O “anarquista” Darcy Ribeiro


Na crônica “O Vinho do Carlão”, há quase dois anos (em abril de 2006, quando eu recém iniciava este blog, ainda no provedor do Terra) eu citava, a respeito do protagonista da narrativa (o Carlão), que havia me mandado “uma mensagem em português todo empolado para este blog” e arrematava afirmando: “comentarei isto outro dia”. E desde então tenho deixado os leitores da época (ou que acessaram o texto posteriormente), e mantém a freqüência ao blog até hoje, na mais absoluta ignorância e frustração.

Mas, conforme fiz, na última semana, com a questão do DDA, cumpro hoje (com vinte e um meses de atraso) a promessa então feita – se é alguém ainda se lembra dela (o Carlão provavelmente lembrará). Pois a mensagem do sujeito, postada no primeiro texto do blog, o poema “Esconjuro Ateu e Libertário”, era assinada sob o pseudônimo de “Fernando Sabino” (o cronista preferido do Carlão, que como eu, ficou conhecendo seus textos na antiga coleção didática “Para Gostar de Ler”, da Editora Ática, lá nos tempos do “1º grau”, no final dos anos 1970). E lascava; “Texto de excelente construção léxica, demonstrando que o autor é um anarquista de fazer inveja a Darci Ribeiro”.

Nada de mais quanto ao irônico elogio sobre a “construção léxica”. O único problema é que Darcy Ribeiro (cuja última entrevista, pouco antes de sua morte, em janeiro de 1997, Carlão assistiu aqui em casa, em vídeo-cassete que gravei e ainda conservo comigo), tecnicamente falando, jamais foi anarquista. Ao contrário, antes de se integrar ao trabalhismo , após o suicídio de Getúlio Vargas, em 1954, e se tornar um dos fundadores do futuro PDT de Leonel Brizola, e signatários da “Carta de Lisboa” (o encontro de trabalhistas exilados e residentes no Brasil), em 1979, foi militante, nos anos 1930 e 1940, do “estalinista” Partido Comunista Brasileiro, de Luís Carlos Prestes. Mas, assim como Brizola, possuía traços bastante próximos de um libertário e, se não advogava a liberdade absoluta ou a “sociedade sem estado”, encarnou vida a fora a figura de um sujeito radicalmente livre, seja como pensador e cientista social, seja como político. Ele e Brizola foram, desde os meus quatorze anos (lá em 1979), as figuras que me influenciaram mais profundamente.

Darcy e Brizola

Leonel Brizola foi o grande arquétipo político da minha vida, mesmo que eu tenha me tornado anarquista. Ele encarnava a coragem e a segurança absolutos e, sobretudo, o radicalismo (aquela profunda crença no ideal, aquela energia interior de quem realmente quer mudar as coisas), e uma autenticidade a toda prova, que não dobrava a espinha aos críticos intelectualóides da esquerda “caricata”, nem às distorções difamadoras da mídia..

E em suas atitudes se podia constatar um profundo e real compromisso com o sofrimento do brasileiro comum que rala todo dia, bem como a mais incoercível oposição ao imperialismo capitalista que submete um dos mais ricos países do mundo (o Brasil) à situação de colônia miserabilizada (em que 90% da população sequer tem acesso a um computador ou a Internet, no fundo estou aqui escrevendo para a “pequena-burguesia”, não no sentido ideológico, mas daqueles “remediados” financeiramente como eu, cujo salário permite ter um computador e uma linha telefônica em casa).

Mas, se Brizola era a verdadeira encarnação do revolucionário sem armas, nem dogmas (ainda que socialista ou “social-democrata”, nunca foi “marxista” e não andava por aí recitando as teses do “Capital”, nem enquadrando os fatos na dialética do materialismo histórico, como muitos burocratas comunistas, mas vivia a prática revolucionária nas atitudes), uma espécie de “Super-Homem” nietzchiano da esquerda, nunca me inspirou a menor intimidade pessoal.Darcy na praia de Copabana, celebrando a vida
Com Darcy foi diferente. Embora nunca o tenha visto de perto (ao contrário de Brizola, que, em agosto de 1995, cheguei a seguir, da Carta Testamento na praça da Alfândega, em Porto Alegre, até a então sede do Banco Meridional,hoje Santander, quando embarcou no carro, sem coragem de abordá-lo, tímido sindicalista que eu era então), desde a primeira entrevista sua na televisão tive a impressão de estar diante de um camarada de pensamento e de buteco.

