Desde 1940, quando, na condição de ditador, criara o salário mínimo no Brasil, garantindo, na época, uma remuneração com um mínimo de dignidade à peonada (bem diversa do miserável valor atualmente vigente), Getúlio Vargas discursava, anualmente no Dia do Trabalhador, perante a multidão de trabalhadores cariocas, no estádio do Vasco da Gama, em São Januário, na então capital da república, o Rio de Janeiro, em estreita conversa na qual lhes trazia ao conhecimento os diversos direitos legais que seu governo lhes vinha garantindo. Em 1.º de maio de 1954, em meio à violenta oposição política e militar dos lacaios do imperialismo americano (liderados pelo histérico udeno-golpista Carlos Lacerda) contra o reajuste de 100% do salário mínimo proposto por Jango como Ministro do Trabalho, pela primeira vez faria seu discurso distante do aconchego físico das massas, em transmissão radiofônica desde o Palácio Rio Negro, na cidade serrana de Petrópolis, no Estado do Rio de Janeiro.
Naquele ano, indo muito além de seus compromissos de proteção ao trabalho e garantia de condições sócio-econômicas minimamente dignas à classe trabalhadora (o que possibilitaria classificar o velho discípulo da versão castilhista do positivismo comtiano e do socialista utópico Saint-Simon, no máximo, como um social-democrata), proferiria, no final de sua fala, uma forte conclamação para que os trabalhadores se auto-organizassem, como classe consciente e majoritária, para impor seus interesses e necessidades pela via eleitoral, se constituindo eles próprios no governo da nação: “Hoje estais com o governo, amanhã sereis o governo”!
Reproduzimos abaixo a íntegra do discurso, a partir de matéria publicada no Correio da Manhã do dia 4 de maio, páginas 16 e 10 (visto que não conseguimos acessar o exemplar da Última Hora – o jornal criado por Samuel Wainer alinhado aos ideais de Getúlio, Jango e do Partido Trabalhista Brasileiro – o antigo PTB):
“Trabalhadores do Brasil:
Neste 1.º de maio, tão grato a quem, como eu, se acostumou a ver em vossa nunca desmentida solidariedade o maior motivo de alento para continuar devotado ao serviço da Pátria e à causa da reforma social, quero estar convosco, em espírito e sentimento, participando das vossas alegrias, na data consagrada à exaltação do vosso esforço e heroísmo. Preferi dirigir-me a todos, aqui desta sala de trabalho, para vos levar, no recesso dos vossos lares, onde mais prementes se fazem sentir as vossas necessidades, ou nas concentrações de praça pública onde vos reunis agora para ouvir a minha palavra, a boa nova de que o governo vos fez justiça, atendendo aos vossos reclamos, aos vossos desejos e às vossas reivindicações.
Rememorando os sucessos e realizações destes último doze meses, posso proclamar com orgulho que o governo soube honrar a linha política que tem norteado toda a minha vida de homem público: engrandecer a Pátria e fortalecê-la economicamente, através do estímulo e do amparo ao trabalho. Foi levado adiante, sem sombra de desfalecimento, o meu desígnio supremo que visa à valorização do trabalhador brasileiro e à plena concretização da justiça social.
Quando, em 1951, assumi o governo, um dos meus primeiros atos foi determinar a revisão dos níveis do salário mínimo, fixando novos montantes, que até hoje vigoram. No correr do último ano, foram procedidos estudos a fim de promover novo reajustamento, indispensável para vos assegurar uma remuneração digna do vosso esforço e capaz de garantir a satisfação das vossas necessidades de subsistência. A rápida industrialização e as expansão econômica do país e o nível dos salários; o crescimento vertiginoso da arrecadação do imposto de renda, que subiu de 310 milhões em 1939 para 10 bilhões em 1953, mostra que o aumento da riqueza privada e o vulto das classes abastadas estão em contraste chocante com o índice dos salários.
