O “anarquista” Jesus Cristo


Um dos grandes arquétipos da minha formação, para chilique dos libertários e ateus “cartilhescos”, foi nada mais, nada menos que o pobre profeta doidão chamado Jesus, em cujo nome se consubstanciou a mais perfeita e feroz antropologia autoritária, elitista e avassaladora da consciência humana, só desbancada pelo pseudo-hedonismo do capitalismo pós-segunda guerra mundial, o Cristianismo.

E Yeshua, ou Issa, seus nomes hebraico e indiano, apesar do misticismo chapado de “filho de deus” (cuja precária existência histórica concreta pouco me importa, uma vez que se tornou personagem “real”, vivo e presente do imaginário do Ocidente), possui, no texto dos Evangelhos, mesmo com toda a censura e filtragem do poder imperial da igreja, profundas e evidentes características libertárias.

Além de apelar para a consciência individual, e não para o comportamento padronizado e legalista do judeu “médio” da sua época, que combate violentamente, denunciando a hipocrisia da “moral manifesta” (é célebre o trecho em que compara os “santarrões” fascistas e corruptos de então – apegados à etiqueta religiosa e social, através da qual exerciam a exploração e a opressão impune – a túmulos caiados, bonitos e pintados de branco por fora, mas que por dentro só são imundície e podridão de mortos), o personagem Jesus Cristo assume postura tipicamente contestadora e revolucionária, ao mandar à merda os ditames da legislação teocrática judaica, como a cláusula que proíbe trabalhar aos sábados (mais tarde ressucitada, em relação ao domingo, pelos “paulinistas” da aristocrática igreja medieval). E ao condenar abertamente a classe “proprietária”: em nada resolveria ao jovem rico ter cumprido os mandamentos clássicos da moral religiosa – não matar, não cometer adultério, não furtar, não dar falso testemunho, honrar pai e mãe -, se não vendesse tudo o que tivesse e o desse aos pobres, ou seja abdicasse de sua condição de “senhor”.

Cristo freqüentava a pior espécie da “ralé” e dos “imorais” de então, como os cobradores de impostos para Roma (o equivalente dos traficantes, oficialmente condenados pela moral explícita, mas co-participantes do lucro e do poder de políticos e membros “respeitáveis” da burguesia nacional e internacional), além da gente de “segunda categoria” do mundo mediterrâneo antigo (escravos e mulheres, com que dialoga, e cura com seus poderes para-normais, de igual para igual). E, apesar da interpretação sacerdotal clássica que identifica a virtude à submissão e ao altruísmo babaca, lançou verdadeiros brados rebeldes, anti-poder e anti-dominação, no “Sermão da Montanha”, onde, segundo Lucas, afirma textualmente: “Bem-aventurados, vós os pobres, porque vosso é o reino de Deus. Bem-aventurados os que agora tendes fome, porque sereis saciados. Bem aventurados os que agora chorais, porque rireis. Bem-aventurados sereis quando os homens vos odiarem por causa do Filho do homem. Alegrai-vos nesse dia, e exultai, porque será grande a vossa recompensa no céu; porque era assim que os pais deles tratavam os profetas. Mas ai de vós, ó ricos! Porque tendes a vossa consolação (na Terra). Ai de vós que estais saciados, porque vireis a ter fome. Ai de vós os que agora rides, porque gemereis e chorareis. Ai de vós, quando os homens vos louvarem! porque assim faziam aos falsos profetas os pais deles.

E é esta mesma figura, o profeta cujos primeiros seguidores, após sua morte, viviam, segundo o “Ato dos Apóstolos”, em regime de auto-gestão anarco-comunista (“Todos os que criam estavam unidos e tinham tudo em comum. Vendiam suas propriedades e os seus bens, e distribuíam o preço por todos, segundo a necessidade que cada um tinha. Todos os dias freqüentavam o templo, e, partindo o pão pelas casas, tomavam a comida com alegria e simplicidade de coração“) que iniciaria sua vida pública em homenagem ao prazer e à alegria, tendo como seu primeiro ato de profeta a transformação de água em vinho, em uma festa. Bem diferente, portanto, da religião do sofrimento e do suplício. Do “cordeiro” sacrificado “pela salvação da humanidade” – que, aliás, segundo a própria Bíblia, quando da execução na cruz, reclamou dela, gritando “meu deus, por que me abandonaste?”.

Pessoa histórica real ou produto do imaginário de escravos e plebeus do Império Romano, sincretizado com uma rebelde seita judaico-oriental, o contraditório “Homem de Nazaré” (em cujo nome o Cristianismo condenou o prazer , e sustentou, durante milênios, a ignorância e subserviência popular em prol da dominação de classes) demonstra, nos trechos menos empolados e messiânicos dos evangelhos oficiais admitidos pelo Vaticano, uma vocação digna de um anarquista clássico, ou, no mínimo de um adepto radical da contra-cultura, um hippie com dois milênios de antecipação.

Ubirajara Passos