Duplo soneto de um duplo despertar…


Mais um poema relegado ao “pó” da gaveta virtual, resgatado na faxina informática deste final de ano:

Duplo Soneto de um duplo despertar…

Desperta, camarada, que chegou a hora!
Em meio à escuridão das multidões ignorantes,
Ressurge a memória sepultada sob as toneladas
Da maledicência hipócrita e cruenta!

Agora sabemos que não era utopia,
Nem entusiasmo fantasista e inconsequente
Que ao sacrifício tantos arrastaram.

Se no Brasil a massa obreira, estuprada
Nos seus direitos de “viver em paz “,
Só desejava e foi interditada
Antes ainda que a jornada principiasse
No Chile, cada camarada
Experimentou concretamente um pouco
Da construção da nova vida em liberdade!

Nas duas pátrias um sono malsão
Faz prisioneiras as consciências desde então,
Mas uma brisa gélida e ligeira
Vai-se se impondo, suave e destemida.

No sul do sul do mundo a igualdade
Há de tornar a cada um digno e pleno
Porque iguais são os sofrimentos
E eles inspiram-na, revolta ensandecida e sagrada!

“Não sou apóstolo, não sou mártir”, nem profeta,
Sei “que a morte é melhor que a vida
Sem honra, sem dignidade, e sem glória”

Mas sei que em “cada gota do sangue” dos sacrificados
Pelo direito a uma vida humana,
Manteve-se e está frutifican
do em nossas consciências a “vibração sagrada”!

Gravataí, 7 de janeiro de 2013

Ubirajara Passos

Pacotaço de Sartori: por que não aconteceu a greve geral do funcionalismo gaúcho e o que lhe resta fazer diante da sanha privativista e anti-trabalhador dos governos estadual e federal


Diante do questionamento de combativos companheiros servidores do judiciário gaúcho sobre a razão que impediu o funcionalismo do Rio Grande do Sul de deflagar a greve geral contra o pacotaço privativista (com absurdos como a venda da Sulgás, da Cia. Riograndense de Mineração e da CEEE, extinção da Cientec, da Fundação Zoobotânica e da fundação Piratini, que mantém a TVE e a Fm Cultura) e anti-servidor do governador Sartori, votado na correria e sob forte repressão miltar às manifestações de protesto na praça da matriz, publicamos, a guisa de resposta, as seguintes reflexões no grupo de facebook “Greve no Judiciário Gaúcho”:

Nem medo, nem falta de união, mas simplesmente peleguismo puro de lideranças sindicais burocratizadas e incapazes de comandar a rebeldia necessária. Discursos infantis e desgastados como o da direção do Cpers, que tratava o apocalipse do serviço público como um mero “pacote de maldades” (algo como uma “birrinha pueril do governador) e não como uma política coerentemente pensada (embora radicalmente absurda) e determinada de enxugamento e desmonte do serviço público, e entrega de setores estratégicos ao capita privado, deixam clara uma inércia abobalhada diante da hecatombe que está nos reduzindo a todos à condição de escravos sem nenhum direito, atê mesmo à representação sindical! (vide o fim de triênios, adicionais, licença-prêmio e licença remunerada para cumprimento do mandato sindical), na liquidação do estoque e patrimônio da lojinha falida do budegueiro gringo (tal é a natureza das “medidas de gestão” de Don Sartori).

No Sindjus não se deve nem falar, visto que dirigido por agentes expressos e teleguiados do patrão.

A imagem pode conter: 1 pessoa, multidão, árvore e atividades ao ar livrefoto: Inezita Cunha
fotos: Inezita Cunha
A heróica resistência das manifestações durante a votação propositalmente de inopino, feita a ferro e fogo e garantida pela repressão militar truculenta, é o derradeiro ato desesperado, e absurdamente insuficiente, que mesmo que contasse com a presença de dezena milhares de servidores não surtiria o efeito necessário que somente poderia advir da greve geral por tempo indeterminado.

No já longínquo ano de 1987, atitudes bem menos drásticas do governador peemedebista Pedro Simon foram exemplarmente rechaçadas e detidas por uma greve sem precedentes, liderada por sindicatos com brios.

