Do pretenso racismo do hino rio grandense (ou, por que o combate à opressão deve incluir a interpretação desassombrada dos textos…)


Não pretendo discutir a legitimidade da postura dos vereadores negros do Psol de Porto Alegre em se manterem sentados durante a execução do Hino oficial do Rio Grande do Sul no ato de sua posse, cuja atitude se tornou polêmica a partir da reprimenda de uma vereadora nitidamente fascista.

Mas é preciso, em meio ao festival de questionamentos e elucubrações de natureza política, histórica e sociológica suscitados, em cujo emaranhado polarizado até as raias do desconhecimento histórico e do revisionismo tacanho (há quem pretenda extirpar mais uma estrofe do hino, além da que já o foi em plena vigência da ditadura militar, por haver nela referência a “tiranos”) não intento mergulhar, que se traga alguma sanidade e lógica ao debate, evitando assassinar o português em prol do folclore político e ideológico desusado.

Que se questione conteúdos subliminarmente preconceituosos é muito louvável e absolutamente necessário. Mas, para tanto, é necessário não assassinar a lógica linguística básica e se forçar o sentido de um texto pela construção externa a sua própria estrutura. E, muito menos, ao contextualizá-lo no ambiente histórico e geográfico em que foi parido, induzir sua caracterização a partir de critérios arbitrários e toscos.

Salta aos olhos de qualquer um que examine o conteúdo do hino rio grandense, tachado de racista, com um mínimo de isenção ideológica (isenção esta não entendida como a falsa neutralidade da razão frente ao privilégio e ao preconceito gritante, mas como atitude desarmada da mente pronta a examinar os fatos concretos a partir de si, sem nenhum julgamento prévio – pré-conceito – a  realidade empírica), que os seus pretensamente ofensivos versos (“mas não basta pra ser livre/ser forte, aguerrido e bravo/povo que não tem VIRTUDE/ acaba por ser ESCRAVO”) não se referem a um segmento determinado da sociedade gaúcha ou brasileira existente na época de sua confecção, mas ao conjunto do povo rio grandense que, na visão política idealizada do poeta, posterior aos fatos que retrata (a revolução farroupilha) se encontrava submetido, dominado, escravizado (metaforicamente falando) aos interesses da corte imperial, que lhe seriam contrapostos e prejudiciais. Se troque, numa descontextualização mais próxima de nosso ambiente, o sul da América Latina, Bento Gonçalves por Leonel Brizola ou Fidel Castro e teremos um libelo anti-imperialista e anticapitalista dos brasileiros ou latino-americanos frente ao domínio do grande capital yankee, europeu ou transnacional do século 20 ou 21.

E é notório que a “virtude” a que se refere o texto se identifica, no contexto político interno que o informa, menos à pretensa RETIDÃO MORAL dos “puros” e soberbos “homens de bem” (senhores brancos de propriedades fundiárias, pecuárias e humanas – fazendeiros privilegiados que lideravam o movimento), contraposta a uma suposta devassidão criminosa e anti-ética da ralé (o “povinho”, que na forma de escravo negro ou peão avulso, sem terra, gaudério mestiço de índio e descendentes brancos de europeus ibéricos, sustentava os privilégios dos estancieiros no suplício da faina exercida debaixo do tacão e sem condições dignas de sobrevivência), que tende a justificar historicamente as diversas formas de dominação social desde a Pré-História ao nosso capitalismo pós-moderno virtualizado, do que às qualidades necessárias à manutenção da liberdade deste povo ou nação frente ao avanço de seu opressor, no caso específico os interesses da elite hegemônica representados no governo central do período regencial frente aos da marginalizada elite regional dos estancieiros farrapos. Se transportarmos a ideia para nossos dias, de pretensa igualdade política formal (em que teoricamente a maioria trabalhadora escorchada e dominada detém o mesmo privilégio político de escolher seus representantes no aparato estatal que os antigos eleitores possuidores de renda e propriedades privilegiados que os habilitavam a votar, no regime monárquico), a VIRTUDE a que se refere o hino seria antes a consciência, a capacidade de defender os próprios interesses e necessidades frente ao domínio espúrio e contraposto de outrem, que nós próprios, revolucionários socialistas, libertários e anti-imperialistas defendemos com unhas e dentes.

Não é porque os líderes do movimento eram fazendeiros (estancieiros) proprietários de escravos, que não pretendiam abolir a escravatura, nem porque a liderança militar final compactuou com o inimigo para o genocídio absurdo dos lanceiros negros, que se deve forçar a interpretação dos versos do “Chiquinho da Vovó”, até onde se sabe escritos posteriormente ao fim da Guerra dos Farrapos.

A injúria sub-reptícia da estrofe “maldita” existiria concretamente e teria toda a lógica, além das simples regras linguísticas, se estivéssemos tratando de um hino feito por ou na intenção de líderes dos Estados Confederados da América, cujo grande motivo de sua rebelião era a necessidade de manutenção do Instituto ignóbil da escravidão ameaçado pelo governo central americano sediado em Washington. Na boca destes revoltosos sulistas dos “States”, com certeza, a intenção dos versos de um poema laudatório adotado como hino estadual pelos positivistas republicanos gaúchos ciosos da autonomia regional (no seio dos quais foi parido Getúlio, cujo governo legou aos modernos escravos assalariados brasileiros os direitos trabalhistas básicos, revogados pelo fascismo racista e anti-povo dos nossos dias) seria sim arrogante, racista e condenável, mas não no caso concreto!

Ubirajara Passos

 

O rascunho da Carta-Testamento


Há exatos 66 anos, na manhã de 24 de agosto de 1954, encurralado pelo golpismo servil de milicos e lacaios políticos defensores do imperialismo yankee (a mesma turma, cujas novas gerações no século XXI, após depor Dilma Rousseff, tratou de revogar o que restava dos direitos trabalhistas e previdenciários promulgados por seu odiado desafeto), Getúlio Vargas desferia, deitado de pijama após uma longa madrugada de infrutífera reunião com o Ministério, um tiro no coração, inviabilizando o golpe que, destituindo-o, inauguraria dez anos antes, a ditadura que deformou o Brasil definitivamente, nas mãos dos ídolos militares do Jairzinho Capitão do Mato.

Junto ao seu leito de morte se encontrava a Carta-Testamento, em versão datilográfica por ele assinada (uma das cópias autografada, inclusive,na presença de Tancredo Neves, seu Ministro da Justiça, que recebeu a caneta-tinteiro de presente na ocasião, pouco antes da última reunião do Ministério às 3 horas da madrugada).

bilhete do suicídio 1

Seis dias antes, porém, seu ajudante de ordens, o Major Fitipaldi, encontrara sob a mesa de Getúlio, no gabinete presidencial um “bilhete” escrito a lápis, que entregou à Alzirinha (filha mais próxima, e secretária, de Getúlio), a qual interpelou seu pai com a peça em punho, lhe sendo tomado por ele, dizendo: “Não é nada disto que tu estás pensando”.

Dias depois após o suicídio, as cinco folhas de bloco oficial da Presidência da República, manuscritas e assinadas de próprio punho por Getúlio Vargas foram encontradas entre as coisas do grande líder morto, sendo divulgadas publicamente pela filha predileta somente 34 anos depois, em 1978.

bilhete do suicídio 2

Embora tenho sido referido como “a verdadeira carta”, contraposta ao que seria uma falsificação dos correligionários do PTB (o texto integral e definitivo da Carta-Testamento, que não foi redigido por Maciel Filho, conforme seu depoimento, mas simplesmente datilografado a partir do manuscrito de Getúlio), pela extrema-direita intrigueira (inclusive numa matéria de Isto-É Independente, que pretendia apresentá-la, em 2004, “com exclusividade”, como texto inédito, 26 anos depois de ter vindo à luz), o “bilhete” nada mais é do que um rascunho, um esboço prévio, da Carta-Testamento, que limitava seu histórico aos dias da crise deflagrada pelo “atentado” sofrido pelo histérico insuflador de golpes  do pós-guerra, o ironicamente ex-comunista Carlos Lacerda.

bilhete do suicídio 3

O texto, porém, traz, sob a influência do impasse insolúvel,   a mesma tensão emocional e o resumo da denúncia dos interesses imperialistas e anti-povo que eram a real motivação da tentativa de derrubada do governo trabalhista. E trazia, no final a esperada profecia de reação que, infelizmente, a lavagem cerebral profunda produzida no imaginário nacional a partir da ditadura instaurada em 1964, impediu de se realizar até os nossos dias, onde o povo brasileiro assiste à própria morte, cordado e contente, como gado conduzido ao matadouro em euforia de cigarrinho de crak:

bilhete do suicídio 4

“Deixo à sanha dos meus inimigos o legado da minha morte.

Levo pesar de não haver podido fazer, por este bom e generoso povo brasileiro, e principalmente pelos mais necessitados, todo o bem que pretendia.

A mentira, a calúnia, as mais torpes invencionices foram geradas pela malignidade de rancorosos e gratuitos inimigos, numa publicidade dirigida, sistemática e escandalosa.

Acrescente-se a fraqueza de amigos que não me defenderam nas posições que ocupavam, a felonia de hipócritas e traidores a que beneficiei com honras e mercês e a insensibilidade moral de sicários que entreguei à Justiça, contribuindo todos para criar um falso ambiente, na opinião pública do País, contra a minha pessoa.

Se a simples renúncia ao posto a que fui elevado pelo sufrágio do povo me permitisse viver esquecido e tranqüilo no chão da Pátria, de bom grado renunciaria. Mas tal renúncia daria apenas ensejo para com mais fúria perseguirem-me e humilharem-me. Querem destruir-me a qualquer preço. Tornei-me perigoso aos poderosos do dia e às castas privilegiadas. Velho e cansado, preferi ir prestar contas ao Senhor, não de crimes que não cometi, mas de poderosos interesses que contrariei, ora porque se opunham aos próprios interesses nacionais, ora porque exploravam, impiedosamente, aos pobres e aos humildes. Só Deus sabe das minhas amarguras e sofrimentos. Que o sangue dum inocente sirva para aplacar a ira dos fariseus.

Agradeço aos que de perto ou de longe trouxeram-me o conforto de sua amizade.

A resposta do povo virá mais tarde…

(a) Getúlio Vargas”

bilhete do suicídio 5

Do sol e das nuvens…


Normalmente, eu estaria, e deveria, hoje estar analisando os aspectos políticos da eleição do Jairzinho Capitão do Mato para a Presidência da República, constatando o óbvio: que esta se constituiu na consagração, esperada e apoiada pelos promotores, do golpe de 2016, para continuidade das reformas (como já deixa claro o futuro ministro da Economia, ao afirmar, nesta segunda-feira que a “prioridade do plano econômico do futuro governo será a Reforma Previdenciária) cuja essência se resume a extinguir os últimos direitos trabalhistas, sociais e previdenciários legais garantidos à peonada, bem como a privatização e entrega definitiva do patrimônio nacional nas mãos da classe dominante internacional, sob cujo sádico prazer será sacrificado o rebanho de milhões de trabalhadores, sem direito, agora, sequer a reclamar, debaixo do pior tacão autoritário, intimidatório e repressor.