Darcy na praia de Copabana, celebrando a vida

E o pensamento e as tiradas do Darcy eu os conheci não através da fama distorcida de mero planejador de CIEPs (quando Vice-governador fluminense e Secretário da Educação de Brizola) ou “intelectual importante” (inclusive membro da Academia Brasileira de Letras) das cartilhas partidárias do PDT. De Darcy li os principais livros (O Processo Civilizatório, O Povo Brasileiro), assim como seus poemas (Eros e Tanatos, editado postumamente), o romance Maíra, o recordatário do Brasil no século XX “Aos Trancos e Barrancos – como o Brasil deu no que deu”, as antologias de ensaios “Gentidades” e o “Brasil como Problema”, além, é claro de sua auto-biografia, fantástica, as “Confissões”. E além dos livros, sempre me impressionaram suas entrevistas na TV (especialmente as concedidas a Roberto D’Ávila, como a última de sua vida) e eventuais participações em documentários.

Darcy com os  ndios do Planalto Central

E se Brizola era o que havia de mais próximo dos sentimentos do povinho comum, Darcy era o intelectual mais gaiato, menos hermético, mais entusiasmado, crítico, humano e sincero possível da nossa “esquerda” pensante. Ainda mais que não era intelectual de gabinete. Como etnólogo viveu por dez anos entre os índios do Xingu (cuja criação do “Parque Nacional” foi obra de sua pressão, dos irmãos Vilas Boas e de Noel Nutels sobre Getúlio Vargas). E como educador esteve à frente da criação da Universidade de Brasília. Sem falar nos cargos políticos exercidos em momentos capitais da história brasileira, como Chefe da Casa Civil do Presidente da República João Goulart, cargo que ocupava quando do golpe fascista de 1.º de abril de 1964, o que lhe valeu o exílio por boa parte do período autoritário.

Mas o que mais impressionava em Darcy Ribeiro, além do humor gaiato e inteligente, bem distante da “seriedade intelectual” dos burocratas do pensamento (na última entrevista faz uma entusiasmada recomendação, com uma felicidade de moça debutante, aos telespectadores que tivessem dor, como ele vitimado pelo câncer, para que “tome morfina meu irmão, morfina é muito bom”), era seu completo desapego do “bom senso” e sua ousadia sem espetacularismos, que o fez voltar ao Brasil (ele, figura proeminente, e tida por ideologicamente perigosa, do governo trabalhista deposto), com a cara e a coragem, em 1968, época dos protestos estudantis e do AI-5, em plena ditadura fascista raivosa e espumante.

E esta mesma ousadia “irresponsável”, moleque é que o fez fugir do hospital para viver plenamente e escrever seus últimos livros (como o Povo Brasileiro e as Confissões). Com certeza foi este jeitão irrequieto, absolutamente DDA, que saltava aos olhos no menor parágrafo de texto, a absoluta autenticidade e o humor de suas manifestações que fez com que o Carlão o identificasse, não de todo errado, como um “anarquista”, que, se não o foi na teoria e militância, o foi no exercício da própria vida: uma alma absolutamente livre, humana, defensora absoluta do direito a uma vida digna de gente para cada ser humano, e sobretudo incansável e entusiasmada.

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Darcy nunca reinou e ruminou sobre as nossas desgraças nacionais e aDarcy, o utopista sem fuzil frustração da revolução socialista, mas sempre manteve acesa a chama da construção de um Brasil digno para os brasileiros, não como mera esperança intelectualóide, mas na atividade prática. Foi o nosso Che Guevara embalado em samba e sem fuzil, melhor e mais tolerante, mas não menos indignado e determinado, por que batizado nas águas indígenas e africanas.

Na introdução de “Aos Trancos e Barrancos” (escrito em 1985), os dois últimos parágrafos dão uma idéia de sua ação e pensamento :

“Desejo apenas que este livro faça algum jovem pensar que é tempo de tomar este país nas mãos. Para construir aqui a beleza de nação que podemos ser. Havemos de ser! Para tanto, é indispensável impedir o passado de construir o futuro: quero dizer, tirar da gente que nos regeu e infelicitou através dos séculos o poder de continuar conformando-deformando nosso destino.

É hora de lavar os olhos para ver nossa realidade. é hora de passar o Brasil a limpo para que o povão tenha vez. No dia em que todo brasileiro comer todo dia, quando toda criança tiver um primeiro grau completo, quando cada homem e mulher encontrar um emprego estável em que possa progredir, se edificará aqui a civilização mais bela deste mundo. É tão fácil: estendendo os braços no tempo, sinto na ponta dos dedos esta utopiazinha nossa se realizando.

