam ao mesmo lugar donde saíram, para tornarem a correr.

Todas as coisas são difíceis; o homem não as pode explicar com palavras. O olho não se farta de ver, nem o ouvido se cansa de ouvir.

Que é o que foi? É o mesmo que há de ser. Que é o que se fez? O mesmo que se há de fazer. Não há nada de novo debaixo do sol, e ninguém pode dizer: Eis aqui uma coisa nova, porque ela já existiu nos séculos que passaram antes de nós. Não há memória das coisas antigas, mas também não haverá memória das coisas que hão de suceder depois de nós entre aqueles que viverão mais tarde.

Eu, o Eclesíastes, fui rei de Israel em Jerusalém, e propus no meu coração inquirir e investigar sabiamente todas as coisas que se fazem debaixo do sol. Deus deu esta penosa ocupação aos filhos dos homens, para que se ocupassem nela. Vi tudo o que se faz debaixo do sol, e achei que tudo era vaidade e aflição de espírito. Os perversos dificilmente se corrigem, e o número dos insensatos é infinito.

Eu disse no meu coração: Eis que cheguei a ser grande, excedi em sabedoria a todos os que antes de mim houve em Jerusalém, e o meu espírito contemplou muitas coisas com grande atenção e aprendi muito. Apliquei o meu coração a conhecer a prudência e a doutrina, os erros e a loucura e reconheci que ainda nisto havia trabalho e aflição de espírito, porque na muita sabedoria há muita indignação e o que aumenta a ciência também aumenta o seu trabalho.

Então eu disse no meu coração: Irei e engolfar-me-ei em delícias e gozarei de todos os bens. Mas vi que também isto era vaidade. Por isso considerei o riso como um desvario; e disse ao gozo: Por que te enganas assim vãmente?

Então resolvi dentro no meu coração apartar do vinho a minha carne a fim de dedicar o meu ânimo à sabedoria e evitar a loucura, até ver que coisa seria útil aos filhos dos homens; em que ocupação devem eles empregar-se debaixo do sol durante os dias da sua vida. Executei grandes obras, edifiquei para mim casas, e plantei vinhas; fiz jardins e pomares, e pus neles árvores de toda a espécie; e construí para minha utilidade depósitos de águas para regar o o bosque em que cresciam as árvores; comprei escravos e escravas, e tive muita família, e gado maior e grandes rebanhos de ovelhas, mais do que todos os que houve antes de mim em Jerusalém. Amontoei para o meu uso prata e ouro, e as riquezas dos reis e das províncias. Escolhi cantores e cantoras, e tudo o que faz as delícias dos filhos dos homens, taças e jarros para o serviço do vinho; e ultrapassei em riquezas todos os que viveram antes de mim em Jerusalém; perseverou comigo também a sabedoria. Não recusei aos meus olhos coisa alguma de tudo o que eles desejaram; nem proibi ao meu coração que gozasse de todo o prazer; e se deleitasse nas coisas que eu tinha preparado; julguei que seria esta a minha sorte, o desfrutar do meu trabalho. Depois, refletindo em todas as obras que as minhas mãos tinham feito e nos trabalhos em que debalde tinha suado, vi em tudo vaidade e aflição de espírito, e que nada havia estável debaixo do sol?

Passei à contemplação da sabedoria, dos erros e da loucura. Que é o homem, disse eu, para poder seguir o rei seu Criador? Reconhecia que a sabedoria levava tanta vantagem à loucura, quanto a luz difere das trevas. Os olhos do sábio estão na sua cabeça; o insensato anda nas trevas; todavia reconheci que ambos eles morrem igualmente. E disse dentro no meu coração: Se eu e o insensato devemos morrer igualmente, de que me serve ter-me eu aplicado com maior desvelo à sabedoria? E, tendo discorrido sobre isto comigo mesmo, adverti que também isto era vaidade. Porque a memória do sábio, dos mesmo modo que a do insensato, não será eterna, e os tempos futuros sepultarão tudo igualmente no esquecimento; tanto morre o sábio como o ignorante. Por isto a minha vida se me tornou fastidiosa, vendo que tudo é mau debaixo do sol e que tudo é vaidade e afliação de espírito.