Hoje, depois de um exame cuidadoso do assunto em todos os seus aspectos, computadas e sopesadas cifras colhidas em todo o Brasil, consultados os competentes órgãos técnicos, é com alegria e particular emoção que vos anuncio a fixação de novos níveis de salário mínimo condizentes com as vossas aspirações e destinados a vos proporcionar melhores condições de vida. Fruto de um trabalho meticuloso, amadurecido e pensado, essa medida vem assegurar a devida retribuição ao vosso denodado labor de todos os dias e, por outro lado, se enquadra perfeitamente dentro das possibilidades e dos recursos das classes patronais.
Os que vivem a apregoar, por convicção ou espírito de oposição sistemática, que o custo da vida aumentou assustadoramente devem ser os primeiros a reconhecer que a elevação dos salários é uma necessidade imposta pela atual conjuntura econômica. As publicações jornalísticas sobre o encarecimento da vida estão fornecendo preciosos subsídios aos estudos do Ministério do Trabalho para melhorar os salários profissionais dos trabalhadores da imprensa.
Para chegarmos a este feliz resultado que hoje se concretiza, muito contribuiu a ação dos sindicatos de trabalhadores de todo o País, ao reivindicar, usando dos seus direitos, uma remuneração mínima indispensável para satisfazer as suas necessidades de alimentação, habitação, vestuário, higiene e transporte.
Nesta campanha em que estivemos juntos e em que juntos partilhamos a alegria da vitória, é justo ressaltar a participação destacada do ex-ministro do Trabalho, João Goulart, incansável amigo e defensor dos trabalhadores, que se desvelou dia e noite nos seus esforços para atendê-los, do atual ministro interino, Hugo de Faria, que soube continuar a obra do seu antecessor, e do Ministro da Fazenda, Oswaldo Aranha, que deu a valiosa colaboração da sua experiência e do seu conhecimento aprofundado dos assuntos econômicos e financeiros aos estudos para conseguir uma fórmula capaz de corresponder ao desejo dos trabalhadores.
A par dessa providência de interesse vital para o trabalhador brasileiro foram tomadas inúmeras medidas destinadas a trazer-vos benefício imediato. Promoveu-se a Campanha de Prevenção dos Acidentes do Trabalho, acompanhada de uma série de atos inspirados no propósito de vos garantir maior conforto e segurança no labor quotidiano; prosseguiu o Governo nos seus esforços no sentido de reduzir a carência de moradia para o trabalhador e, apesar de todos os tropeços que dificultam a sua ação nesse terreno, foram feitos progressos substanciais, sendo de notar que o decreto regulamentando a cooperação técnica e financeira entre a União e os órgãos locais, para a construção de habitações populares, abriu novas perspectivas à solução de importante problema.
Já no fim do meu anterior governo era uma das minhas maiores preocupações assegurar o reajustamento e a atualização do nosso sistema de seguro social, de modo a atender as exigências do trabalhador brasileiro, nas suas múltiplas categorias de atividades. Em 1945 eu vos anunciava essa reforma, que se tornava cada dia mais indispensável. Durante a campanha eleitoral de 1950, no discurso que pronunciei nesta cidade de Petrópolis, reiterei o meu propósito de retomar os estudos do projetado Instituto dos Serviços Sociais do Brasil, aproveitando as pesquisas feitas, completando-as e adaptando-as às necessidades atuais. Um substancial progresso acaba de ser assegurado com a promulgação do Regulamento Geral dos Institutos da Previdência Social. Esse só virá trazer benefício efetivo a cerca de 3 milhões de trabalhadores e 7 milhões de dependentes, além daqueles que poderão, através de contribuição facultativa, participar das vantagens da previdência social. Ficam doravante definitivamente abolidas as diversidades de condições exigidas aos segurados dos vários institutos, que terão, a partir deste 1.