Mas, surpreendido pela incessante e trovejante onda de fogos de artifício no início da noite, quando, sem me dar por conta da hora, voltava de um passeio na pracinha próxima com a Isadora (que só fui entender que comemorava a desgraça nacional ao chegar em casa e saber de meu enteado que o resultado final das urnas já fora divulgado e não havia volta), me vi diante do abismo inevitável, que se sabe que poderia aparecer, mas não se quer acreditar esteja a nossa frente quando surge.

Nascido no inverno de 1965, fui criança, adolescente e jovem durante o regime entreguista e ditatorial inaugurado em 1964 e pude presenciar pessoalmente o clima de censura e repressão. Nunca esquecerei de um belo dia, em 1978,  em que me vi surpreendido, ao levantar da parede do quarto de meus pais um quadro do Padre Réus que se encontrava estranhamente afastado no prego que o segurava, e debaixo descobrir um quadro, cuja moldura encerrava um cartaz de campanha de Brizola a governador do Rio Grande do Sul em 1958, que meu pai escondera durante quatorze, por medo da repressão do DOPS. Ao questionar minha mãe sobre o personagem retratado, esta me disse, do alto de sua sabedoria de quem apenas passou pelas primeiras letras e as quatro operações aritméticas: “meu filho, este era um cara que defendia o trabalhador”. Não poderia haver definição mais perfeita e as circunstâncias deixavam claro até para um guri de treze anos as razões porque o quadro fora escondido e a natureza do regime político que forçava o fato. Era uma ditadura que fora estabelecido contra o povo, a grande maioria que sua ingloriamente todo dia para manter o Brasil andando e a quem quer que opusesse a este massacre reservava a tortura, a morte e o desaparecimento.

E hoje pela manhã me vi envolto pelos sentimentos que expressei, quase literalmente, a uma amiga e companheira de militância política e sindical, nas palavras seguintes, ao lhe agradecer uma mensagem pelo dia do abraço, e que dizem todo o possível neste momento.

Estou perplexo e ainda em estado de choque. Apesar de manter a postura radical e revolucionária nos posts do facebook, sinto medo e um imenso nojo.

Sei que, pelo menos nos primeiros tempos, não iremos parar no pau-de-arara, mas temo justamente o que mais me enoja: a reação histérica e furibunda dos fanáticos, muitos próximos, como parentes e colegas, que, diante de nossa menor crítica, só sabem esbravejar (ou se não o fazem nos termos exatos, deixam perfeitamente implícito  o pensamento) como se estivessem vendo o próprio diabo na frente, coisas como “petista imundo, ateu imoral, comunista!”,  e parecem estar dispostos a avançar de porrete sobre nós, no seu ímpeto de caça às bruxas.

Diante de uma das minhas postagens do final da noite, um colega aposentado, destes que me chamava de comunista no início dos anos 1990, em razão de minha liderança sindical, saiu-se, com a autoridade de censura que parece lhe ter sido magicamente concedida pela vitória do louco, com a seguinte pérola, sutilmente intimidatória: “Quando tu vai parar de dizer besteira?”

Temo porque sei que há formas bem mais sutis de nos exterminarem, a nós que defendemos a dignidade e a real decência da peonada trabalhadora, do que a tortura ou a eliminação física. E tenho certeza que será esta horda de fanáticos, bem próximos, o instrumento da delação e da perseguição, que virá através das brechas legais mais obscuras, na forma de ações criminais e procedimentos administrativos disciplinares. O mínimo suspiro indignado emitido por nós (“execráveis vermelhos degenerados dignos de exemplar e feroz punição” na visão destes fanáticos) servirá para detonar o linchamento “legal” que nos azedará a vida.

Mas não sei viver de outra forma que não seja o exercício desbocado e sem freios da liberdade. Apesar do medo, continuarei no pé do autoritarismo e da injustiça e bradarei, eu mesmo, com toda serenidade possível, até que me calem.

Pois, como me dizia a Isadora, na primeira madrugada deste fatídico ano, ao lhe dar a tradicional intimada para ir dormir (frase que anotei em meu caderninho e planejava desde então viesse a ser tema de matéria própria neste blog), parindo espontaneamente e sem saber o seu primeiro poema: “São os nossos sonhos que fazem o sol nascer. Se a gente não dorme o dia não vem. E as nuvens são os nossos pesadelos”!

Ubirajara Passos

 

 

 

 

 

O discurso de despedida de Jango no enterro de Getúlio Vargas


“Vai como foram os grandes homens. Tu que soubeste morrer, levas neste momento o abraço do povo brasileiro, levas especialmente o abraço dos humildes, levas o abraço daqueles que de mãos calmas e honradas constroem a grandeza de nossa Pátria.”

Jovem sucessor de fazendeiro são-borjense cuja familia possuía profundas ligações com o clã dos Vargas, desde o século XIX, Jango tornou-se, nos primeiros tempos do exílio de Getúlio (deposto em outubro de 1945 com o apoio dos próprios generais cujos interesses satisfizera durante a ditadura do Estado Novo), íntimo amigo e confidente do velho ex-Presidente, brotando em suas informais tertúlias as raízes que o conduziriam à liderança do PTB, ao Ministério do Trabalho, no último período de governo de seu mestre, e à posição de seu herdeiro político, na qual, sucessivamente Vice-Presidente (por dois mandatos) e Presidente da República, encarnaria, com a radicalização trazida pelos novos tempos, os ideiais de mudança e dignidade para a peonada trabalhadora, já presentes na Revolução de 1930.

Por ocasião da crise desencadeada com o “atentado” ao fascista demolidor de presidentes (o “Corvo” Carlos Lacerda, jornalista e político histérico-demagogo que liderava a ladainha falso-moralista, a serviço dos interesses econômicos internacionais contrariados por seu Gegê), em 5 de agosto, na Rua Toneleros, no Rio de Janeiro, que acabaria culminando com o suicídio do Presidente da República, Getulio daria a Jango uma cópia da Carta Testamento (a outra seria encontrada junto ao bidê do quarto onde se suicidaria e seria lida por telefone para a Rádio Nacional, por Osvaldo Aranha, ainda na manhã de 24 de agosto), recomendando que a levasse consigo para o Rio Grande do Sul e a lesse lá, preparando-se para resistir, pois, depois dele, Getúlio, cairiam sobre Jango.

No enterro de Getúlio Vargas, ocorrido em São Borja, dois dias após o suicídio, em 26 de agosto de 1954, fortemente emocionado, João Goulart leria, na condição de amigo íntimo, discípulo político e líder dos trabalhistas, o discurso abaixo ,em que reproduz e comenta contuntendemente o manifesto deixado pelo mártir da causa nacionalista e da peonada trabalhadora:

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“Meu caro amigo Getúlio Vargas.

Nosso grande e inesquecível chefe.

Aqui estamos com o coração cheio de amargura e os olhos cheios de lágrimas para prestar-te a nossa última homenagem. Se viveste com dignidade, morreste com honra.

A minha homenagem, a homenagem dos são-borjenses, a homenagem de todos os brasileiros presentes e dos que acompanham esta cerimônia em espírito, a maior homenagem que poderíamos te prestar será a leitura da carta que me entregaste antes de te despedires da vida e entrares para a História.

Esta carta será a bandeira, o lema e o catecismo de todos os trabalhadores do Brasil, que, tenho certeza, represento neste instante e que choram como chora todo povo brasileiro a sua morte. Há de ser, também, o hino do povo que recebe com lágrimas o sangue que deste por ele.

Disseste, Dr. Getúlio, duas horas antes de morrer, com a consciência tranqüila, como só podem ter os grandes homens que sempre trilharam o caminho do bem e da verdade, palavras que unirão o povo brasileiro na defesa de todos os princípios que pregaste, desde que iniciaste a vida vida pública, princípios que não morrerão, que serão o nosso estandarte de luta, a nossa bandeira, e que farão com que o nosso pensamento esteja sempre junto do teu pensamento.

A nossa bandeira será a bandeira dos princípios que defendeste durante toda a tua vida, nosso grande amigo e chefe Getúlio Vargas.

‘Não me acusam, insultam-me! Não me combatem, caluniam-me! Não me dão direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação para que não continue a defender, como sempre defendi, o povo e principalmente os humildes. Sigo o destino que me é imposto.

Porque me coloquei contra os grupos econômicos e financeiros internacionais fui objeto de uma revolução e venci.’

Realmente foi essa revolução que trouxe novos horizontes para todos os trabalhadores do Brasil. Foi esta revolução que inspirou e criou as leis do trabalho, pela qual puderam ter liberdade o povo que era escravo e principalmente o trabalhador que vivia oprimido e humilhado.

Deste liberdade aos trabalhadores, e a reação nunca te perdoou.

‘Iniciei o trabalho de libertação e instaurei o regime de liberdade social. Tive de renunciar. Voltei ao Governo nos braços do povo.’

Voltaste, sim, nos braços deste mesmo povo, que, nesta hora, com lágrimas, vem reafirmar aquela solidariedade que nunca te faltou e que te levou ao Catete e que te levará agora à suprema glorificação. Voltaste nos braços deste povo que nunca esqueceste, nem mesmo minutos antes de deixares esta vida, a caminho da eternidade.

‘À campanha subterrânea de grupos internacionais, aliou-se a dos grupos nacionais, revoltados contra o regime de garantia do trabalho. A lei dos lucros extraordinários foi detida no Congresso. Contra a justiça da revisão do salário mínimo, desencaderam os ódios.’

Os trabalhadores sabem que enfrentaste ódio e reação para criar aos que trabalham apenas mais um pouco de pão e tornar as suas existências um pouco mais compatíveis com a dignidade das criaturas humanas.

No entanto, contra mais este pedaço de pão que deste aos trabalhadores, fazendo justiça, levantou-se a reação que te leva a este túmulo.

Quis criar a liberdade nacional na potencialização das nossas riquezas através da Petrobrás. E, mal começa esta a funcionar, a onda de agitação se avoluma. A Eletrobrás foi obstaculada até o desespero.’

Lembramo-nos, Dr. Getúlio, quando na Bahia enlambuzaste as mãos no petróleo do nosso solo, procurando fazer a independência do Brasil e dos brasileiros. A reação jamais concordou com esta atitude. O grande crime que cometeste foi de procurar fazer com que as riquezas saídas do solo, deste solo onde entra agora teu corpo inanimado, não caíssem nas mãos dos trustes e monopólios. Este foi o teu crime e por isso desejavam o teu castigo!

Disseste ainda: ‘Não querem que o trabalhador seja livre. Não querem que o povo seja independente. Assumi o governo dentro da espiral inflacionária e descobri os valores do trabalho. Os lucros das empresas estrangeiras alcançavam até quinhentos por cento ao ano.’

Muitos dirigentes dessas mesmas empresas devem estar neste instante com as mãos tintas de sangue, do sangue do homem que procurou impedir a concretização de seus impatrióticos desígnios.