Ponha o ombro no andor, companheiro, faça força você também. Se não cuidarmos deste país que é nosso, os gerentes das multi e seus servidores e sequazes civis e militares continuarão forçando o Brasil a existir para eles.”

Para terminar este panegírico, que vai ficando extenso e pouco diz do elogiado (nem sequer citei o que seria o maior “orgulho institucional” dos burocratas do PDT: o fato de Darcy ter sido senador do partido, pelo Rio de Janeiro, nos últimos anos de vida), reproduzo abaixo o prólogo das Confissões (1996), que neles o leitor “sentirá”, mais do que constatará racionalmente, a essência do que era o vulcão Darcy Ribeiro:

“Escrevi estas Confissões urgido por duas lanças. Meu medo-pânico de morrer antes de dizer a que vim. Meu medo ainda maior de que sobreviessem as dores terminais e as drogas heróicas trazendo com elas as bobeiras do barato. Bobo não sabe de nada. Não se lembra de nada.Tinha que escrever ligeiro, ao correr da pena. Hoje, o medo é menor, e a aflição também. Melhorei. Vou durar mais do que pensava.

Se nada de irremediável suceder, terei tempo para revisões. Não ouso pensar que me reste vida para escrever mais um livro. Nem preciso, já escrevi livros demais. Mas admito que tirar mais suco de mim nesta porta terminal é o que quisera. Impossível?

Este livro meu, ao contrário dos outros todos, cheios de datas e precisões, é um mero reconto espontâneo. Recapitulo aqui, como me vem à cabeça, o que me sucedeu pela vida afora, desde o começo, sob o olhar de Fininha, até agora, sozinho neste mundo.

Muito relato será, talvez, equivocado em alguma coisa. Acho melhor que seja assim, para que meu retrato do que fui e sou me saia tal como me lembro. Neguei-me, por isso, a castigar o texto com revisões críticas e pesquisas. Isso é tarefa de biógrafo. Se eu tiver algum, ele que se vire, sem me querer mal por isso.

Quero muito que estas minhas Confissões comovam. Para isso asDarcy nos últimos meses de vida escrevi, dia a dia, recordando meus dias. Sem nada tirar por vexame ou mesquinhez nem nada acrescentar por tolo orgulho. Meu propósito, nesta recapitulação, era saber e sentir como é que cheguei a ser o que sou.

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Quero também que sejam compreendidas. Não por todos, seria demasia. mas por aqueles poucos que viveram vidas paralelas e delas deram ou querem dar notícia. Nos confessamos é uns aos outros, os de nossa iguala, não aos que não tiveram nem terão vidas de viver, nem de confessar. Menos ainda aos pródigos de palavras de fineza, cortesãos.

Quero inclusive o leitor anônimo, que ainda não viveu nem deu fala. Mas tem coração que pulsa, compassado com o meu. Talvez até me ache engraçado, se alegre e ria de mim, se tiver peito. Não me quer julgar, mas entender, conviver.

Não quero mesmo é o leitor adverso, que confunde sua vida com a minha, exigindo de mim recordos amorosos e gentis, apagando os dolorosos, conforme sua pobre noção do bem e da dignidade. O preço da vida se paga é vivendo, impávido, e recordando fiel o que dela foi dor ou contentamento.

Termino esta minha vida exausto de viver, mas querendo mais vida, mais amor, mais saber, mais travessuras. A você que fica aí, inútil, vivendo vida insossa, só digo: ‘Coragem! Mais vale errar, se arrebentando, do que poupar-se para nada. O único clamor da vida é por mais vida bem vivida. Essa é, aqui e agora, a nossa parte. Depois, seremos matéria cósmica, sem memórias de virtudes ou de gozos. Apagados, minerais. Para sempre mortos’.”

Peço paciência aos leitores que preferem textos mais ágeis e concisos, mas o resgate deste meu “guru” (nos trechos reproduzidos devem ter percebido algo da influência no que escrevo), há muito estava planejado, era necessário, e casualmente se fez no mês em que se completam os dez anos da sua morte (ocorrida em 17 de janeiro de 1997).

Ubirajara Passos

2 comentários em “O “anarquista” Darcy Ribeiro

  1. joao renato disse:

    Tou vivendo a felicidade de ler O Povo Brasileiro.preciso de algumas entrevistas do Darcy. De onde posso baixar. Tu sabes ?

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