Não, não se trata de dois personagens contrapostos, mas complementares, e cuja identidade comum sou eu próprio.
Tenho sofrido vida a fora, desde os meus doze anos, da terrível mania de me apaixonar pela gata mais linda e inacessível que estiver por perto e já cheguei a curtir anos de encantamento e dissabor romântico por uma colega do ensino fundamental (na época se chamava 1.º grau), sem que jamais a musa manifestasse o menor interesse amoroso a meu respeito e correspondesse por um único instante ao meu alumbramento. Esta, a paixão dos meus treze, quatorze, quinze e todos os anos que se contaram até os trinta, no princípio até foi um simples objeto do meu desejo, mas depois se transformou numa espécie de “deusa”, que, se cedesse ao meu interesse, se veria frustrada frente a um adorador capaz de se jogar aos seus pés, embasbacado com a beleza daquela descendente de italianos – de pele branquíssima, cabelos castanhos e lindos olhos verdes -, mas que talvez não lhe tocasse sequer o dedo mínimo, tímido e enredando numa contradição absurda entre um amor de idealização estética intelectualizada e o puro e simples tesão.
Eu era, adolescente, um verdadeiro “monge” do amor romântico! E graças à minha burrice, cevada num ambiente doméstico patriarcal e estreito, me empenhei em uma idolatria após a outra (ainda que as últimas musas, com o passar dos anos, fossem se tornando mais objetos do desejo reprimido e desenfreado que da idealização mental), até (passando por uma relação equivocada, onde amor e interesse financeiro se complementavam e se espicaçavam mutuamente) me tornar, tecnicamente, o que sou hoje: um quarentão solteiro que, ao invés de celebrar a sua liberdade, trocaria o mundo por um rotineiro e insosso casamento pequeno-burguês. Que, jamais tendo experimentado o amor mútuo entre dois seres, teria orgasmos cósmicos em fazer o rancho aos sábados, aturar crianças gritonas e agitadas, e sofrer a saraivada de críticas de uma jararaca doméstica, a condenar-me os livros e responsabilizar o dinheiro neles gastos (e nas revistas, jornais, CDs, DVDs, no cinema, e etc.) pela pindaíba financeira da família. Ou seja, uma perfeita família trabalhadora tradicional, o retrato do ambiente em que criei-me!
Não fossem os cabarés e as “aproveitadoras” que souberam contemplar o meu romantismo incorrigível mediante um bom ajutório às suas necessidades econômicas, disfarçando o “comércio sexual” no eterno jogo de sedução e rejeição emocional (aquela criatura que transa contigo, te pede um dinheirinho emprestado pra comprar cigarros, dá a entender que está apaixonada e, na primeira besta declaração de amor que o sujeito faz, diz que, apesar da transa, gosta muito de ti, “mas como amigo”), por pouco não me transformei no último “virgem” sobre a face do planeta (ainda que o fato de ter nascido em 30 de agosto não possa ser mudado, nem mesmo pelo ascendente lunar em “escorpião” que me salvou de ser um virgem de signo e de sexo!).
Mas a verdade é que não posso me penitenciar de nunca ter sido amado! Algumas doidas houve, desde a outra colega do 1.º grau que tentou seduzir-me e, diante da rejeição, me xingou aos brados na frente da eterna musa, até a empregada doméstica de uns primos em segundo grau de parentesco que freqüentava a minha casa na época dos meus vinte e poucos anos, quando eu insistia em outra paixão frustrada e inútil, tentando fazer existir o escritório de contabilidade precário que fundei aos dezoito anos e que tive de abandonar, para ter um mínimo de rendimento digno de gente, me tornando funcionário público, lá pelos vinte e quatro.
O problema é que eu fazia com elas exatamente o que sofria das minhas adoradas: desprezava. E preferia sofrer atrás do impossível que me contentar com o comum e pouco fascinante afeto que andava ao meu lado. É que eu tenho uma mania terrível de amar a encrenca, o grandioso, o inalcançável, e, sobretudo, o imprevisível e mal-comportado. Não foi por acaso que me tornei um anarquista!
