“VESTIBURRAR”


No último domingo, às 8 h 30 min da manhã, lá me encontrava eu, em pleno surto de revolução existencial, arrebatado no vendaval das incertezas da perseguição política que estou sofrendo e que pode me usurpar o emprego e me jogar na valeta do banimento sócio-econômico, fazendo a besteira de que evado há mais de vinte anos, sentado, como todo calouro, mudo e taciturno, na “classe”  de uma sala de aula de uma faculdade local.

Em meio à década dos quarenta, com um atraso eterno e infinito, me expunha a outrora tão desejada, e tão evitada nos últimos anos, prova vestibular! É bem verdade que o curso não era o mesmo que, formando do Técnico em Contabilidade (especialização do chamado 2.º grau, hoje ensino médio), há um quarto de século, me propunha enfrentar. Ao invés de Sociologia (que só pretendia cursar em razão dos meus preconceitos de pretenso revolucionário social-democrata) a coisa agora era o Direito (que, por razões “práticas”, como a possibilidade de alçar cargos de chefia no serviço público do judiciário, apresentava-se como desafio necessário). E entre ambas as auto-imposições havia a vocação frustrada de antropólogo ou jornalista…

Mas este não era o único contraste entre o exame de admissão ao curso superior dos meus tempos de piá e o atual. Se em 1984 eu teria de me submeter a uma bateria de textes de conhecimento, da Matemática aos “conhecimentos gerais”, passando pela Física e pela língua estrangeira, em tempos em que Gravataí, já uma das mais populosas e industrializadas cidades do Estado do Rio Grande do Sul, nem sonhava em ter um curso de ensino superior (hoje além das diversas especialidades do campus local da Universidade Luterana, a Ulbra, possui os cursos da Faculdade Cenecista Nossa Senhora dos Anjos, a Facensa), a tortura do dia era uma simples prova de redação!

O que em nada me tranqüilizava, e me fazia suar frio na palma das mãos, pois a eventualidade de ter de discorrer sobre um tema idiota e mal conhecido como futebol ou o mundo das modelos (coisa que bem poderia ocorrer em seleção de faculdade de província) me deixava naturalmente tenso.

Mas, apesar do pavor de calouro quarentão, e até para ver se me distraia e relaxava um pouco, sentei-me exatamente em meio à sala e, dali, me dediquei, até o início da prova, ao esporte de observar os meus companheiros de infortúnio. E pude constatar que, no zoológico pré-universitário em que me achava, havia representantes de todas as famílias e espécies.

À minha direita, chamando a atenção até pela deformação que provocava no espaço à sua volta (que, exatamente como as adjacências de grandes astros, na teoria einsteiniana da relatividade geral, contrai-se e curva-se nas proximidades da massa estrelar) estava o típico gordo juvenil com excessiva massa corpórea e inversamente equivalente capacidade mental, estabanado e tímido.  À esquerda, o seu contraponto físico (e colega de mentalidade), o magrão pequeno-burguês tatuado, malhado, prepotente, metido a surfista, gostoso e conquistador, que se acha muito esperto e conta com o suborno do papai para entrar na faculdade, comprar o diploma e, depois  de formado, ganhar aquela grana, enrolando os trouxas com sua fantástica lábia e aquele ar irresistível de michê de luxo! Entre eles, podia-se ver toda espécie de histéricas filhas da peste emocional, das gatinhas metidas a “Barbie” às dolorosas senhoras de meia-idade, de ar conpungindo e cara amarrotada.

O que nos igualava a todos, entretanto, era a triste situação de gado humano, quieto e apreensivo, como ovelhas do rebanho, ante à pose dos fiscais e à burocracia típica do certame.

Até que,  abrindo o caderno de provas, quase tive aquele ataque de abobadice pura e simples. O tema da redação, numa estranha e feliz coincidência para mim, processado por manifestar meu pensamento, na reedição moderna do crime de opinião, era nada mais que “liberdade de expressão”. E, após alinhar três textos a respeito, a prova propunha a realização de uma dissertação, de 20 a 25 linhas, que respondesse ao questionamento: “Como as pessoas podem expressar-se com liberdade em nosso país?”. Para evitar acidentes de percalços aos mais tapados “tigrões” da classe média local, as instruções advertiam: “É necessário que tenha um título…” e “Organize sua própria argumentação” (não copie as frases  do texto como se fossem suas)”.