‘Nas declarações de valores do que importávamos, existiam fraudes constatadas de mais de cem milhões de dólares por ano.’

Eram estas as unhas aduncas que roubavam e sugavam o suor dos trabalhadores e do povo brasileiro,que desejavam a tua destruição. Precisavam aniquilar o nosso grande chefe e amigo porque ele representava a liberdade do povo e da Pátria. Mas, eles se enganam. Não destruíram Getúlio Vargas nem seus ideais que sempre estiveram vivos e, agora mais do que nunca, brilham na alma e no coração dos brasileiros.

Nós, dentro da ordem e da lei, saberemos lutrar com patriotismo e dignidade, inspirados no exemplo que nos legaste. Embora entrando o teu corpo inanimado agora na terra, as tuas idéias entram definitivamente no coração de todos os brasileiros.

‘Veio a crise do café. Valorizou-se o nosso principal produto. Tentamos defender seu preço e a resposta foi uma violenta pressão sobre a nossa economia, a ponto de sermos obrigados a ceder.’

Aqui está, também com o coração entrecortado pela dor o teu ministro, o teu amigo Oswaldo Aranha, que é testemunha desse esforço. O Brasil responderá àqueles que exigiam através do teu sacrifício o sacrifício do nosso povo e da nossa Pátria.

‘Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma agressão constante, incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo, renunciando a mim mesmo para defender o povo que agora se queda desamparado. Nada posso lhe dar a não ser meu sangue. Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o sangue brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida. Escolho este meio para estar sempre convosco.’

Morreste como mártir, tiveste a glorificação que só têm os grandes estadistas, os que sabem viver e morrer. Deste em holocausto a tua vida para que não fossem sacrificadas mais vidas deste povo sofredor e miserável, deste povo que sempre conduziste com dignidade e que soubeste honrar até na morte.

‘Quando vos humilharem, sentireis em vosso peito a energia para luta, por vós e por vossos filhos. Quando vos vilipendiarem, sentireis no meu pensamento a força para a reação. Meu sacrifício vos manterá unidos. O meu nome será a vossa bandeira de luta.’

Tenho certeza, Dr. Getúlio, que o teu nome há de ser sempre a nossa bandeira de luta e bandeira de vitória a favor dos pequeninos e dos humildes por quem viveste e por quem deste a tua vida. Getúlio há de ser sempre o nosso chefe de ontem, o nosso chefe de hoje, o nosso chefe de amanhã.

Cada gota do meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada da resistência.’

Lutaste como um bravo e, injuriado e caluniado, ainda nos últimos instantes de tua vida afirmaste em uma mensagem de despedida ao nosso povo que: ‘Ao ódio respondo com o perdão’.

Só os grandes homens sabem perdoar. Somente um homem como o amigo poderia perdoar aqueles que nesta hora estão com as mãos respingadas de sangue. Perdoaste, e nós, em cima do teu corpo inanimado, seguindo o teu exemplo e com a alma partida, perdoaremos também, colocando o estandarte do teu nome sob o pavilhão auriverde da nossa Pátria.

Disseste ainda: ‘E aos que pensam que me derrotaram, respondo com a minha vitória’. A vitória foi selada com as lágrimas do povo que tanto amaste e tanto defendeste.

‘Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém.’

Para isso estamos aqui, fando em nome de São Borja, falando em nome de todos os trabalhadores da nossa Pátria, dos mais humildes aos mais categorizados, do Amazonas ao Chuí. Eu digo, Dr. Getúlio, este povo não será escravo de ninguém, porque a bandeira que levantaste será a nossa bíblia, o nosso hino, e nos conduzirá um dia à vitória que sempre almejaste para o povo que tanto amaste e pelo qual derramaste o teu sangue.

Disseste mais: ‘Meu sacrifício ficará para sempre. E minha alma e o meu sangue serão o preço do meu resgate. Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto’.

De peito aberto também morreste, Dr. Getúlio, porque morreste como só sabem morrer os homens de coragem e de dignidade.

‘Ódio, infâmias, a calúnia não abateram o meu ânimo. Dei-vos a minha vida e agora ofereço a minha morte’.

Ofereceste mesmo tudo a este povo que neste instante está aqui derramando lágrimas sobre este caixão, com o coração dolorido e amargurado. Ofereceste a vida pelo povo por quem lutaste toda a existência. Mas, esteja certo, Dr. Getúlio, este povo que dá esta prova de solidariedade nunca trairá os teus ideais. Este povo saberá lutar com todas as suas forças para vitória de tuas idéias, que será a definitiva redenção social e econômica de nossa Pátria, para felicidade de todos os brasileiros.

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‘Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo a caminho da eternidade. E saio da vida para entrar na História.’

Nada podem recear os nomens que são capazes de todas as renúncias e que dizem, ao despedir-se deste mundo: ‘Ao ódio dos meus inimigos respondo com o meu perdão’. As portas do além já estão abertas. Já estás lá, Dr. Getúlio, porque só os homens de bem e os superiores são capazes deste gesto. Foste bom e justo. A tua bondade e o teu espírito de justiça há de nos inspirar sempre.

Dr. Getúlio, já estás a esta hora na história do mundo. Ainda ontem os jornais de Londres afirmavam que havia morrido o grande estadista do mundo. Saíste da vida para entrar na História e podes baixar ao solo que defendeste até as suas entranhas, através da lei regulando o nosso petróleo, levando a certeza de que este povo que amaste e que também te ama, jamais te esquecerá.

Tu estás vivo dentro do nosso coração, e vivos os ideais que defendeste.

Até a volta, Dr. Getúlio. Vai como foram os grandes homens. Tu que soubeste morrer, levas neste momento o abraço do povo brasileiro, levas especialmente o abraço dos humildes, levas o abraço daqueles que de mãos calmas e honradas constroem a grandeza de nossa Pátria.

Nós estamos contigo e contigo está todo o povo brasileiro.”

Eleito Vice-Presidente da República, em votação direta e específica para o cargo, conforme dispunha a Constituição de1946, em 1955 e 1960 (tendo como presidentes titulares Juscelino Kubitschek e Jânio Quadros, o último de chapa contrária à da coligação PSD-PTB, liderada pelo Marechal Henrique Batista Teixeira Lott), Jango assumiria a presidência da República (com poderes reduzidos em razão de uma golpista emenda parlamentarista, que viria a ser revogada em plebiscito, pelo voto popular, em janeiro de 1963), após a gigantesca resistência civil-militar liderada pelo Governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola (a Legalidade, de que uns dos grandes instrumentos eram os pronunciamentos e comunicações radiofônicas feitos a partir da Rádio Guaíba, de Porto Alegre, para todo o Brasil, e, em ondas curtas, para o exterior), em 7 de setembro de 1961.

Procurando aprovar no Congresso, de maioria conservadora, cheio de burgueses e latifundiários, as Reformas de Base que possiblitariam um mínimo de dignidade à massa de camponeses, estudantes e trabalhadores, como a Reforma Agrária, Urbana, Universitária, entre outras, além da nacionalização das refinarias particulares de petróleo e da limitação legal da remessa dos lucros das multinacionais às suas sedes, no estrangeiro, seria deposto, em abril de 1964, no auge de sua popularidade, que alcançava, então, mais de 70%, em um golpe militar realizado sob os mais moralistas e cretinos pretextos (com o velho apoio do golpismo lacerdista da UDN e dos fazendeirões e apaniguados privilegiados do PSD, assustados com a mobilização desde então nunca vista dos movimentos populares), de que resultaria o miserável e violento Brasil que hoje vivemos, deformado política e culturalmente por 21anos de ditadura formal (só definitivamente extinta com a promulgação da Constituição de 5 de outubro de 1988, há quase trinta anos), regime do qual se herdou o privilegiamento e a descaração parlamentar e política nos níveis hoje tão denunciados pela própria corrente fascista que os criou e que agora, a seu pretexto, nos jogou em nova, e informal, ditadura, que está levando de arrasto as últimas garantias sociais do povo brasileiro.

Ubirajara Passos

Duplo soneto de um duplo despertar…


Mais um poema relegado ao “pó” da gaveta virtual, resgatado na faxina informática deste final de ano:

Duplo Soneto de um duplo despertar…

Desperta, camarada, que chegou a hora!
Em meio à escuridão das multidões ignorantes,
Ressurge a memória sepultada sob as toneladas
Da maledicência hipócrita e cruenta!

Agora sabemos que não era utopia,
Nem entusiasmo fantasista e inconsequente
Que ao sacrifício tantos arrastaram.

Se no Brasil a massa obreira, estuprada
Nos seus direitos de “viver em paz “,
Só desejava e foi interditada
Antes ainda que a jornada principiasse
No Chile, cada camarada
Experimentou concretamente um pouco
Da construção da nova vida em liberdade!

Nas duas pátrias um sono malsão
Faz prisioneiras as consciências desde então,
Mas uma brisa gélida e ligeira
Vai-se se impondo, suave e destemida.

No sul do sul do mundo a igualdade
Há de tornar a cada um digno e pleno
Porque iguais são os sofrimentos
E eles inspiram-na, revolta ensandecida e sagrada!

“Não sou apóstolo, não sou mártir”, nem profeta,
Sei “que a morte é melhor que a vida
Sem honra, sem dignidade, e sem glória”

Mas sei que em “cada gota do sangue” dos sacrificados
Pelo direito a uma vida humana,
Manteve-se e está frutifican
do em nossas consciências a “vibração sagrada”!

Gravataí, 7 de janeiro de 2013

Ubirajara Passos

Pacotaço de Sartori: por que não aconteceu a greve geral do funcionalismo gaúcho e o que lhe resta fazer diante da sanha privativista e anti-trabalhador dos governos estadual e federal


Diante do questionamento de combativos companheiros servidores do judiciário gaúcho sobre a razão que impediu o funcionalismo do Rio Grande do Sul de deflagar a greve geral contra o pacotaço privativista (com absurdos como a venda da Sulgás, da Cia. Riograndense de Mineração e da CEEE, extinção da Cientec, da Fundação Zoobotânica e da fundação Piratini, que mantém a TVE e a Fm Cultura) e anti-servidor do governador Sartori, votado na correria e sob forte repressão miltar às manifestações de protesto na praça da matriz, publicamos, a guisa de resposta, as seguintes reflexões no grupo de facebook “Greve no Judiciário Gaúcho”:

Nem medo, nem falta de união, mas simplesmente peleguismo puro de lideranças sindicais burocratizadas e incapazes de comandar a rebeldia necessária. Discursos infantis e desgastados como o da direção do Cpers, que tratava o apocalipse do serviço público como um mero “pacote de maldades” (algo como uma “birrinha pueril do governador) e não como uma política coerentemente pensada (embora radicalmente absurda) e determinada de enxugamento e desmonte do serviço público, e entrega de setores estratégicos ao capita privado, deixam clara uma inércia abobalhada diante da hecatombe que está nos reduzindo a todos à condição de escravos sem nenhum direito, atê mesmo à representação sindical! (vide o fim de triênios, adicionais, licença-prêmio e licença remunerada para cumprimento do mandato sindical), na liquidação do estoque e patrimônio da lojinha falida do budegueiro gringo (tal é a natureza das “medidas de gestão” de Don Sartori).