º de maio, uniformizados os prazos de carência, o plano de custeio e o de vantagens e benefícios. As pensões, até agora limitadas ao máximo de pouco mais de seiscentos cruzeiros mensais e as aposentadorias restringidas a um limite que apenas ultrapassava a cifra dos mil cruzeiros por mês, de agora em diante serão proporcionais aos salários realmente percebidos, desaparecendo o injusto desequilíbrio entre o que o trabalhador recebe em atividade e o que lhe era atribuído na hora da doença ou da incapacidade física. Além da aposentadoria por velhice ou invalidez, os institutos passarão a propiciar a chamada aposentadoria ordinária, correspondendo a um justo anseio dos que desempenham atividades penosas ou insalubres e que terão assim garantido o merecido repouso aos 55 anos de idade, com remuneração, em numerosos casos, correspondente ao salário integral. Aos associados de todos os institutos será também assegurada, em virtude dos dispositivos do referido ato, a extensão do auxílio-maternidade, que, concedido aos industriários por decreto de 1952, já beneficiou mais de 150 mil famílias operárias. Por outro lado, cria o Regulamento o auxílio matrimônio a ser proporcionado às pensionistas que se casarem, atendendo-se desse modo a um dos mais relevantes objetivos da assistência social e favorecendo a defesa e a preservação da família. Esse ato, de tanta significação social, lança também as bases para a futura participação do trabalhador rural nos benefícios da previdência. Igualmente foi dado um importante passo no sentido da inclusão dos profissionais liberais e dos trabalhadores autônomos e domésticos no sistema geral de assistência. É prevista também a organização da comunidade médica da previdência social, para racionalizar e aperfeiçoar os serviços médicos assistenciais.
Por decreto de 2 de abril último, assegurei também a direta e ativa participação dos contribuintes na gestão dos institutos de aposentaria e pensões, através da eleição dos membros dos seus conselhos fiscais pelos próprios trabalhadores.
Todos esses atos serão integrados, completados e ampliados na Lei Orgânica da Previdência Social que se encontra entregue ao exame do Congresso e que assegurará a regulamentação geral e sistemática de todos os nossos serviços de amparo ao trabalhador.
Um dos aspectos mais marcantes do meu atual governo é o seu cuidado em beneficiar o trabalhador rural e conceder-lhe as garantias que a legislação social já assegura ao operário urbano. Nessa obra de valorização do homem do campo, a par do vasto programa de mecanização da agricultura, que vai sendo levado adiante e que já supera nesses três últimos anos tudo o que foi feito antes no sentido de proporcionar aos nossos lavradores instrumentos modernos e eficientes de trabalho, tenho procurado de toda a forma recompensar os nossos camponeses pela sua valiosa contribuição para o desenvolvimento econômico. Ainda se encontram na dependência da aprovação legislativa importantes projetos que encaminhei ao Congresso, destinados a imprimir maior flexibilidade às atividades financeiras rurais e a dar assistência social efetiva ao nosso trabalhador campesino. Refiro-me ao projeto criando cédula rural pignoratícia e ao que estabelece o Serviço Social Rural.
Em 5 de abril último submetido ao Congresso um importante projeto, que estende aos empregados rurais os preceitos da legislação trabalhista, com as alterações requeridas para a sua aplicação prática. Dentre as normas específicas que consigna devem ser ressaltadas a garantia de estabilidade, a instituição da Carteira do Trabalhador Rural, os dispositivos relativos à duração da jornada de trabalho; à proteção do trabalho do menor e da mulher e à filiação obrigatória, ou conforme o caso, facultativa ao Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Industriários. A aprovação deste projeto será justa recompensa à grande classe dos trabalhadores rurais, principais responsáveis pela estabilidade e prosperidade da nossa economia, e virará atender aos seus mais justificados reclamos.
Quero ainda mencionar outro importante aspecto da assistência ao trabalhador, a realizada pelo Serviço de Alimentação da Previdência Social, que comemora hoje 15 anos de existência e que vem prestando relevantes benefícios à classe operária. De 1951 até agora o SAPS aumentou de sete para quinze milhões o seu total de fornecimento diário de refeições. Onze novos restaurantes, quatro refeitórios, cinco armazéns distribuidores foram criados. Deverá o SAPS, dentro em pouco, iniciar a distribuição nos próprios locais de trabalho de refeições preparadas pelas cozinhas centrais.
