O pânico de me transformar num maneta, de uma hora para a outra, foi tão grande que nem o Rivotril foi capaz de me fazer relaxar. E assim, passei a madrugada e a manhã inteiras deitado no sofá da biblioteca, sem dormir nenhum segundo.
Mas, seu eu julgava estar passando por uma das maiores tragédias da minha vida, nem imaginava o drama que viria! Terça-feira era dia de faxina na casa do meu amigo e a sua diarista (uma mulata alegre e extrovertida) havia vindo trabalhar acompanhada do marido, um motoboy tão aficcionado por um papo sacana e um trago quanto eu e o Xupaxota. E o resultado é que, ainda apavorado com a mão paralítica (que não servia nem pra bater uma punheta), e receoso de vir a ter algo pior, tive de assistir, sóbrio, os três bebendo vodka e falando safadezas pela tarde toda.
A tardinha chegou, o casal foi-se, e tudo o que eu queria era me encolher num canto, descansar e dormir. Mas o baiano já estava completamente bêbado e, como era previsível àquela altura (proporcional à profundidade de Natasha entornada – a pobre garrafa já estava quase seca), só pensava em cabaré. O que, aliás, não era nenhuma novidade. Se há assunto em comum que cimenta nosso amizade é a putaria. E, quando nos encontramos, ou passamos horas debatendo e trocando experiências a respeito, ou simplesmente praticando a sacanagem em qualquer maloca (como se apelidam as casas de tolerância no interior do Rio Grande do Sul).
E foi assim que, primeira vez na vida, eu, boêmio e bêbado de carteirinha, estava ali: uma mulatinha tarada ao meu lado, me bolinando e dando um beijo de língua daqueles, de fazer até veado ficar de pau duro, e, sobre a mesa, nos fazendo companhia uma vistosa garrafa… de guaraná!
Mas, se eu padecia a involuntária abstinência, o Xupaxota se dilacerava num seríssimo (e doce) dilema. Alvoroçado como cachorrinho novo, não sabia se dava atenção à loirinha gostosa de seios empinados e biquinhos róseos (nua em pleno salão, a safadinha) ou às garrafas de Polar (a cerveja gaúcha típica) que lhe sorriam e davam piscadelas maliciosas, enfileiradas sobre a mesa.
Por sorte o meu paradoxal infortúnio durou pouco. A Bia do 21 é um desses bordéis para vadios (favelados ou senhores burgueses) que tem tempo para farrear durante o dia e fecha às oito horas, logo após o anoitecer. Enfim eu poderia me deitar, tentar dormir e me preparar para a consulta médica, que me confirmaria a gravidade menor da “mão boba”, no dia seguinte, além de me proporcionar o tratamento urgente para a depressão e a maldita ansiedade generalizada!
Foi então que a coisa aconteceu! Meu amigo Xupaxota já havia tomado porres de todo tamanho nas nossas expedições pela putaria porto-alegrense. E já havíamos aprontado as maiores encrencas. Numa quentíssima tarde de sábado, duros de goró, uma certa feita, chegamos a abordar, em plena rua Alberto Bins, uma dupla de freiras, vestidas de pesado e preto hábito, para perguntar onde ficava o cabaré mais próximo. Mas desta vez o meu parceiro ateu parecia estar “piçuído” pelo exu Zé Pelintra.
O gordo putanheiro bêbado havia resolvido que queria ir pra Cláudia Drink Bar à procura da Giovana e ameaçava embarcar no primeiro lotação que visse pela frente (quase vai parar na Zona Norte, quando o inferninho pretendido ficava no limite entre a Cidade Baixa e o Centro). E com muito custo o convenci a pegar um táxi na esquina da Leonardo Truda com a Siqueira Campos, junto ao Country Club. O indócil bebê quarentão, turbinado na mamadeira de vodka e cerveja, podia cambalear, mas estava atento o suficiente para desconfiar da minha intenção de confiná-lo no apartamento, para evitar que lhe esvaziassem o bolso no primeiro “prostíbulo” vigarista.
E como todo gambá é teimoso por definição, fui lhe enrustindo, jurando que o levaria à Giovana, ao invés de tentar arrastá-lo à força. Até porque o gigante de mais de cem quilos requeria um guindaste para tanto. Salva a pátria dos bebuns frustrados, consegui colocá-lo dentro do táxi de um sujeito carrancudo, mal-encarado. Mas, enfim, é o que havia à mão…
Já sentados, suspirei aliviado.E aí o rotundo “Dom Quixote” bêbado, de que eu era um Sancho Pança às avessas, vira para o motorista e lasca em português perfeito (pronunciando até o erre):
— Posso mijar?