Em conseqüência disto detestei toda aquela aplicação, com que eu tinha trabalhado tanto debaixo do sol, tendo de deixar depois de mim um herdeiro, que ignoro se será sábio ou insensato, mas que será senhor dos meus trabalhos, em que eu suei e me afadiguei; e há coisa que seja tão vã? Por este motivo dei de mão a todas estas coisas, e o meu coração renunciou a afadigar-se mais por nada deste mundo. Porque, depois de um homem ter trabalhado com sabedoria, doutrina e diligência, vem a deixar tudo o que adquiriu a um homem ocioso. E isto é também vaidade e um grande mal. Porquanto, que proveito tirará o homem de todo o seu trabalho e da aflição de espírito, com que é atormentado debaixo do sol? Todos os seus dias são cheios de dores e de amarguras, nem de noite descansa com  o pensamento. E não isto uma vaidade?

Não é melhor comer e beber e fazer bem à sua alma com o fruto dos seus trabalhos?” (capítulos 1 a 2, versículos 1 a 23).

O início do capítulo 3, clássico nas citações conformistas e fatalistas, nos dá, ao contrário da utilização que normalmente fazer seu pregadores, a medida da relatividade e benefício da dicotomia psicológica, de raiz biológica inclusive, das forças de aproximação e repulsão, contração e expansão (para usar um conceito clínico reichiano), encantamento e horror, quando manifestas em conformidade com as situações específicas que tragam vida ou sofrimento ao organismo humano. E é sobretudo um brado contra a coerência imbecil da palavra dada, do compromisso assumido, da descoberta lógica ou emocional futuramente invalidada pelo processo da consciência e pela correnteza concreta da existência, e contra a imobilidade absurda das idéias e posturas petrificadas e erigidas em verdade absoluta:

Todas as coisas têm o seu tempo e todas elas passam debaixo do céu segundo o termo que a cada uma foi prescrito. Há tempo de nascer e tempo de morrer. Há templo de plantar. Há tempo de arrancar o que se plantou. Há tempo de matar e tempo de sarar. Há tempo de destruir e tempo de edificar. Há tempo de chorar e tempo de rir. Há tempo de se afligir e tempo de dançar. Há tempo de espalhar pedras e tempo de se ajuntar. Há tempo de dar abraços e tempo de se afastar deles. Há tempo de adquirir e tempo de perder. Há tempo de guardar e tempo de lançar fora. Há tempo de rasgar e tempo de coser. Há tempo de se calar e tempo de falar. Há tempo de amor e tempo de ódio. Há tempo de guerra e tempo de paz.” (versículos 1 a 8). 

E, finalmente, o início do capítulo 4 é, por incrível que pareça, de um sabor revolucionário que antecipa o próprio Cristo anarquista a pregar no Sermão da Montanha a bem aventurança aos oprimidos e miseráveis, por que lhes será feita justiça e a lamentar os opressores de barriga empanturrada porque serão derrocados:

Voltei-me para outras coisas, vi as operações que se fazem debaixo do sol, as lágrimas dos inocentes e que ninguém os consola, nem eles podem resistir à violência, visto estarem abandonados de todo o socorro. E felicitei mais os mortos que os vivos; considerei mais feliz do uns e outros aquele que ainda não nasceu, e que não viu os males que se fazem debaixo do sol.

Contemplei de novo todos os trabalhos dos homens e reconheci que as suas habilidades estão expostas à inveja do próximo; nisto há também vaidade e cuidados inúteis. O insensato cruza as mãos, consome-se a si mesmo, dizendo: Mais vale um punhadinho com descanso, do que ambas as mãos  cheias com  trabalho e aflição do espírito.

Tornando a refletir, encontrei outra vaidade debaixo do sol: Há um homem que é só, e que não tem ninguém consigo, nem filho nem irmão, e que todavia não cessa de trabalhar, nem os seus olhos se fartam de riquezas, nem faz esta reflexão, dizendo:  Para quem trabalho eu, e me privo destes bens? Nisto há também vaidade e aflição miserabilíssima.