No Sindjus não se deve nem falar, visto que dirigido por agentes expressos e teleguiados do patrão.

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fotos: Inezita Cunha
A heróica resistência das manifestações durante a votação propositalmente de inopino, feita a ferro e fogo e garantida pela repressão militar truculenta, é o derradeiro ato desesperado, e absurdamente insuficiente, que mesmo que contasse com a presença de dezena milhares de servidores não surtiria o efeito necessário que somente poderia advir da greve geral por tempo indeterminado.

No já longínquo ano de 1987, atitudes bem menos drásticas do governador peemedebista Pedro Simon foram exemplarmente rechaçadas e detidas por uma greve sem precedentes, liderada por sindicatos com brios.

Naquela época os servidores da justiça fizeram sua primeira grande greve sob a liderança, recém eleita então, do Paulo Olímpio da ASJ (!), que nem o Sindjus então existia!

É inacreditável a domesticação a que chegamos nestes trinta anos, que é extremamente perigosa quando ocorre simultaneamente ao avanço raivoso e impiedoso do fascismo privativista e predatório que comanda o país desde Brasília.

As “reformas” de Sartori e Temer não coincidem com a lógica da liquidação de lojinha falida por acaso, nem são mero reflexo da índole partidárias de tais governos, casualmente peemedebistas.


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fotos: Inezita Cunha

Elas servem concretamente aos interesses do capital financeiro internacional, cuja sanha cada vez maior se garante pela implantação de ditaduras informais, escudadas numa legalidade aparente e no mais furibundo e falso moralismo fascista.

E para implantá-las nada melhor que governos fantoches dirigidos pela velha lógica feudal, entreguista e subserviente das aristocracias latino-americanas. As mesmas que apearam Perón e Jango do poder, “suicidaram” Getúlio e Allende e assassinaram Che Guevarapara que a burguesia americana pudesse continuar sugando cada vez mais o produto do sacrifício diário dos trabalhadores do continente.

Contra este massacre econômico e social deliberado, que nos chicoteia o lombo e nos tritura o corpo até o tutano, não resta, tanto para servidores públicos quanto para o povo trabalhador brasileiro em geral, outra saída que a única e derradeira resposta plausível ao encurralamento irresistível em que estamos sendo jogados. E ela não é somente a resistência pela greve geral, mas a derrubada, a pau e pedra de tais governos ilegítimos.

Estão nos retirando até o último direito e nos conduzindo à miséria definitiva. Logo não teremos mais nada a perder. E aí, quem sabe, ganharemos o ímpeto para virar a mesa e mandar esta ordem social e econômica, e todos seus beneficiários, inclusive os mandaletes corruptos travestidos de defensores democratas da moralidade, ao lugar que merecem (que não é exatamente o colo de suas genitoras)!

Ubirajara Passos


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foto: Inezita Cunha

DO ÚLTIMO BLOG DO ALEMÃO VALDIR, NUNCA DIVULGADO: “Santa Rosa e as Missões Jesuíticas: impressões sobre a utopia atávica no coração da América do Sul”


 

Em 5 de outubro de 2010, na sala da casa do companheiro Valdir Bergmann, ao lado da de sua irmã Astri, em Santa Rosa, escrevi o texto abaixo reproduzido, para a sua última versão do blog “O Folhetim”, nunca lançada (e cuja única matéria postada foi este meu ensaio). Nele (que deveria introduzir uma série sobre Santa Rosa e região), além de um pouco da história da minha amizade com o Alemão, pode-se conhecer um dos muitos sonhos que o entusiasmavam nos últimos anos. Embora eu compartilhasse (e desenvolve-se no texto as justificativas, agregando algumas impressões pessoais), a idéia da tríplice fronteira e regiões adjacentes como um país culturalmente diferenciado no coração da América do Sul, com uma base antropológica na presença comum de imigrantes europeus tardios, é dele e demonstra a variedade de interesses que o absorviam depois do retorno ao interior do Estado. Deixo, assim, os leitores na companhia de mais este pedaço vivo do pensamento do saudoso amigo do peito, companheiro de lutas, tragos, alegrias e desgraças, o eterno “alemão Valdir”:

Santa Rosa e as Missões Jesuíticas:
impressões sobre a utopia atávica no coração da América do Sul

Conheci Santa Rosa em 1994, quando, diretor recém-empossado do Sindjus-RS (o sindicato dos trabalhadores da justiça estadual gaúcha), percorri durante uma semana o interior do Rio Grande do Sul, em palestra sobre o ante-projeto de plano de carreira que, na condição de representante da entidade, ajudara a elaborar na comissão para isto designada pelo Tribunal de Justiça. Naqueles tempos heróicos e, de certa forma, ingênuos, mal sabia eu, brizolista de esquerda na casa dos vinte anos, os caminhos e descaminhos que percorreria na seguinte década e meia.

E muito menos imaginava os tantos atalhos, desvios e estradas sem saída que veria o Rio Grande do Sul, o Brasil, e o próprio movimento sindical em que militava, tomar para, finalmente, desembocar no infeliz e tragicômico teatro que faz do pobre palhaço Tiririca o deputado federal mais votado do Brasil, nos dias de hoje, e nós todos palhaços mendicantes a assistir o circo do capitalismo colonial e feudal disfarçado de radicalismo vermelho (o petismo) comandando e desgraçando o cotidiano de 90% dos brasileiros, que cada vez suam mais para ter  direito a menos nos seus bolsos e nas suas mesas (para não falar de carências mais complexas, mas tão imprescindíveis quanto uma vida digna da condição humana).

O referido ante-projeto, por exemplo, acabou tristemente engavetado, e neste ano de 2010, depois de 15 versões, continua a ser “estudado” pela alta administração do Judiciário, que desde então nunca mais admitiu a participação de um representante sindical nas sucessivas comissões elaboradoras, porque a minha atuação foi traumática demais para as autoridades, estranhamente escandalizadas com a garantia de direitos básicos constantes da própria Constituição, até hoje não aplicados, como a isonomia salarial dos servidores do interior com os da capital.

O companheiro que me acompanhava na épica jornada de sete dias entre Caxias do Sul e Pelotas, passando por São Borja, entre dezenas de comarcas judiciais visitadas, embora já demonstrasse alguns pendores pessoais um tanto narcisistas, na época, acabaria por se tornar, anos depois, surpreendentemente, meu desafeto político e hoje ocupa um alto cargo de assessoria burocrática na bancada petista do legislativo, em Porto Alegre.Bem longe, portanto, do afã dos cartórios ou das marchas e manifestações de rua.

Eu próprio já não ocupo cargos na executiva política do sindicato, mas candidato de oposição derrotado, por antigos companheiros, no presente ano, à coordenação geral dele, sou um dos tantos que lidera grupo de ativistas pró-servidores e anti-pelegos, o Movimento Indignação.Continuo tão radical e tão puro quanto então, nos meus princípios e atitudes políticas,mas já não tenho qualquer ligação com o PDT, descaracterizado após a morte de Brizola, na onda do adesismo ao neo-fascismo disfarçado do governo Lula,

Mas esta crônica não tem por fim contar a minha vida política e muito menos discorrer sobre as eternas mazelas de nossa sociedade. Se, abusando da paciência do leitor, acabei, também, por desviá-lo por outras veredas nada prazerosas e entretedoras, o foi por sestro psicológico inevitável e para dizer que, naquela era, mal passei pela cidade (tão somente o espaço de uma tarde de palestra no foro local ao retorno ao hotel em Santo Ângelo, à noite), como mal falei, em Caxias do Sul (pólo sindical a que pertencia a comarca de São Francisco de Paula, onde ele trabalhava) com aquele cuja amizade se tornaria, anos depois, o pretexto das inúmeras visitas que tenho feito a esta cidade da Região Missioneira do Rio Grande do Sul, o companheiro Valdir Bergmann. Foi na companhia dele que aqui voltei dois anos depois, em nova caravana de reuniões mobilizadoras pelo interior, agora somente sobre o centro, o norte e o oeste,que duraram semanas. Nesta nova ocasião a visita foi mais intensa, mas não passou do churrasco na casa da mãe do companheiro, da noite no hotel Rigo e da madrugada no bordel Replay.

Somente em 2004, quando o ex-diretor do Sindjus, Valdir deixava Porto Alegre (em que residiu por quase dez anos) para retornar à sua querência adotiva (filho de Cerro Largo), é que passei a visitá-lo freqüentemente e, coisa de uma a três vezes por ano, a conviver profundamente com Santa Rosa e com a Região das Missões e Noroeste do Estado. E fui mesmo além, incursionando duas vezes pela vizinha província argentina de Misiones, que, juntamente com a região gaúcha referida, constitui, desde o século XVII, um mundo a parte no cenário sul-americano, diferenciado de Brasil e Argentina, e aparentado da raiz nativa do vizinho Paraguai, em pleno coração do continente.

Desde então tenho conhecido mais e melhor um país que parece destinado a espelhar de forma concreta e silente, em meio às mazelas da sociedade capitalista moderna, as utopias ancestrais do Novo Mundo. Aqui se encontram as mais diversas etnias convivendo lado a lado, do imigrante europeu germânico, eslavo ou italiano aos recentes palestinos, e aos descendentes dos índios guaranis e mestiços de luso-brasileiros e da castelhanada. E aqui, a centenas, quase milhares, de quilômetros de Porto Alegre, de São Paulo, Brasília, Santiago do Chile ou Buenos Aires ainda é possível, mesmo a um estrangeiro como eu, ao passar pela rua, ou adentrar a fruteira e o boteco, ser recebido com aquele sorriso aberto, claramente espontâneo e acolhedor, com aquela empatia básica de um ser vivo por qualquer outro e manter, sem qualquer conhecimento prévio com o intelocutor, o mais despreocupado diálogo sobre o tempo, o preço da soja ou mesmo a malfadada política, o que só acontece após aquele cálido e simpático bom dia, boa noite, boa tarde…

Ao contrário das grandes metrópoles, muito raramente se vê um missioneiro andando pelas ruas com o ar preocupado, a cara fechada, o olhar esbugalhado e furibundo de um cachorro louco. O típico paulista ou porto-alegrense neurótico, entorpecido da fumaça das surdinas, pode até mesmo acabar por ter um ataque fulminante de tédio ou surpresa ao se deparar com um povo autêntico e de bem com a vida, embora nada apartado do trabalho duro e dedicado que formam o estofo da alma imigrante e de seus antecessores.