Trabalhadores do Brasil:
Como vedes, tudo o que depende da ação do governo, no âmbito das suas faculdades constitucionais, tem sido feito para que não faltem amparo e assistência às massas trabalhadoras. Todas as medidas que dependem da aprovação legislativa tem sido propostas ao Congresso para que se convertam em lei. As promessas que vos fiz estão sendo cumpridas, como estão sendo saldados os compromissos que assumi. As dívidas que contraí com o Povo estão sendo resgatadas. Tenho realizado por vós tudo que posso e mais do que posso.
Não me perdoam os que me queriam ver insensível diante dos fracos e injusto para com os humildes. Continuo, entretanto, ao vosso lado. Mas a minha tarefa está terminando e a vossa apenas começando. O que já obtiveste ainda não é tudo. Resta ainda conquistar a plenitude dos direitos que vos são devidos e a satisfação das reivindicações impostas pelas necessidades. Tendes de prosseguir na vossa luta para que não seja malbaratado o vosso esforço comum de mais de vinte anos no sentido da reforma social, mas, ao contrário, para que esta seja consolidada e aperfeiçoada. Para isso não cabe nenhuma hesitação na escolha do caminho que se abre a vossa frente.
Não tendes armas, nem tesouros, nem contais com as influências ocultas que movem os grandes interesses. Para vencer os obstáculos e reduzir as resistências é preciso unir-vos e organizar-vos. União e organização deve ser o vosso lema.
Há um direito de que ninguém vos pode privar, o direito do voto. E pelo voto podeis não só defender os vossos interesses, como influir nos próprios destinos da Nação. Como cidadãos a vossa vontade pesará nas urnas. Como classe, podeis imprimir a vosso sufrágio a força decisória do número. Constituís a maioria. Hoje estais com o Governo. Amanhã sereis o Governo.
A satisfação dos vossos reclamos, as oportunidades de trabalho, a segurança econômica para os vossos dias de infortúnio, o amparo as vossas famílias, a educação dos vossos filhos, o reconhecimento dos vossos direitos, tudo isso está ao alcance das vossas possibilidades. Não deveis esperar que os mais afortunados se compadeçam de vós, os mais necessitados. Deveis apertar a mão da solidariedade e não estender a mão à caridade. Trabalhadores, meus amigos! Com a consciência da vossa força, com a união das vossas vontades e com a justiça da vossa causa, nada vos poderá deter”.
Petrópolis, 1.º de maio de 1954
Getúlio Vargas
Três meses e 23 dias depois, acuado pela tentativa de quartelada da oposição pró-imperialismo internacional, que assanhava-se na crise histérica formada em torno do equivocado “atentado” ao seu principal líder, Carlos Lacerda (em que acaba falecendo um oficial da aeronáutica que o acompanhava como leão de chácara, o major Vaz, gerando o pretexto para a instabilidade político-militar), Getúlio se suicida, frustrando o golpe de Estado e legando aos trabalhistas a Carta-Testamento, que se constitui na dramática denúncia da intervenção norte-americana e no programa de luta para os futuros revolucionários nacionalistas populares.
Quase dez anos após, justamente quando o movimento político e sindical dos trabalhadores brasileiros atingia níveis de consciência e mobilização próximos do chamado de seu falecido líder no primeiro de maio de 1954, a ainda incipiente, mas entusiasmada, possibilidade de reforma da sociedade, no rumo de liquidação da herança escravagista nunca afastada, seria frustrada pela realização definitiva do desejo dos lacaios das elites internacionais que nos imporiam, pelo golpe perpetrado nos primeiros dias de abril de 1964, com a deposição do então presidente da República (o ex-ministro do Trabalho de Getúlio Vargas, João Goulart) não só uma ditadura formal de 21 anos. Mas o legado do Brasil da miséria, violência e analfabetismo político, em que até hoje vivemos. No qual a condição concreta de sobrevivência da grande massa que rala todo dia para produzir o luxo de uns poucos a mantém de tal forma anestesiada e abobalhada ante a profunda desgraça em que vive que é incapaz de qualquer reação consciente à sua infeliz dominação.
Ubirajara Passos
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