Naquela época os servidores da justiça fizeram sua primeira grande greve sob a liderança, recém eleita então, do Paulo Olímpio da ASJ (!), que nem o Sindjus então existia!

É inacreditável a domesticação a que chegamos nestes trinta anos, que é extremamente perigosa quando ocorre simultaneamente ao avanço raivoso e impiedoso do fascismo privativista e predatório que comanda o país desde Brasília.

As “reformas” de Sartori e Temer não coincidem com a lógica da liquidação de lojinha falida por acaso, nem são mero reflexo da índole partidárias de tais governos, casualmente peemedebistas.


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fotos: Inezita Cunha

Elas servem concretamente aos interesses do capital financeiro internacional, cuja sanha cada vez maior se garante pela implantação de ditaduras informais, escudadas numa legalidade aparente e no mais furibundo e falso moralismo fascista.

E para implantá-las nada melhor que governos fantoches dirigidos pela velha lógica feudal, entreguista e subserviente das aristocracias latino-americanas. As mesmas que apearam Perón e Jango do poder, “suicidaram” Getúlio e Allende e assassinaram Che Guevarapara que a burguesia americana pudesse continuar sugando cada vez mais o produto do sacrifício diário dos trabalhadores do continente.

Contra este massacre econômico e social deliberado, que nos chicoteia o lombo e nos tritura o corpo até o tutano, não resta, tanto para servidores públicos quanto para o povo trabalhador brasileiro em geral, outra saída que a única e derradeira resposta plausível ao encurralamento irresistível em que estamos sendo jogados. E ela não é somente a resistência pela greve geral, mas a derrubada, a pau e pedra de tais governos ilegítimos.

Estão nos retirando até o último direito e nos conduzindo à miséria definitiva. Logo não teremos mais nada a perder. E aí, quem sabe, ganharemos o ímpeto para virar a mesa e mandar esta ordem social e econômica, e todos seus beneficiários, inclusive os mandaletes corruptos travestidos de defensores democratas da moralidade, ao lugar que merecem (que não é exatamente o colo de suas genitoras)!

Ubirajara Passos


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foto: Inezita Cunha

Dos doidos e irreverentes (e mais do que nunca necessários) intelectuais revolucionários libertários!


Desde a publicação do último texto (o poema da bailarina) venho me deparando com documentários sobre Glauber Rocha. O primeiro, realizado por sua última companheira, sobre sua estadia na vila portuguesa de Sintra, nos seus últimos de vida – que assisti justamente na madrugada em que escrevi o poema, antes de tê-lo feito. E o segundo assistido, como o primeiro, casualmente, nesta última semana, no canal televisivo fechado Curta! (que peguei pela metade numa madrugada) e (integralmente) no youtube, na noite de anteontem.

E o resultado destas incursões na biografia do mais DDA, polêmico, espontâneo, impulsivo e verborrágico dos nossos cineastas, além das leituras realizadas na internet, após elas, em sites como Tempo Glauber, foi um apaixonamento redentor pela figura, que conheci quando ela se fazia repórter do programa Abertura da extinta TV, em 1979 (ano em que eu começava a me apaixonar pela política, por Leonel Brizola e pela revolução socialista e nacionalista). E a qual creditava um caráter um tanto confuso, extravagante e fora da ordem – imagem esta a qual a  assistência (rápida e parcial) de trechos de seus filmes (como Deus e o Diabo na Terra do Sol), nos anos seguintes, só aprofundousse-me. Me convencendo que o doido que teve a coragem de declarar, sem irônias, que o general gorila (responsável pela estratégia de sobrevivência do regime militar na sua essência econômica, social e cultural até os dias de hoje  – plasmada já naquela época pela promoção de Lula e do PT, a fim de afastar o fantasma de Brizola e Prestes) Golbery do Couto e Silva era o “gênio da raça”, era definitivamente um bicho porra-louca e hermético, destes cineastas cujo sentido das obras (os filmes de “arte”) somente eles (ou nem eles mesmos) compreendem e tem prazer em nos torturar o fatigado cérebro com elas.