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Roberto Seibt, Ubirajara Passos e Valdir Bergmann a bordo da balsa, na travessia do Rio Uruguai entre Porto Mauá (Rio Grande do Sul, Brasil) e Alba Posse (Misiones, Argentina)

E neste ponto é interessante, até para encerrar esta idílica descrição, citar as casualidades aparentes e curiosas que fizeram desta a minha segunda querência e que perpassam a sua história. Nasci, vivo e trabalho em Gravataí, cidade no entorno metropolitano de Porto Alegre, distante quase seiscentos quilômetros desta Região,  com seus 300.000 habitantes descentes de portugueses açorianos (sendo eu, inclusive, um deles, ainda que meus pais sejam originários das margens do Rio Rolante, em Fazenda Passos, antigo município de Santo Antônio da Patrulha) e, desde os anos 1970, migrantes das mais diversas regiões do extremo sul do Brasil. Afora a amizade com o alemão Valdir, e as eventuais visitas da minha atividade político-sindical não haveria, aparentemente, qualquer outro fato que me ligasse à Santa Rosa, São Borja, Santo Ângelo, as ruínas de São Miguel, a Ijuí, Posadas, Oberá ou Encarnación de Paraguay. Nem nada justificaria a minha paixão pela região e por Santa Rosa, além de suas características próprias e do encantamento imenso da beleza de suas mulheres. O detalhe, entretanto, é que Gravataí surgiu originariamente como um aldeamento de índios guaranis trazidos à força pelos portugueses como resultado da primeira guerra entre o imperialismo europeu ibérico e a nação diferenciada e autônoma, formada pelos padres jesuítas nos campos que correm o continente desde o norte do rio Paraguai até além da margem oriental do Uruguai, entre os índios locais. Eu, filho de migrantes destinados originariamente, também, por Lisboa a colonizar o Território das Missões Jesuíticas(o que nunca se realizou), depois de evacuado pelos índios guaranis, nasci no pé da Serra Geral, justamente na cidade onde se deu o encontro destes dois mundos: os rechaçados e enjeitados filhos das Missões Jesuíticas e os filhos do Açores, ambos com o destino ligado às terras regadas pelo centro-norte do aqüífero guarani e das bacias hidrográficos dos rios Paraná, Paraguai e Uruguai.

A outra coincidência, que não diz respeito a mim mas à história da civilização ocidental dos últimos séculos, é o destino destas terras. Abrigando secularmente os guaranis, se tornaram pela ação protetora e aculturadora dos padres da companhia de Jesus o berço da primeira, e talvez a única legítima, concretização da utopia comunista, numa época em que nem o avô de Marx era nascido, e em que as manifestações contestatórias da peonada trabalhadora européia se reduzia a umas quantas revoltas de camponeses. Neste país, ainda que vinculado ao império espanhol, sob a inspiração e supervisão dos padres, os índios criaram as primeiras cidades planejadas, hierarquizadas é bem verdade, mas que garantiam a cada um de seus membros condições materiais e espirituais de uma vida instigante e prazerosa, de trabalho sim, mas também de aplicação das mais refinadas e exigentes técnicas intelectuais, artísticas e laborais da época, que hoje se manifestam nas ruínas, na estatuária, nos restos arqueológicos da metalurgia e da música remanescentes, que podemos encontrar nos museus da região.

Este povo, que vivia para si e por si, foi atingido, de um dia para outro, no século XVIII pelo resultado das disputas gananciosas e narcísicas do imperialismo e das nobrezas decadentes de Portugal e Espanha,envoltas no jogo de poder europeu, e, após mais de meio século de guerras, foi desarraigado de seu torrão e espalhado na Argentina, Paraguai, Uruguai e Rio Grande do Sul, como massa de enjeitados por seus territórios, humilhados e reduzidos a gado como todo o povo de tais nações.

O irônico é que uns 80 anos depois da passagem do último furacão político-militar pela região (por ocasião da guerra de independência do Uruguai, ocasião em as sete cidades guaranis gaúchas foram esvaziadas pelo tacão caudilhesco, tomando o destino definitivo de ruínas), na década de 1910, os mais enjeitados dos enjeitados tardios do Ocidente imperialista, os imigrantes europeus de segunda e terceira geração trazidos para as metrópoles de ambas as margens do rio Uruguai, vieram aqui se estabelecer, e recriar, na honrosa categoria de enjeitados do mundo, uma nova civilização, bem mais humana que a Europa e seus sucessores anglo-americanos (que, para igualar-se àquela primeira república guarani só necessita ver embandeirando seus campos o autêntico e humano socialismo), mesmo que sob o domínio das potências sul-americanas que dividem em três países formais esta nação original, trabalhadora e alegre que são os Povos Jesuíticos da América do Sul.

Santa Rosa, 5 de outubro de 2010

Ubirajara Passos

O Discurso de Brizola no comício do Largo da Prefeitura de Porto Alegre (1º de abril de 1964) durante o golpe do dia da mentira


Após o comício da Central do Brasil, em 13 de março de 1964, a direita brasileira lacaia, aliada do imperialismo norte-americano, alarmada com a possibilidade de ver o início da derrogação de seus privilégios, se unificaria, da UDN lacerdista ao PSD de Tancredo e Juscelino, contando com o apoio dos generais fascistas formados na ideologia da Escola Superior de Guerra e na convivência com as forças yankees na Itália, no final da Segunda Guerra Mundial, acelerando suas ações em direção ao golpe militar que, depondo João Goulart, acabaria por impor uma ditadura de mais de vinte anos, cujo saldo, além das mortes e das perseguições, e do atraso social, se perpetua até hoje, na miséria, na fome e na violência quotidiana, no apodrecimento da consciência da massa de nossa população e na presença, no poder federal,  de ilustres canastrões corruptos atuantes naquela ditadura, como José Sarney, dono absoluto de um latifúndio que atende pelo nome de Estado do Maranhão.

Em 19 de março, meio milhão de equivocados – ou nem tanto – (inclusive o futuro Presidente da República do Partido dos “Trabalhadores”, o eminente Inácio dos Nove Dedos), liderados por ilustres beatas raivosas e assexuadas (a própria imagem concreta da peste emocional materializada na defesa de sua expressão política, o fascismo), e patrocinados pela burguesia nacional e multinacional, tomaria as ruas de São Paulo, exigindo aos brados histéricos a deposição de Jango e a prisão de Brizola, rosários febrilmente manipulados nas garras, na “Marcha da Família com Deus pelo Brasil e a Liberdade“. Criava-se assim o pretexto de massas civis pretensamente descontentes , como se faria uma década após no Chile de Pinochet, para derrubar um governo popular, eleito legalmente por maioria e que contava, à data de sua deposição, com a aprovação de ampla maioria do povo brasileiro, segundo a própria imprensa da época.

Seis dias mais tarde cria-se o pretexto da quebra da hierarquia militar, e do descontentamento dos generais e almirantes, em torno do apoio de Jango ao que os golpistas caracterizavam como a subversão dos comandos subalternos das forças armados (sargentes e marinheiros), que haviam se organizado em associações próprias (verdadeiros sindicatos) em defesa de seus direitos políticos (muitos haviam sido eleitos para cargos parlamentares e sido impedidos de assumir por decisão do STF, que corroborava a absurda inelegibilidade prevista da Constituição de 1946 para soldados e comandantes imediatos da tropa, abaixo do oficialato), trabalhistas (o salário dos marinheiros, por exemplo, era inferior ao das empregadas domésticas) e das reformas de base defendidas pela Frente de Mobilização Popular, liderada por Leonel Brizola e integrada por organizações populares como o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT) e União Nacional dos Estudantes (UNE), além de numerosos sindicatos e confederações nacionais de trabalhadores (entre eles, metalúrgicos e trabalhadores rurais), bem como pela extrema esquerda do PTB, PSB e PCB, pelo grupo político do governador pernambucano Miguel Arraes e as Ligas Camponesas do Nordeste, liderados pelo deputado socialista Francisco Julião.
Resultado de imagem para brizola discursando em 1964Em 25 de março, especificamente, os marinheiros e fuzileiros navais, sob a liderança do “cabo” (marinheiro de segunda classe) Anselmo (que mais tarde se apurou ser um agente infiltrado do aparelho de conspiração institucional yankee, a CIA), realizam, no Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro, um ato comemorativo ao segundo aniversário da fundação de sua associação, por José Anselmo então presidida. Naquela ocasião, durante a cerimônia, vem à tona decisão do ministro da Marinha determinando a prisão dos diretores da associação em razão de críticas à proibição de sua visita à Petrobrás em 20 de março. Em reação à repressão, os marinheiros se declaram em assembleia permanente, sendo colocados de prontidão (e, portanto, devendo dirigir-se a seus postos em navios e quartéis) pelo ministro Silvio Mota, resistindo à ordem abstrusa, que pretendia esvaziar, sob o tacão hierárquico, a resistência. Fuzileiros enviados para prender os “revoltosos”, aderem ao movimento. Entre eles se encontrava o comandante do corpo de fuzileiros navais, o Almirante nacionalista Aragão, que para lá havia se deslocado a fim de parlamentar com a massa mobilizada.

No dia seguinte o sindicato é  sitiado por tropas do Exército, levantando-se o sítio em razão da resistência dos presentes no prédio e em 27 de março, Jango, vindo de Brasília, se dirige à antiga sede da presidência da república na ex-capital, o Palácio das Laranjeiras, e determina a libertação dos marinheiros presos e a demissão do Ministro da Marinha, Sílvio Mota, responsável pelas prisões, que é substituído nacionalista e reformista Paulo Mário. O resultado é o repúdio do oficialato conservador e golpista, expresso em manifesto do “Clube Naval” no dia 28. Estava criado, definitivamente o pretexto legalista e hierárquico para depor o presidente que “desmoralizava” os austeros e sérios chefes das forças armadas, “defendendo baderneiros”, que se cristalizaria dois depois, na noite de 30 de  de março, após o discurso de Jango no automóvel clube, em ato realizado pela Associação dos Sargentos, nos quais o presidente da República defenderia ferozmente as reformas de base e denunciaria o golpe em marcha.

Algumas horas após, na madrugada de 31 de março, em conluio com o governador udenista (banqueiro que usufruiria lautamente das benesses da futura ditadura) Magalhães Pinto (e com o apoio dos governadores de São Paulo, Ademar de Barros, Rio Grande do Sul, Ildo Meneghetti, ambos do PSD, e do histérico fascista Carlos Lacerda, governador da Guanabara, da UDN) o folclórico general auto-intitulado de “Vaca Fardada”, Olímpio Mourão Filho lançaria um manifesto golpista, dirigindo suas tropas de Minas, Juiz de Fora, para o Rio de Janeiro, onde Castelo Branco (incrivelmente chefe do Estado Maior das Forças Armadas) conspirava abertamente para depor o governo federal. As tropas enviadas pelo Ministro da Guerra para combatê-lo aderem ao golpe (por ordem de seu comandante, ainda que muitos soldados e sargentos desertem para resistir), bem como as do “compadre” de Jango, Amaury Kruel, sediadas em São Paulo.

