Não pretendo discutir a legitimidade da postura dos vereadores negros do Psol de Porto Alegre em se manterem sentados durante a execução do Hino oficial do Rio Grande do Sul no ato de sua posse, cuja atitude se tornou polêmica a partir da reprimenda de uma vereadora nitidamente fascista.
Mas é preciso, em meio ao festival de questionamentos e elucubrações de natureza política, histórica e sociológica suscitados, em cujo emaranhado polarizado até as raias do desconhecimento histórico e do revisionismo tacanho (há quem pretenda extirpar mais uma estrofe do hino, além da que já o foi em plena vigência da ditadura militar, por haver nela referência a “tiranos”) não intento mergulhar, que se traga alguma sanidade e lógica ao debate, evitando assassinar o português em prol do folclore político e ideológico desusado.
Que se questione conteúdos subliminarmente preconceituosos é muito louvável e absolutamente necessário. Mas, para tanto, é necessário não assassinar a lógica linguística básica e se forçar o sentido de um texto pela construção externa a sua própria estrutura. E, muito menos, ao contextualizá-lo no ambiente histórico e geográfico em que foi parido, induzir sua caracterização a partir de critérios arbitrários e toscos.
Salta aos olhos de qualquer um que examine o conteúdo do hino rio grandense, tachado de racista, com um mínimo de isenção ideológica (isenção esta não entendida como a falsa neutralidade da razão frente ao privilégio e ao preconceito gritante, mas como atitude desarmada da mente pronta a examinar os fatos concretos a partir de si, sem nenhum julgamento prévio – pré-conceito – a realidade empírica), que os seus pretensamente ofensivos versos (“mas não basta pra ser livre/ser forte, aguerrido e bravo/povo que não tem VIRTUDE/ acaba por ser ESCRAVO”) não se referem a um segmento determinado da sociedade gaúcha ou brasileira existente na época de sua confecção, mas ao conjunto do povo rio grandense que, na visão política idealizada do poeta, posterior aos fatos que retrata (a revolução farroupilha) se encontrava submetido, dominado, escravizado (metaforicamente falando) aos interesses da corte imperial, que lhe seriam contrapostos e prejudiciais. Se troque, numa descontextualização mais próxima de nosso ambiente, o sul da América Latina, Bento Gonçalves por Leonel Brizola ou Fidel Castro e teremos um libelo anti-imperialista e anticapitalista dos brasileiros ou latino-americanos frente ao domínio do grande capital yankee, europeu ou transnacional do século 20 ou 21.
E é notório que a “virtude” a que se refere o texto se identifica, no contexto político interno que o informa, menos à pretensa RETIDÃO MORAL dos “puros” e soberbos “homens de bem” (senhores brancos de propriedades fundiárias, pecuárias e humanas – fazendeiros privilegiados que lideravam o movimento), contraposta a uma suposta devassidão criminosa e anti-ética da ralé (o “povinho”, que na forma de escravo negro ou peão avulso, sem terra, gaudério mestiço de índio e descendentes brancos de europeus ibéricos, sustentava os privilégios dos estancieiros no suplício da faina exercida debaixo do tacão e sem condições dignas de sobrevivência), que tende a justificar historicamente as diversas formas de dominação social desde a Pré-História ao nosso capitalismo pós-moderno virtualizado, do que às qualidades necessárias à manutenção da liberdade deste povo ou nação frente ao avanço de seu opressor, no caso específico os interesses da elite hegemônica representados no governo central do período regencial frente aos da marginalizada elite regional dos estancieiros farrapos. Se transportarmos a ideia para nossos dias, de pretensa igualdade política formal (em que teoricamente a maioria trabalhadora escorchada e dominada detém o mesmo privilégio político de escolher seus representantes no aparato estatal que os antigos eleitores possuidores de renda e propriedades privilegiados que os habilitavam a votar, no regime monárquico), a VIRTUDE a que se refere o hino seria antes a consciência, a capacidade de defender os próprios interesses e necessidades frente ao domínio espúrio e contraposto de outrem, que nós próprios, revolucionários socialistas, libertários e anti-imperialistas defendemos com unhas e dentes.
Não é porque os líderes do movimento eram fazendeiros (estancieiros) proprietários de escravos, que não pretendiam abolir a escravatura, nem porque a liderança militar final compactuou com o inimigo para o genocídio absurdo dos lanceiros negros, que se deve forçar a interpretação dos versos do “Chiquinho da Vovó”, até onde se sabe escritos posteriormente ao fim da Guerra dos Farrapos.
A injúria sub-reptícia da estrofe “maldita” existiria concretamente e teria toda a lógica, além das simples regras linguísticas, se estivéssemos tratando de um hino feito por ou na intenção de líderes dos Estados Confederados da América, cujo grande motivo de sua rebelião era a necessidade de manutenção do Instituto ignóbil da escravidão ameaçado pelo governo central americano sediado em Washington. Na boca destes revoltosos sulistas dos “States”, com certeza, a intenção dos versos de um poema laudatório adotado como hino estadual pelos positivistas republicanos gaúchos ciosos da autonomia regional (no seio dos quais foi parido Getúlio, cujo governo legou aos modernos escravos assalariados brasileiros os direitos trabalhistas básicos, revogados pelo fascismo racista e anti-povo dos nossos dias) seria sim arrogante, racista e condenável, mas não no caso concreto!
Ubirajara Passos