Mas houve umas destas minhas pobres adoradoras a que lamentei não ter correspondido. Contando menos quatro anos de idade do que eu, lá pelos meus dezessete, apesar de gordinha, me enlouquecia de tesão com seus seios lindos e fartos, ainda que então não manifestasse o menor interesse explícito e nem tomasse atitudes explícitas de sedução para o meu lado. Me lembro muito bem de um domingo em que, separados por uns três metros de distância, mudos e vestidos, a criatura me excitava tanto que o tesão chegava a doer!
Uma vez ela me disse que uma colega de escola sua, que havia vindo aqui em casa, e eu fiquei “secando” sem a menor reciprocidade, lhe comentara: “como é bonito o fulano” (o que me incendiou a vaidade, piá magro e desengonçado que sempre teve dúvidas sobre si mesmo). Mas jamais imaginei que a admiradora era ela mesma. Até que um dia, eu lá pelos meus dezenove anos, ela com quinze, caminhávamos a beira-mar e a gatinha (que havia emagrecido e se transformado na coisa mais linda e gostosa, e cujos seios moldados pelo vento na camiseta branca continuavam a me enlouquecer) deu a entender que queria me namorar, mas usou uma frase arrevesada e o imbecil do DDA aqui, que – na época – estava louco pra lhe satisfazer a vontade, se fez de bobo e perdeu eternamente a chance! O ideal artificial e intelectualizado da paixão espezinhava um fogo mútuo que poderia se tornado uma grande história!
Uns dez anos depois, ela vinda de um casamento frustrado, eu continuando a colecionar paixões inacessíveis e impossíveis, nos encontramos numa destas festas xaroposas de aniversário de crianças, numa tarde de domingo modorrento. Ela, simplesmente linda (anotei numa agenda, no dia 8 de outubro de 1995 o trecho seguinte, que há algum tempo reencontrei e me lembrou a cena passada logo após: “cintura fina, seios fartos – de minissaia e blusa branca e meias pretas – foi ao corredor do banheiro me cumprimentar, segurei-lhe a mão enquanto lhe beijava o rosto, e a gata me disse: ‘Já ficou rico? Como ficou bonito! Será que eu e o Bira nunca vamos ser normais… nos casar e ter filhos?”). Na época eu alimentava uma poupança rechonchuda (uma conta bancária! não vão supor outra coisa!) que viria a gastar quase toda na boemia nos quatro anos seguintes, e era 4.º vice-presidente do Sinjus-RS. Perdera a ingenuidade romântica, mas continuava tímido, e “fiquei na minha”, ao invés de ceder ao desejo mútuo.
Contentei-me, besta e burro, com a visão mais impressionante que já tive na vida. Eu nunca havia visto o corpo da minha linda amiga mais do que um decote ou uma saia curta permitisse. E, uma meia hora após o nosso encontro fortuito, ela ia saindo da porta da cozinha para o quintal dos fundos, quando um malicioso raio de sol de fim de tarde lhe bateu sobre a pele, tornando a roupa transparente, e eu pude ver, de calcinhas de renda, cinta-liga e seios nus, inteirinha a pele de neve daquela loira descendente de ucranianos e pretensos alemães (na verdade galegos) peladinha e maravilhosa! Foi a primeira e última vez! E hoje, oitenta mulheres após, ainda lamento a oportunidade perdida de não ter vivido com ela o amor natural, fogoso e arrebatador que teria botado no chinelo qualquer paixão “cabeça”, artificiosa, intelectualmente sofisticada e besta, filha do patriarcalismo disfarçado que ainda vige.
Mas chega de divagações chorosas! Já passa da meia-noite (grande coisa!) e amanhã tenho reunião da chapa de oposição do PDT gravataiense pela manhã, e à tarde vou com meu amigo xupaxota conhecer um novo cabaré no centro de Porto Alegre: a Michelle Massagens, na rua Otávio Rocha.
Ubirajara Passos
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