Resultado de imagem para brizola discursando em 1964

Jango se desloca para Brasília, não encontrado meios de lá resistir e, na noite de 1º de abril, se dirige para Porto Alegre, onde Brizola, juntamente com o Comandante do III Exército, General Ladário Telles, organiza a resistência ao golpe, reeditando a Cadeia da Legalidade, baseada agora na Prefeitura Municipal de Porto Alegre, governada pelo trabalhista Sereno Chaise, e na Rádio Farroupilha, a qual realizará, na noite daquele dia, o último comício do regime democrático e em que Brizola proferirá o discurso que a seguir transcrevo, a partir de gravação de áudio da época, reproduzida no Site do Correio do Povo, de Porto Alegre, neste ano, por ocasião da comemoração dos 50 anos do Movimento da Legalidade de 1961:

“Ainda não correu  bala! Ainda não se deu um tiro! Os gorilas têm vencido até agora e progredido como aqueles que são hábeis jogadores de xadrez, com seus punhos de renda. Mas, de agora em diante, nós iremos ver quem realmente tem fibra e tem raça. Na hora de correr bala, na hora do cheiro de pólvora, nós iremos ver a covardia dos traidores e dos golpistas. Neste momento, entra em cadeia, em conexão com a Rede Gaúcha da Legalidade a Rádio Nacional de Brasília e centenas de emissoras pelo Brasil afora. 

Gorilas, gorilinhas e micos de toda espécie! Golpistas e traidores! Agora é que nós vamos ver quem é que tem banha para gastar! Mas a nossa resposta, a resposta do povo gaúcho,  a resposta do povo gaúcho ao tartufo Ademar de Barras, de Barros vai ser a bala! Nós agora é que arrecém vamos começar a luta. Até agora ela esteve se realizando como um tabuleiro de num… num tabuleiro de xadrez. Agora é que nós vamos pôr à prova,  vamos comprovar a covardia destes traidores do povo e da pátria. 

Atenção, trabalhadores de São Paulo! Atenção, trabalhadores da Guanabara, trabalhadores do Nordeste e de Minas Gerais. A nossa palavra , a partir de hoje, é a greve geral dos trabalhadores. Somente na área do III Exército e onde atuem as forças que lutam ao lado do povo e dos nossos direitos é que os trabalhadores devem redobrar as suas atividades. Nós, neste momento, já recebemos a comunicação que no Estado da Guanabara parou tudo! Greve geral no Rio de Janeiro. Pararam as barcas. Pararam os trens da Central e da Leopoldina. Amanhã irão parar os metalúrgicos, os serviços de transporte, o DPT e as comunicações. Amanhã, greve geral na Guanabara. E nós, aqui, nos dirigimos ao operariado paulista, aos trabalhadores de São Paulo, aos trabalhadores da Petrobrás, da refinaria, da refinaria do Cubatão. Parem! Greve dos trabalhadores de São Paulo, para defender o próprio direito de greve das classes trabalhadoras!

 Nós, como afirmamos, não tomamos a iniciativa da violência. Nós não começamos a violência. Foram eles que começaram. Pois agora eles irão tê-la. A resposta do povo gaúcho à insurreição golpista, à violência contra os nossos direitos e liberdades , meus patrícios e irmãos, será, primeiro, a ajuda às tropas do III Exército, da 5ª Zona Aérea e da Brigada Militar. Segundo, organização de corpos provisórios para aglutinação do elemento civil, sua organização para participação na luta ao lado das gloriosas forças legalistas do III Exército e da Brigada Militar. Nós, desde já, conclamamos aos nosso chefes e dirigentes do interior: passem a reunir companheiros, centenas, milhares de companheiros para serem selecionados e organizados para a grande marcha que haveremos de realizar, ao lado de nossos irmãos de todos os recantos da pátria, para a conquista das reformas e para a libertação do povo brasileiro da espoliação do capitalismo internacional. 

Pedimos ao povo gaúcho e ao povo brasileiro que acompanhe as transmissões da Rede da Legalidade que estamos fazendo de Porto Alegre. E aos tartufos, aos traidores, aos golpistas, aos gorilas, nós daqui declaramos, a eles declaramos que eles não perdem por esperar, não perdem por esperar. Eles irão prestar contas ao povo brasileiro pelos crimes que estão cometendo contra a Constituição, contra os direitos e conquistas democráticas do nosso povo. E a eles nos queremos dizer: conosco não pegam estas mistificações, esta onda que aí fazem de que nós somos subversivos, que somos anarquistas, que somos extremistas, que somos comunistas, isso e aquilo. A eles nós queremos dizer: vermelho é o sangue de gaúcho e de brasileiro que corre nas nossas veias. 

Nós diremos  ainda, meus patrícios e irmãos, que devemos, de agora em diante, agir com firmeza e energia, sem perder a nossa cabeça e a nossa se… a nossa serenidade. Precisamos agir com firmeza e energia, mas com serenidade e confiança. Eu quero vos dizer que o meu lugar, povo gaúcho, é aqui convosco, é aqui ao vosso lado, para as lutas, as glórias e os sofrimentos do nosso povo, que caminha, que anda, que vai, incoercivelmente, progredindo, avançando em busca de sua libertação e da realização de uma sociedade justa, humana e verdadeiramente cristã, dentro das nossas fronteiras. 

Porto Alegre é um lugar histórico e, hoje, é o centro, novamente, da resistência. O Governo do Estado parece que até já abandonou a sua sede. Segundo se informa, segundo, segundo se informa, o Governador já anda lá por Uruguaiana. Outros dizem que foi se esconder na praia do Quintão. Outros, ainda, informam que está em baixo de uma cama, em algum lugar, aqui mesmo por Porto Alegre. Mas o mais certo é imaginarmos que o seu paradouro deve ser em algum lugar próximo da fronteira argentina ou da fronteira do Uruguai, para fugir da justiça do povo gaúcho, porque ele lançou um manifesto traindo a consciência democrática do nosso povo. 

Porto Alegre é um lugar histórico, Porto Alegre é um lugar histórico, e eu, há muito tempo que eu venho dizendo que os destinos deste país, a chamada crise brasileira, vai, ía e vai ter a sua solução exatamente aqui em Porto Alegre.

 

Eu peço a todos que permaneçam atentos, porque possivelmente ainda hoje tenhamos as mais importantes e decisivas informações a prestar ao povo gaúcho e ao povo brasileiro sobre a crise político-militar, esta guerrinha sem tiros que até agora assistimos, que aí estamos vendo se desenvolver pelo país. 

Nós teremos possivelmente importantes informações. E a nossa palavra de ordem, neste momento, ao povo gaúcho e ao povo brasileiro é a luta e a resistência contra o golpismo, contra a ditadura disfarçada das oligarquias e das minorias dominantes e reacionárias de nosso país! 

Luta e resistência! Nós não nos conformaremos! E nós, por isso, esperamos que o nosso Presidente não nos tire das mãos, nem das suas, nem das nossas, a bandeira da defesa da ordem democrática. Que não passe por sua cabeça, como ele próprio reafirmou, nenhuma idéia de renúncia. Porque nós queremos permanecer coerentes pelos nossos direitos para conquistar o direito de novos avanços em nossa caminhada em busca da libertação social e econômica. 

Quanto a nós, ele sabe, quanto a nós povo brasileiro, é essa a nossa posição. Se for difícil o caminho, não tem importância. Vitória sem luta é a conquista de uma glória sem honra. E, para nós patriotas e brasileiros, nessa cruzada em defesa dos nossos direitos , a nossa sorte está lançada. Mais vale perder a vida que perder a razão de viver! 

Deixo-vos, meus patrícios e irmãos, o meu abraço, a minha confiança. E volto a insistir com a minha palavra. Com a minha palavra ao… aos nossos irmãos sargentos, para que eles tome as suas iniciativas: passe a mão nestes gorilas! Prendam-nos, deponham-nos em nome do povo brasileiro e em nome da própria Constituição. 

E eu, daqui, quero enviar uma mensagem ao valoroso Comandante do Corpo de Fuzileiros Navais, ao Almirante Aragão. Para dizer a ele que o povo gaúcho está esperando dele, e acreditamos que o faça, só mesmo que obstáculos intransponíveis existam em sua frente, que nós esperamos daquele grande soldado, e de sua corporação, a imediata iniciativa da prisão do verdugo Carlos Lacerda. 

 Lacerda,  Lacerda é um homem periculoso. É um contraventor e um criminoso. Ele está ao lado do golpe e nós esperamos que o nosso companheiro Aragão, com os seus fuzileiros navais, deite a mão naquele criminoso para julgamento, para a justiça que clama o povo brasileiro! 

Ao ínclito e valoroso, ao ínclito e valoroso, ao bravo General Oromar Osório, daqui enviamos a nossa mensagem mensagem: nós entregamos ao grande e valoroso  General Oromar Osório, o traidor Amaury Kruel, para ele fazer justiça em nome do povo brasileiro. O bravo General Osório deve estar marchando em direção a São Paulo. E a ele nós entregamos o traidor Amaury Kruel para que ele, com os seus soldados, seus sargentos e seus oficiais, tome a iniciativa de ajustar contas com aquele que quebrou o seu juramento, a sua palavra, a própria dignidade, as tradições de dignidade do povo gaúcho. 

Aos meus conterrâneos do Rio Grande, gaúchos e gaúchos de todas as gerações, à valorosa e inconfundível população porto-alegrense, quero dizer, nesse momento, da minha confiança, do meu apreço, quanto a vossa dedicação, o vosso valor, o vosso heroísmo e a vossa lealdade. E, quanto a mim, podem também ter a segurança e a certeza que o meu lugar  é exatamente aqui convosco, aqui ao vosso lado.”

Na manhã seguinte, 2 de abril, após o presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, implementar o golpe de Estado, em plena sessão do Congresso Nacional, daquela madrugada, iniciada às 11 h do dia dos bobos, (declarando vaga a presidência da República, sob o pretexto completamente falacioso e inverídico de que Jango havia abandonado o território nacional, e empossando seu colega golpista e lacaio dos generais gorilas, o presidente da Câmara dos Deputados Ranieri Mazzili na Presidência da República – como fantoche, pois o poder passa a ser exercido pelo comando da “revolução”, dirigido por Costa e Silva, no Ministério da Guerra, no Rio de Janeiro), Jango, sabedor da presença de uma força tarefa de fuzileiros navais yankees postada nas águas territoriais brasileiras, em frente a Vitória (capital do Espírito Santo), pronta a apoiar militarmente os golpistas, após longa reunião com Brizola, líderes trabalhistas e generais do III Exército, renuncia implicitamente, negando-se a resistir, e dirigindo-se a São Borja e, surpreso com a repressão, no dia 4 de abril, ao exílio no Uruguai.