— No meu táxi não! Pode ir descendo!
— Ah não meu! Eu tô cuidando deste bêbado! Tô levando ele pra casa e daqui eu não saio! Ô Luiz, vai mijá lá na parede! — E apontei pro Xupaxota a sede do Country Club, em frente.
O baiano doido cambaleou, lépido, até o antigo prédio e, ao invés de simplesmente tirar o pau pra fora, baixou toda a bermuda e, saco e bunda branca expostos aos decadentes freqüentadores da aristocracia falida da Capital, que entravam ou saiam do clube “chique”, se balançava todo, anjo barroco. E brandia a pingola diminuta, numa alegria de piá que ganhou bola nova, gritando entusiasmado, enquanto as velhas buguesas do Country Club, passavam torcendo o nariz, de olhos esbugalhados:
— Ô genteeeeee!!! Olha aqui , minha genteeee!!! Ooooooooooooô!
Confesso que nunca vi coisa tão engraçada (nem quando o Roberto Jeferson entregou toda a camarilha do mensalão lulista no plenário do Congresso)! E, apesar de toda minha preocupação e sisudez de babá de gambá improvisado, curti boas risadas.
Só que aí o taxista corno resolveu encrencar e alertou o segurança. Não fosse eu chamar o “Dumbo” enlouquecido, que disparou pro táxi, e, mais um instante, estava feita a bosta! No caminho a criatura, que parecia ter sido abandonada pelo Zé Pelintra e agora incorporava um “Cosme” (entidade infantil da umbanda), xaropeou tanto o já enjoado motorista sorumbático, com aquela história repetitiva de “Tu não gosta de carregar bêbado no teu táxi? Olha que eu tô bêbado!”, que tivemos de descer no Parque da “Redenção”, na Avenida Osvaldo Aranha, a duas quadras de seu apartamento, na Felipe Camarão.
E no caminho a pé, na dita rua, o doido parou junto a uma banca de verduras na calçada, sentou-se na cadeira plástica, pediu um cigarro pro crioulo que cuidava da fruteira (que, pra nossa sorte era malandro velho e levou tudo na esportiva – até se descobriu meu conterrâneo, gravataiense que era, na conversa entrecortada) e encenou o grand finale do espetáculo daquela noite.
Depois de fingir que ia desmaiar, quase despencando da cadeira, e a rir estrepitosamente da nossa cara, o Xupaxota alcoolizado recebeu o encosto de um espírito obsessor tarado de um geriatra: o doutor “Fritis-putas-que-parius-demônia-linda”. A cada mocréia enrugada, empertigada e setentona do Bonfim que vinha até a fruteira, o louco disparava: “Gostosaaaaaaaaa! Eu como!”
Foi então que uma anciã mais encarquilhada que checheca de múmia egípcia, dessas peruas matronas, moralista e metida a chique, passou com seu cachorrinho poodle, de fitinha cor-de-rosa na cabeça e tudo (o cachorro, claro) e se pôs na esquina a fofoquear com a amiga, igualmente “chique”, entusiasmando o Xupaxota, que se ergueu, ágil, dedo em riste, em direção ao totó, gritando:
— Bira, eu como! Eu vou enfiar o dedo no cu do cachorro! — e, a dois passos do pobre cãozinho, estacou e caiu na mais imensa gargalhada!
Com os olhos esbugalhados, eu, contumaz bêbado, acidentado e impedido de me encharcar de álcool, não sabia se ria ou se chorava. Mas não me agüentei e fiz coro, eu e o malandro da fruteira, ao pinguço tresloucado – que então pareceu ter desincorporado o encosto e foi tranqüilo, comigo, até o apartamento.
E enquanto subíamos as escadas até o segundo andar, tive o privilégio de presenciar o mais raro fenômeno psico-alcoólico da Terra. Todo mundo já experimentou aquela sacana amnésia depois de beber todas e dormir em seguida. Mas o cara ir esquecendo, acordado, tudo o que passou há alguns minutos, isto eu nunca havia visto. Ao entrar em casa o Xupaxota simplesmente não lembrava mais nada! Fui lhe contando toda a história desde a ida ao cabaré da Bia e eu e a peste do baiano rimos juntos, até perder o fôlego, madrugada a dentro. Ah, a minha mão direita? Depois de uns dez dias, de tanto mexer os dedos, acabou voltando ao normal (sem ter de enfiá-la em cu de totózinho de madame)!
Ubirajara Passos
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