Não tive dúvidas! Tendo de resumir e simplificar ao máximo o texto, para não acabar escrevendo um ensaio, e seguindo as regras burocráticas típicas, como a estruturação de um parágrafo introdutório, dois de desenvolvimento e um de conclusão (com no mínimo cinco linhas os dos extremos do texto), escrevi (com direito a rascunho e transcrição para a folha definitiva), na metade do tempo previsto (que era de três horas) a dissertação abaixo, em vinte e seis linhas (talvez tenha sido este o meu imperdoável pecado estilístico e gramatical), que reproduzo exatamente na forma como foi apresentada para que os leitores possam ter idéia de sua “correção”:

“Há Liberdade de Expressão no Brasil?

A Constituição de 1988 garante a todos os cidadãos brasileiros o direito de expressar o seu pensamento sem sofrer quaisquer limitações ou sanções em decorrência de seu exercício. O indivíduo pode até ser responsabilizado civilmente por possíveis danos à imagem de outrem, mas ninguém pode impedi-lo de manifestar-se. Até que ponto isto é uma realidade?

Se levarmos em conta que vivemos em uma sociedade desigual, em que o abismo entre os mais aquinhoados e a massa dos trabalhadores é dos maiores do mundo, esbarramos, de imediato, em sério empecilho concreto à liberdade de expressão. A “opinião pública” é, em geral, o resultado do que circula na imprensa, e esta, dominada pelo monopólio do grande capital, espelha os interesses de seus financiandores, não deixando margem para o  ‘Zé Ninguém’.

Há também limitações à liberdade de expressão dos servidores públicos, nos estatutos das mais diversas instâncias do Estado, com sanções absurdas como a demissão por “crime de opinião”.

A liberdade de expressão do brasileiro comum é, portanto, hoje em dia, mais teoria que prática efetiva. E só se tornará realidade tensionando-se as estruturas sócio-econômicas e os preconceitos culturais e ideológicos que a limitam. É preciso que não nos calemos diante de seu impedimento e exijamos, pelos meios legais, como ações no Judiciário, seu pleno cumprimento.”

Como o leitor pode constatar, posso ter engolido uma vírgula ou uma preposição que outra, mas segui exatamente a cartilha da boa dissertação, não fugindo do tema, nem quebrando o esquema clássico de introdução, desenvolvimento, conclusão, e praticamente não cometi erros ortográficos ou de concordância.

E, chegado em casa, anunciei para a minha mulher, agora em crise de euforia auto-apaixonada, que era impossível ter sido reprovado e o negócio era uma barbada. Foi assim que, trepidante de ansiosa e confiante alegria, abri o site da “ilustre” faculdade, às vinte horas do modorrento e abrasador domingo, para descobrir, assustado e raivoso, que meu nome não constava sequer da lista de “suplentes” aprovados e que, com certeza, o gordo babão ou o brucutu (desculpem-me os leitores com menos de quarenta anos) de bermuda e regata deviam ter uma capacidade intelectual e literária fantástica, digna dos mais sofisticados  e sábios escritores deste país, para se classificarem, enquanto eu, reles mortal sem grana e ligações na “boa sociedade”, era tão ignorante que sequer fora classificado (o que, segundo as regras da prova, só ocorre se o candidato obtiver nota inferior a 2,0).

Como a vigarice legalmente aceita do “manual do candidato” publicado dá a lista de aprovados por “irrecorrível”, e eu não estava a fim de me molestar ajuizando mais uma ação por tão pouco, resolvi me recolher à minha “insignificância” de rebelde letrado (condição que, no país do pretens0 semi-analfabetismo célebre, corresponde à completa debilidade mental) e apenas trazer a público a triste e real anedota. Como há muito venho escrevendo nos panfletos ou matérias do movimento Indignação, em mais este caso, “qualquer semelhança é mera coincidência”.

Ubirajara Passos

Um comentário em ““VESTIBURRAR”

  1. Meu querido Amigo, o que mais se pode esperar neste Estado?
    Processos kafkianos contra nós
    Servidores honestos como nós e o Tubino, afastados, enquanto parentes continuam, o processo da casa da Yeda arquivado, o João Osório se refestelando…
    Salão Jovem Artista – RBS – premiando montes de sucata
    O QUE MAIS PODEMOS ESPERAR?

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