A CAGANEIRA DE DOM PEDRO


Neste patriótico dia não há nada melhor que rememorar, com o depoimento escrito de uma testemunha ocular, o decantado grito à beira do riacho Ipiranga, em São Paulo, dado pelo princípe-herdeiro de Dom João VI em resposta às ordens recebidas das Cortes (o poder legislativo da monarquia portuguesa) de Lisboa, que anulavam a Convocação, por ele feita em junho, da Assembléia Constituinte do Reino do Brasil e determinavam seu retorno a Portugal, destituindo-o da função de regente da América portuguesa. Grito, aliás, que não ocorreu sobre nenhuma colina, nem rodeado de elegantíssimos soldados da Guarda dos Dragões (que só foi criada anos mais tarde) e muito menos sobre o lombo de um cavalo (mas de uma simples mula), como o pintou, sessenta e seis anos depois, em 1888, Pedro Américo (que plagiou descaradamente um quadro do francês Ernest Meissonier, “1807, Friedland”, pintado em 1875 para comemorar a vitória de Napoleão na referida batalha – as reproduções abaixo são, respectivamente das pinturas do paraibano plagiador e do europeu plagiado).

O quadro de Pedro Américo

Como aliás, a própria independência só se concretizou formalmente com a aclamação de dom Pedro como Imperador do Brasil, no Rio de Janeiro, em 12 de outubro de 1822 (casualmente seu 24.º aniversário) – data até a qual todos os decretos e atos oficiais são assinados, mesmo após o 7 de setembro, na condição de Princípe-Regente do Reino do Brasil, e em nome de Dom João VI.

O quarentão Padre Belchior Pinheiro de Oliveira, pároco mineiro, era o confessor (logo o mentor particular das atitudes) de Dom Pedro e, como bom puxa-saco que era, escreveria em 1826 (quando já a popularidade do Imperador se esvaia pelo ralo) o panegírico em que fixaria permanentemente o imaginário histórico sobre a independência do Brasil, narrando os fatos por ele presenciados, como membro da principesca comitiva que se dirigia a São Paulo, vinda de Santos (onde o Pedrinho já se fartara pelas primeiras vezes nas carnes da irmã de um oficial do exército seu acompanhante, a Domitila cujos dotes sexuais lhe renderiam o nobre título de Marquesa de Santos, concedido pelo imperial amante).

Mas, apesar de puxa-saco, Belchior não possuía a mesma habilidade cara-de-pau de Pedro Américo para alterar a verdade e, ainda que descreva de forma heróica os rompantes finais do amigo, nos revela, na carta cujos principais trechos transcrevo abaixo, um Dom Pedro inseguro, vaidoso e encagaçado (tanto no sentido metafórico quanto literal, pois recebeu as cartas de Leopoldina, José Bonifácio e das cortes, com as calças na mão, em meio à violenta caganeira). Um princípe-regente que se rebela contra a metrópole portuguesa antes por seu orgulho (ele que era caluniado, pelo parlamento português, como rapazinho e “brasileiro” – o supremo desaforo para um nobre europeu) e interesses de herdeiro do trono, do que pelo ideal de independência do Brasil. Vamos ao relato:

“O príncipe mandou-me ler alto as cartas trazidas por Paulo Bregaro e Antônio Cordeiro. (…) D. Pedro, tremendo de raiva, arrancou de minhas mãos os papéis e, amarrotando-os, pisou-os e deixou-os na relva. Eu os apanhei e guardei. Depois, abotoando-se e compondo a fardeta – pois vinha de quebrar o corpo à margem do riacho do Ipiranga, agoniado por uma disenteria, com dores, que apanhara em Santos – virou-se para mim e disse:

– E agora, padre Belchior?

E eu respondi prontamente:

– Se V.A. não se faz rei do Brasil, será prisioneiro das Cortes e talvez deserdado por elas. Não há outro caminho, senão a independência e a separação.

D. Pedro caminhou alguns passos, silenciosamente, acompanhado por mim, Cordeiro, Bregaro, Carlota e outros, em direção aos nossos animais, que se achavam à beira da estrada. De repente estacou-se, já no meio da estrada, dizendo-me:

– Padre Belchior, eles o querem, terão a sua conta. As Cortes me perseguem, chamam-me, com desprezo, de rapazinho e brasileiro. Pois verão agora o quanto vale o rapazinho. De hoje em diante estão quebradas as nossas relações: nada mais quero do governo português e proclamo o Brasil para sempre separado de Portugal!

(…) E arrancando do chapéu o laço azul e branco, decretado pelas Cortes, como símbolo na nação portuguesa, atirou-o ao chão, dizendo:

– Laço fora, soldados! Viva a independência, a liberdade, a separação do Brasil.

(…) O príncipe desembainhou a espada, no que foi acompanhado pelos militares; os paisanos tiraram os chapéus. E D. Pedro disse:

– Pelo meu sangue, pela minha honra, pelo meu Deus, juro fazer a liberdade do Brasil.

(…) Firmou-se nos arreios, esporeou sua bela besta baia e galopou, seguido de seu séquito, em direção a São Paulo, onde foi hospedado pelo brigadeiro Jordão, capitão Antônio da Silva Prado e outros, que fizeram milagres para contentar o príncipe.

Mal apeara da besta, D. Pedro ordenou ao seu ajudante de ordens que fosse às pressas ao ourives Lessa e mandasse fazer um dístico em ouro, com as palavras “Independência ou Morte”, para ser colocado no braço, por um laço de fita verde e amarela. E com ele apareceu no espetáculo, onde foi chamado o rei do Brasil, pelo meu querido amigo alferes Aquino e pelo padre Ildefonso (…)”

 

Como se vê, a consagrada e heróica frase, que se perpetuou nos mitos históricos oficiais como “O Grito do Ipiranga”, não foi bradada, espada em punho, em transes de coragem, coisa nenhuma. Simplesmente, ao chegar a São Paulo, após ter tido tempo suficiente durante o restante da viagem, apesar das paradas para cagar (“quebrar o corpo”, como diz pudicamente o padre Belchior), de bolar uma frase de efeito, Dom Pedro mandou gravá-la em uma fita para usar no braço, assim como Fernando Collor usava suas famosas camisetas com frases para dar seus recados políticos na presidência da República.

Ubirajara Passos

3 comentários em “A CAGANEIRA DE DOM PEDRO

  1. K. disse:

    E não é que a coisa não mudou até hoje?

    muito bom o post!

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  2. Caio disse:

    xD…ótimo tópico…
    bem resumido e organizado, prefiriria vir aki a ir no wikipédia (hehe)
    Só achei o título meio pejorativo pode fazer com que as pessoas deixem de olhar o post só pelo título…
    vlw pela explicação e bons dias de independencia tbm !!!

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  3. […] exatos 15 anos, em 7 de setembro de 2007, eu publicava, neste moribundo e abandonado blog, matéria que desmistificava a narrativa oficial sobre a independência do Brasil, ocorrida em […]

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