Melhor é, pois estarem dois juntos do que estar um só, porque têm a vantagem da socieade. Se um vai a cair, o outro o sustentará; ai do que está só, porque, quando cair, não tem quem o levante. E,  se dormirem dois juntos, aquecer-se-ão mutuamente, mas um só como se há de aquecer? E se alguém for mais forte que um só, dois resistem-lhe; o cordel triplicado dificultosamente se quebra. 

Mais vale um jovem pobre, mas sábio, do que um rei velho e insensato, que não sabe prever nada para o futuro. Porque às vezes sai um do cárcere e dos ferros para ser rei, e o outro que nasceu rei acaba na miséria. Eu vi todos os viventes que andam debaixo do sol com o jovem que tem o segundo lugar, e que depois há de ter o primeiro. Todos os que o precederam são um povo infinito em número; e os que depois virão, não se hão de regozijar nele; até isto é vaidade e aflição de espírito” (versículos 1 a 16).

Parece que na última frase transcrita, o Salomão andou prevendo também a ascensão do Inácio dos Nove Dedos… Mas, ironias à parte, tudo pode se resumir à velha e lapidar fórmula: “Comei, bebei e fudei! Tudo o mais é pura besteira”.

Ubirajara Passos

Sátiras Luso-Brasileiras


O leitor, com toda razão, dirá que este post é totalmente despropositado e, com razão nenhuma, caracteriza definitivamente um estilo preconceituoso e filho da puta deste blog.

Pobre humanidade sem humor aquela que vê em tudo, especialmente na sátira, preconceito, pois não fosse a caricatura,  a possibilidade de rir das coisas mais quotidianas ou estranhas, inofensivas ou funestas, o que seria do humor?

Humor “politicamente correto” não existe, pois o riso é, por natureza, irreverente e debochado, e sobretudo espontâneo.  Quando tenta ser bem comportado e razoável (o que define o “sério”, cujo equivalente facial é justamente o contrário do riso ou do sorriso, ou seja, o siso), o que dele resulta é o riso forçado (que parece mais uma manifestação de dor de barriga) ou sorriso amarelo (que se assemelha àquela careta própria de quem sentou no formigueiro sem calças).

Mas a publicação de hoje é realmente um despropósito, pois os textos abaixo reproduzidos me surgiram do nada, sem nenhum planejamento. Simplesmente, ontem de manhã, feriado na maior parte das cidades do Brasil, e pra variar, em Gravataí, no Rio Grande do Sul, extremo sul do país, eu me encontrava a brincar com a Isadora, quando me saltou à tela da mente, vindo dos mais obscuros e “obscenos” recantos do inconsciente o verso inicial do primeiro poema (“não sei se escrevo ou leio”) e daí veio o resto.

Aos meus caros patrícios lusitanos deixo a advertência de que não se zanguem com este sub-literato aqui, que ainda não havia escrito “piada de português”, pois ao fazê-lo estou a rir de mim mesmo, descendente que sou de velho tronco português radicado a alguns séculos nesta América. Vamos aos poemas:

Soneto aos meus ancestrais

Não sei se escrevo ou leio!
Num porre enorme berrava
Um portuga tresloucado.

Um alemão lhe dissera,
Em discussão no buteco,
Que, para ser importante
E ter um lugar ao sol,
Tinha que entender de letras.

E o luso, impressionado,
Pensou em compor um fado,
Mas logo se arrependeu.
Deixou-o indeciso o ditado:
Escreveu, não leu,
O pau comeu!” 

Gravataí, 3 de junho de 2010 

Ubirajara Passos

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Rata ou Rato?  

Portuga conservador,
Muito atento à etiqueta,
Foi a uma agropecuária
Comprar veneno pra rato. 

Perguntou-lhe o vendedor
Qual o tipo que queria,
Se do rosa ou do azul. 

E o portuga, embasbacado,
Depois de muito pensar,
Pois sofria de “DDA”,
Naquele “acho-não-acho”, 

Disparou: “o senhor desculpe,
É um enorme camundongo,
Mas não sei se é fêmea ou macho”. 

Gravataí, 3 de junho de 2010 

 Ubirajara Passos