A cadeia da Legalidade é encerrada, na tarde de 2 de abril, com melancólico discurso de Sereno Chaise, que transmite a recomendação de Brizola aos companheiros de coragem e serenidade diante do fato consumado.Frustrados e desmotivados pela desistência do líder institucional, o Presidente da República, os militantes nacionalistas e populares desarticulariam as greves gerais e outros atos de resistência iniciados, debaixo da feroz repressão do novo regime, bem como as forças militares legalistas e nacionalistas de Oromar Osório e do Almirante Aragão não implementariam os atos reclamados no discurso de Leonel Brizola que, após permanecer por mais de um mês na clandestinidade, percorrendo o interior do Rio Grande do Sul e do Brasil, se exilaria no Uruguai, de lá tentando, nos primeiros anos, organizar a guerrilha para deposição dos militantes capachos do imperialismo e implementação da revolução de caráter popular nacionalista e depois se veria confinado ao interior do país, até ser expulso pela ditadura uruguaia em 1977, e, passando pelos Estados e Portugal, retornar, como grande líder do trabalhismo brasileiro, em 1979, em plena “abertura democrática” do ditador João Figueiredo.

Ubirajara Passos

O discurso de Brizola no comício da Central do Brasil (13 de março de 1964)


Sexta-feira, 13 de março de 1964. Um ano, dois meses e 10 dias após o plebiscito que garantiu a devolução de seus plenos poderes como chefe de governo, o Presidente da República João Goulart, finalmente se convence de que a conciliação com os partidos da direita “progressista” (especialmente o PSD de Juscelino e Tancredo, com que o PTB mantinha aliança desde a morte de Getúlio Vargas) se tornara incompatível com o nacionalismo e a defesa dos interesses dos trabalhadores. E toma  definitivamentre o lado das forças populares e anti-imperialistas, assinando, no maior comício da história do Brasil, até então, junto à Estação Ferroviária Central do Brasil, os atos legais que regulamentavam a remessa de lucros das empresas multinacionais ao estrangeiro, desapropriavam as refinarias privadas de petróleo e desapropriavam os latifúndios situados ao longo das rodovias federais, criando a Supra (Superintendência Nacional da Reforma Agrária).

Junto a Jango e à massa de trabalhadores radicalizados no movimento pelas reformas de base (a reforma agrária, a reforma urbana e universitária, entre outras), se encontram no palanque as lideranças da UNE (União Nacional dos Estudantes, ironicamente representada por seu então presidente, José Serra), do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), do PSB (Partido Socialista Brasileiro), do clandestino Partido Comunista Brasileiro, da Comando Geral dos Trabalhadores (CGT) e, principalmente, da Frente de Mobilização Popular. Falam, entre outras lideranças  da FMP, o governador de Pernambuco Miguel Arraes, do Partido Social Trabalhista (PST), o deputado do PSB Francisco Julião, líder das Ligas Camponesas, e o grande líder da frente, que era o deputado federal  do PTB pelo Estado da Guanabara Leonel Brizola.

Brizola, como governador de seu estado natal, o Rio Grande do Sul (1959-1963) havia se tornado o grande baluarte do nacionalismo de esquerda, ao desapropriar duas grandes multinacionais, a IT&T (telefônica) e a Bond and Share (energia elétrica). E, com sua rebeldia intemerata e audaz, havia garantido a posse do Vice-Presidente da República João Goulart na titularidade do cargo, vetada pelos ministros militares fascistas e pró-imperialistas de Jânio Quadros, quando da renúncia deste em agosto de 1961.

Utilizando-se da estrutura legal do governo do Estado, Brizola, com o apoio da Brigada Militar e da massa popular (que se mantinha informada através das ondas da Rádio Guaíba, instalada nos porões do Palácio Piratini, de onde Brizola proferia seus discursos), havia feito uma verdadeira revolução contra o golpe que se preparava então, epsiódio que se tornou conhecido como a Campanha da Legalidade.

Agora era o mais radical e inconformado dos líderes populares que reclamavam reformas na sociedade capazes de dar um mínimo de dignidade às massas populares (e que, se implementadas, teriam criado as condições mínimas para um avanço futuro rumo ao socialismo). Neste comício proferiria o discurso que reproduzimos abaixo, publicado no órgão de imprensa da FMP, o jornal  Panfleto – o jornal do homem da rua – , de 16 de março de 1964, n.º 5 (páginas 2 e 3)

“Este é um encontro do povo com o governo. Encontro com esta multidão e com os milhões que, através dos seus rádios, do recesso de seus lares, estão presentes não apenas para aplaudir, mas para dialogar com o governo.  Se fosse apenas para aplaudir, não seríamos um povo independente, mas um rebanho de ovelhas. O povo está aqui para clamar, para reivindicar, para exigir e para declarar sua inconformidade com a situação que estamos vivendo.

Saudamos o governo pelo seu gesto democrático. Porque é realmente democrático um governante descer para o diálogo com o povo.  E estamos certos de que o presidente não veio, nesta noite, apenas para falar, mas para ouvir e para ceder ao povo brasileiro. Para ceder a esta pressão – é a voz que vem da fonte de todo o poder, é a pressão popular, a que com honra, um governante deve se submeter. 

Quero citar e aplaudir estes dois atos que devem deflagrar um processo de transformação em nosso país: o decreta a Supra e o decreto de expropriação das refinarias de petróleo.

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Povo e governo, num país como o nosso, devem formar uma unidade.  Unidade esta que já existiu em agosto de 1961, quando o povo praticamente de fuzil na mão, repeliu o golpismo que nos ameaçava e garantiu os nossos direitos. Unidade, esta, que já existiu no plebiscito de janeiro de 1963, quando mais de dez milhões de brasileiros exigiram o fim da conciliação do parlamentarismo e a realização imediata das reformas.

Quando uma multidão se reúne como nesta noite, isto significa um grito do nos caminhos da sua libertação. Em verdade, se conseguirmos hoje a  restauração daquela unidade, o presidente poderá retornar, através da manifestação do povo, às origens de seu governo. E, para isso, será suficiente que ponha fim à política de conciliação e organize um governo realmente democrático, popular e nacionalista. 

Pode ser que, neste momento, a minha palavra esteja sendo impugnada. Podem julgar que as minhas credenciais não sejam suficientes. Mas o meu lugar é ao lado do povo, interpretando suas aspirações, e por isso, aqui estou como um dos seus autênticos representantes.

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Mas quero perguntar ao povo: querem que continue a política de conciliação ou preferem um governo nacionalista e popular? Aos que desejam  um governo nacionalista e popular que levantem as mãos.

Chegamos a um impasse na vida do nosso país.  O povo brasileiro já não suporta mais suas atuais condições de vida.  Hoje, até as liberdades  democráticas estão ameaçadas.  Vimos isso em Belo Horizonte, em São Paulo e no Rio Grande do Sul, onde um governo reacionário está queimando os ranchos dos camponeses.   O que se passa no estado da Guanabara é uma prova dessa ameaça, pois a Guanabara é governada por um energúmeno.  Tanto isso é verdade que o próprio presidente da República, para falar em praça pública, precisou mobilizar as valorosas Forças Armadas.

Não podemos continuar nesta situação.  O povo está exigindo uma saída.  Mas o povo olha para um dos poderes da República, que é o Congresso Nacional, e ele diz NÃO, porque é um poder controlado por uma maioria de latifundiários, reacionários, privilegiados e de ibadianos.  É um Congresso que não dará nada mais ao povo brasileiro.  O atual Congresso não mais se identifica com as aspirações do nosso povo.  A verdade é que, como está, a situação não pode continuar.  E aqui vai a palavra de quem deseja apenas uma saída  para o trágico impasse a que chegamos.  A palavra de quem apenas quer ver o país livre da espoliação internacional como está escrito na CartaTestamento de Getúlio Vargas.
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E o Executivo? Os poderes da República, até agora, com suas perplexidades, sua
inoperância e seus antagonismos, não decidem.  Por que não conferir a decisão ao povo brasileiro?  O povo é a fonte de todo poder.  Portanto, a única saída pacífica é fazer com que a decisão volte ao povo através de uma Constituinte, com a eleição de  um congresso popular, de que participem os trabalhadores, os camponeses, os sargentos e oficiais nacionalistas, homens públicos autênticos, e do qual sejam eliminadas as velhas raposas da política tradicional.

Dirão que isto é ilegal.  Dirão que isto é subversivo.  Dirão que isto é inconstitucional.  Por que, então, não resolvem a dúvida através de um plebiscito?

Verão que o povo votará pela derrogação do atual Congresso.  

Dirão que isso é continuísmo. Mas já ouvi pessoalmente do presidente da República a sua palavra assegurando que, se fosse decidida nesse país a realização de eleições para uma Constituinte, sem a participação dos grupos econômicos e da imprensa alienada, mas com o voto dos analfabetos, dos soldados e cabos, e com uma imprensa democratizada, o presidente encerraria o seu mandato.

A partir destes dois atos – assinatura do decreto da SUPRA e do que encampa as refinarias particulares – desencadear-se-á, por esse país, a violência. Devemos, pois, organizar-nos para defendermos nossos direitos.  Não aceitaremos qualquer golpe, venha ele de onde vier.  O problema é de mais liberdade para o povo, pois quanto mais liberdade o povo tiver maior supremacia exercerá sobre as minorias dominantes e reacionárias que se associaram ao processo de espoliação de nosso país. O nosso caminho é pacífico, mas saberemos responder à violência com a violência.  

O nosso presidente que se decida a caminhar conosco e terá o povo ao seu lado.  Quem tem o povo ao seu lado nada tem a temer.

Dezessete dias depois os capachos do imperialismo americano, sob as lideranças histéricas e conservadoras de Carlos Lacerda UDN (governador do Estado da Guanabara), de deputados do PSD, dos governadores Ademar de Barros (São Paulo), Magalhães Pintos (Minas Gerais) e Ildo Meneghetti (Rio Grande do Sul), iniciariam o golpe militar, através do general Olímpio Mourão Filho, o auto-denominado “Vaca Fardada” , que derrubaria Jango do poder na madrugada de 2 de abril, inaugurando o Brasil da pobreza extrema, da corrupção escancarada e assumida e da deformação ideológica e mental do povo sob a influência da mídia eletrônica, que vivemos até nossos dias, hoje, ironicamente sob a direção de uma ex-guerrilheira que se opunha à ditadura entreguista e fascista então estabelecida, a Presidente Dilma Rouseff.

Ubirajara Passos

 

 

O VERDADEIRO HINO GAÚCHO


30 de abril de 1838: nos campos do Rio Grande do Sul corre o incêndio da maior guerra civil da História da América Portuguesa, que sacudiria durante dez anos (1835-1845) as duas províncias do extremo sul do então Império do Brasil (São Pedro do Rio Grande do Sul e Santa Catarina) no embate entre os revolucionários liberais exaltados (ou farroupilhas) e as demais forças políticas (liberais moderados e conservadores), resultando na sua separação do Império e na proclamação das Repúblicas Rio Grandense (1836-1845) e Catarinense (1839).