GLAUBER-ROCHA-1

O que eu não sabia e não me dei por conta (e, mesmo tendo lido a autobiografia do companheiro Darcy, as Confissões) é que, na mesma polêmica e terrivelmente execrada frase ele afirmava que o outro único “gênio” da etnia brasileiro era o próprio Darcy Ribeiro (cujas informações dadas a Glauber sobre o caráter revolucionário popular da ditadura peruana do general Alvarado o convenceram da possibilidade de semelhante coisa vir a ocorrer na distenção de Geisel e abertura de João Figueiredo no Brasil). E que sua postura, em aparente contradição com seus pendores e concretas atitudes socialistas, nacionalistas e revolucionárias extremadas, vivida na prática da forma num turbilhão caudaloso e impetuoso de produção cinematográfica, literária e na própria e tempestuosa vida pessoal, não diferia nem um pouco da prudência das declarações de um Leonel Brizola sobre a natureza democrática do governo de João Batista Figueiredo, que correspondia, na época aos naturais temores de gato escaldado de quem havia se exilado diante da raiva histérica e furibunda dos golpistas fascistas e assistira à avalanche da tortura, opressão e censura política generalizada que sucedeu ao golpe nos anos seguintes.

E o que me faltava na minha remota adolescência (na qual forjei-me como um ser crítico, independente e libertário) era a trajetória concreta de uma vida iniciada na mais sisuda seriedade esquerdista revolucionária,  transmutada, pelas próprias pedras agudas e sofridas do caminho, na mais irreverente e cada vez mais aberta e questionadora postura, embora nem um pouco concedente para com as mazelas absurdas da opressão.

Hoje, entendo visceralmente a figura de Glauber Rocha (e, embora continue a ver em muitas de suas concepões conscientes, como no manifesto A Revolução é uma Estetyca, uma certa ingenuidade adolescente, o que é perdoável num marxista que, por mais que girasse num furacão criador, não conseguiu se desvencilhar de todo da  velha cartilha camarada) e constato o quanto, guardadas as devidas proporções, a minha trajetória e a do companheiro Valdir fluem nas mesmas águas e na mesma direção da pretensa doideira da metralhadora política giratória do que, efetivamente, foi um dos grandes gênios tresloucados (e, por isto mesmo, tomados de um santo e transformador delírio, que a tudo transcende e tudo questiona, para tudo revirar de patas para o ar e fazer surgir, no cadinho alquímico do pretenso caos, a humanidade profunda e embevecida com tudo que é vivo e/ou é sofrido e doído justamente pela falta de dignidade imposta sobre sua condição de ser vivo, pensamente e vibrante, de carne e osso).

O meu saudoso, inesquecível e cada vez mais pranteado, parceiro de política, intelectualidade, trago e vida, o alemão Valdir, se estivesse vivo e assistisse, e lesse, comigo a todos estes documentários e textos, certamente se entusiasmaria (como certa feita se apaixonou pela paradigmática frase de Francisco Julião, o líder das Ligas Camponesas no pré 1964, sobre a natureza redentora e necessária da agitação política, pois até os remédios são recomendados nas bulas que se agite para perfeita eficácia dos tratamentos), ainda mais que eu (pois ele era, do alto do seu aparentemente sisudo DDA, um ser eternamente inaugural, capaz de se apaixonar umbilicalmente e se engajar de corpo e alma em toda qualquer causa que lhe despertasse o insight da sacrossanta revolta), e, com toda a sua autenticidade nada convencional e abrupta me diria: mas Bira, o que tu quer criticado o tipo, este Glauber é a tua cara!

E, assim, num reconhecimento e homenagem pra lá de póstumos (eu que sempre fui também um adorador da dedicação e irreverência de um Darcy Ribeiro) resolvi, hoje, compartilhar no youtube e postar neste blog o trecho do documentário Glauber Labirinto do Brasil, de Sílvio Tendler (o mesmo autor de Jango e os Anos JK), em que o Darcy profere no enterro de Glauber Rocha (1981) um profundo e atual discurso, celebrando o seu amigo, que era o mais libertário, autêntico e sensível intelectual revolucionário brasileiro,  lá nos anos do já longínquo início do fim da ditadura militar. Vale a pena, caro (e provavelmente assustado com toda esta minha ladainha) leitor, assisti-lo, pelo seu conteúdo atualíssimo e pela profunda emoção expressada, naqueles dias em que o Brasil começava, com a morte de Glauber, a perder os seus grandes representantes da dedicação pura, inteira e vital, e mesmo ingênua, à revolução que reduziria a cinzas, no seu fogo aparentemente caótico e libertador (não fosse frustrada, traída e impedida por muitos que se diziam filhos dela, posteriormente) o desamparo e a miséria material e emocional das multidões sofridas deste país rico e dilacerado.