Naquela data o exército farrapo, liderado pelo proclamador da República Rio Grandense, o General Antônio Netto, toma dos legalistas a estratégica Vila (município) do Rio Pardo, no centro do território gaúcho, fazendo prisioneira a banda de música do exército imperial, cujo maestro, o mulato José Joaquim de Mendanha, comporia, a pedido de Netto e dos demais comandantes republicanos presentes (entre eles, Davi Canabarro, Domingos Crescêncio e Juca Leão), a música do Hino da República, adaptando, não se sabe se por ironia ou mera pressa – cagado que devia estar pela pressão dos chefes farrapos – para tanto uma valsa de Strauss.

farrapos em combate

farrapos em combate

farrapos em combate

A letra, composta pelo capitão revolucionário Serafim Joaquim de Alencastre, nos parâmetros ideológicos do liberalismo luso-americano, faz menção direta àquela batalha, e, embora tenha sido cantada pelo exército farroupilha, acompanhando a música, naquela ocasião, não se tornou, entretanto, efetivamente a letra oficial do hino nacional rio grandense. Seus versos eram os seguintes:

No horizonte rio grandense
Se divisa a divindade,
Extasiada em prazer,
Dando vivas à liberdade.

estribilho:
Da gostosa liberdade
Brilha entre nós o clarão;
Da constância e da coragem
Eis aí o glardão.

Avante, oh povo brioso!
Nunca mais retrogradar,
Porque atrás fica o abismo
Que ameaça nos tragar.

estribilho

Salve o Vinte de Setembro,
Dia grato e soberano,
Dos heróis continentistas
Ao povo republicano.

estribilho

Salve, oh dia venturoso!
Risonho trinta de abril,
Que aos corações patriotas
Encheste de glórias mil.

estribilho

Coronel Antônio de Souza Netto, proclamador da República Rio-Grandense

Movimento contestatório de elite, a Revolução Farroupilha foi deflagrada sob a liderança de estancieiros (proprietários rurais especializados no ramo predominante da economia provincial do Rio Grande, a pecuária), chefes militares do exército “regular” e da Guarda Nacional (corpo semi-feudal auxiliar chefiado pelos “coronéis”, fazendeiros civis sem patente militar de carreira necessária) e comerciantes de porte da “Província de São Pedro”, adeptos do liberalismo inglês, filiado às idéias do seiscentista John Locke (predecessor monarquista do iluminismo francês) e da maçonaria.

Não casualmente seu grande líder foi o coronel comandante da Guarda Nacional no Rio Grande do Sul, ex-capitão de guerrilhas do exército luso-brasileiro que tomou o que seria o futuro Uruguai dos castelhanos para compor a Província Cisplatina do Reino Unido e, depois, Império do Brasil (1811-1828), estancieiro e comerciante (contrabandista, inclusive), com propriedades no Brasil e no país referido, e grão-mestre do Grande Oriente do Rio Grande do Sul, Bento Gonçalves da Silva.

Compunham seus quadros dirigentes, entretanto, desde estancieiros liberais exaltados (farroupilhas) republicanos e abolicionistas, como Antônio Netto (que acabaram por constituir a força minoritária que deu o tom do enfrentamento) até exilados políticos revolucionários italianos de matiz “democrático-popular (que admitiam e defendiam os direitos e a participação de trabalhadores comuns no Estado constitucional republicano) como o redator do primeiro jornal oficial da República Rio-Grandense (“O Povo”), o mazziniano Luigi Rosseti. As massas por eles lideradas na dureza da década de batalhas nos campos meridionais (que íam dos escravos negros aos “homens livres” dedicados a trabalhos artesanais e ao pequeno comércio e aos índios e gaudérios mestiços nômades que prestavam serviços temporários nas fazendas) não possuíam, assim como as chefiadas pelos conservadores, qualquer definição ideológica, seguindo, por fidelidade hierárquica sócio-econômica ou afinidades de “compadrio” seus senhores semi-feudais e chefes políticos.

A radicalização decorrente da proclamação da república independente (que, embora não dominasse todo o território provincial, pelo menos durante seu auge, no período de 1837 a 1840 possuía autoridade e presença militar efetiva em 9 dos 14 municípios em que se dividia, abarcando todo o seu interior, ou seja, Rio Pardo, Cachoeira, São Borja, Cruz Alta, Triunfo, Jaguarão, Piratini, Caçapava e Alegrete, estas três últimas “vilas”, as sucessivas capitais) levaria mesmo as facções mais moderadas da revolução (liberais monarquistas rebelados como Bento Gonçalves e liberais monarquistas federativistas) à defesa intransigente do novo Estado Soberano (que possuía serviço público, moeda, comércio efetivo e diplomacia, com tratados internacionais celebrados com os países vizinhos da região Platina – Uruguai, Paraguai e províncias argentinas tornadas independentes de Corrientes, que incluía a futura Misiones, e Entre-Rios).

Embora liberal-aristocrática (pois, como os próprios Estados Unidos da América, a Inglaterra parlamentarista e o Reino constitucional e a República Francesa de então, só admitisse o direito de voto aos cidadãos não escravos que possuíssem renda anual de certo nivel para cima, além de manter a escravatura), a República Rio-Grandense representava a rebeldia de um certo segmento marginal (ainda que elite econômica marginal) e excluído de maiores direitos na comunidade do que compunha então o Brasil, onde predominavam os interesses das elites da corte do Rio de Janeiro, infelizmente apoiados por parte das forças políticas gaúchas (que predominavam nos territórios litorâneos e próximos da costa, os municípios de Porto Alegre, Santo Antônio da Patrulha, Pelotas, Rio Grande, e São José do Norte, com exceção da futura cidade de Viamão, então “Vila Setembrina”, parte integrante do estado farroupilha).

Mapa do Rio Grande do Sul em 1835

Mapa do Rio Grande do Sul em 1835

Mapa do Rio Grande do Sul em 1835

Assim, ao ser publicado no jornal oficial da República, “O Povo”, em 4 de maio de 1839, como Hino da Nação, que o periódico menciona ter sido cantado “postos de pé em torno do pavilhão todos cidadãos e senhoras convidadas” presentes na segunda capital republicana, Caçapava, sua letra, de autor não mencionado, celebra a rebeldia revolucionária do novo país:

Nobre povo Rio-Grandense,
Povo de Heróis, povo bravo,
Conquistate a independência,
Nunca mais serás escravo.

estribilho:
Da gostosa liberdade
Brilha entre nós o clarão;
Da constância e da coragem
Eis aí o glardão.

Avante, ó povo brioso,
Nunca mais retrogradar,
Porque atrás mora o inferno
Que vos há de sepultar.

estribilho

O majestoso progresso
É preceito divinal:
Não tem melhor garantia
Nossa ordem Social.

estribilho

O Mundo que nos contempla,
Que pesa nossas ações
Bendirá nossos esforços,
Cantará nossos brasões.

estribilho

Proclamada a República no Brasil, por uma quartelada (golpe militar liderado por oficiais engajados ideologicamente), casualmente liderada por um monarquista liberal, envolvido na trama pelos republicanos, que havia sido Presidente da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, o marechal Deodoro da Fonseca, o novo governo republicano e positivista do Estado do Rio Grande do Sul, chefiado por Júlio de Castilhos (em cujo partido político, o Partido Republicano Rio-Grandense se formará e fará carreira um deputado que mais tarde viria a derrocar o feudalismo coronelista dos fazendeiros cafeicultores e paulistas e mineiros, e seus apoiadores país a fora, na Revolução de 3 de outubro de 1930, nada mais que Getúlio Vargas), adotará como bandeira da nova unidade federativa a bandeira da República Rio-Grandense e como hino o poema de Francisco Pinto da Fontoura, o “Chiquinho da Vovó”, composto após o final da Revolução Farroupilha, cujos versos, apesar de sérios equívocos ideológicos em relação ao separatismo concreto e de vontade do Rio Grande do Sul republicano do segundo império brasileiro, exaltam o mito da democracia da Grécia antiga, rechaçando os governos absolutistas e arbitrários:

Como a aurora precursora
Do farol da divindade,
Foi o Vinte de Setembro
O precursor da liberdade

estribilho

Mostremos valor constância
Nesta ímpia e injusta guerra;
Sirvam nossas façanhas
De modelo à toda terra.

Entre nós, reviva Atenas,
Para assombro dos tiranos.
Sejamos Gregos na glória,
E na virtude, Romanos.

estribilho

Mas não basta prá ser livre
Ser forte aguerrido e bravo
Povo que não tem virtude
Acaba por ser escravo.

estribilho

Esta foi a letra do Hino do Rio Grande do Sul século XX adentro, durante todo o período republicano (com exceção dos anos de 1937 a 1945, em que o gaúcho e republicano positivista comtiano Getúlio Vargas, então ditador, aboliu os símbolos estaduais).

Até que em 1966, por iniciativa do governador golpista capacho da ditadura militar fascista gorila instalada em Brasília, Ildo Meneghetti, foi oficializada nova letra, até hoje vigente, mesmo com o final formal da ditadura em 1988, que simplesmente excluiu do hino a estrofe acima assinalada em vermelho, que, por falar em “tiranos” era libertária e subversiva demais para o autoritarismo pró-imperialismo americano da época.

Proposta a retificação por projeto de lei do deputado estadual gaúcho petista Daniel Bordignon, ex-prefeito da minha cidade, Gravataí, em setembro de 2007, reintegrando a estrofe libertária à letra do hino, acabou tramitando até este mês pelos escaninhos da burocracia da Assembléia Legislativa, e sendo arquivada, sem sequer ir à votação do plenário, e sem maior oposição de seu autor, tamanho é o ranço ainda vigente das “autoridades” políticas do Rio Grande do Sul que, disfarçadamente, continua a reproduzir no nível simbólico a ordem ditatorial anti-povo inaugurada no primeiro de abril de 1964 e hoje perpetuada, de forma domesticada e demagógica pelo governo petista neo-liberal e fascista do Inácio dos Nove Dedos.

Bandeira do Estado do Rio Grande do Sul

Assim, um estado brasileiro que se orgulha da originalidade de sua formação histórica e cultural profundamente diferenciado dos demais da América Portuguesa, que se pretende bastião da democracia, da liberdade e até mesmo da revolução socialista (vide os brizolistas e petistas anteriores à Era Presidencial do Inácio), e em que uma boa parte da população ainda sonha com o ideal separatista de uma república gaúcha independente, continua mantendo, pela vontade de seus governantes, a letra original de seu hino (ela mesma deturpada em relação a da república dos farrapos, mas mesmo assim progressista perto da oficial) decaptada no seu trecho mais democrático e revolucionário por complacência com o oficialismo de uma ditadura infeliz e colonialista formalmente já extinta há mais de 20 anos.

A questão me foi trazida pelo alemão Valdir, em decorrência de lembrança de um colega seu do foro de Giruá, o intelectual devorador de livros Fábio Kraulich de Oliveira, e aqui fica lançado o desafio para intelectuais e parlamentares desta nossa provinciazinha “pampeana”: quando tomaremos um mínimo de vergonha na cara e um pouco da coragem dos velhos revolucionários farroupilhas (que, mesmo não sendo socialistas ou populares, mas no máximo liberais-republicanos e nacionalistas, tinham mais brios que muito pretenso esquerdista de nosso dias) e restauraremos a letra histórica do Hino Rio Grandense?

Ubirajara Passos