Dezesseis anos após este discurso (em 1997), se iria o próprio Darcy, que foi  outro grande quadro (como Jango e Leonel Brizola) do compromisso completo e visceral, atê o âmago mais recôndito, com a utopia redentora, socialista e libertária que doidos como eu e meu falecido amigo Valdir Bergmann continuamos, teimosamente, dentro de nossa humilde e limitada condição de peões metidos a intectuais de esquerda, a reverenciar e alimentar no dia-a-dia. Fiquem com o vídeo:

Ubirajara Passos

 

O Discurso de Brizola no comício do Largo da Prefeitura de Porto Alegre (1º de abril de 1964) durante o golpe do dia da mentira


Após o comício da Central do Brasil, em 13 de março de 1964, a direita brasileira lacaia, aliada do imperialismo norte-americano, alarmada com a possibilidade de ver o início da derrogação de seus privilégios, se unificaria, da UDN lacerdista ao PSD de Tancredo e Juscelino, contando com o apoio dos generais fascistas formados na ideologia da Escola Superior de Guerra e na convivência com as forças yankees na Itália, no final da Segunda Guerra Mundial, acelerando suas ações em direção ao golpe militar que, depondo João Goulart, acabaria por impor uma ditadura de mais de vinte anos, cujo saldo, além das mortes e das perseguições, e do atraso social, se perpetua até hoje, na miséria, na fome e na violência quotidiana, no apodrecimento da consciência da massa de nossa população e na presença, no poder federal,  de ilustres canastrões corruptos atuantes naquela ditadura, como José Sarney, dono absoluto de um latifúndio que atende pelo nome de Estado do Maranhão.

Em 19 de março, meio milhão de equivocados – ou nem tanto – (inclusive o futuro Presidente da República do Partido dos “Trabalhadores”, o eminente Inácio dos Nove Dedos), liderados por ilustres beatas raivosas e assexuadas (a própria imagem concreta da peste emocional materializada na defesa de sua expressão política, o fascismo), e patrocinados pela burguesia nacional e multinacional, tomaria as ruas de São Paulo, exigindo aos brados histéricos a deposição de Jango e a prisão de Brizola, rosários febrilmente manipulados nas garras, na “Marcha da Família com Deus pelo Brasil e a Liberdade“. Criava-se assim o pretexto de massas civis pretensamente descontentes , como se faria uma década após no Chile de Pinochet, para derrubar um governo popular, eleito legalmente por maioria e que contava, à data de sua deposição, com a aprovação de ampla maioria do povo brasileiro, segundo a própria imprensa da época.

Seis dias mais tarde cria-se o pretexto da quebra da hierarquia militar, e do descontentamento dos generais e almirantes, em torno do apoio de Jango ao que os golpistas caracterizavam como a subversão dos comandos subalternos das forças armados (sargentes e marinheiros), que haviam se organizado em associações próprias (verdadeiros sindicatos) em defesa de seus direitos políticos (muitos haviam sido eleitos para cargos parlamentares e sido impedidos de assumir por decisão do STF, que corroborava a absurda inelegibilidade prevista da Constituição de 1946 para soldados e comandantes imediatos da tropa, abaixo do oficialato), trabalhistas (o salário dos marinheiros, por exemplo, era inferior ao das empregadas domésticas) e das reformas de base defendidas pela Frente de Mobilização Popular, liderada por Leonel Brizola e integrada por organizações populares como o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT) e União Nacional dos Estudantes (UNE), além de numerosos sindicatos e confederações nacionais de trabalhadores (entre eles, metalúrgicos e trabalhadores rurais), bem como pela extrema esquerda do PTB, PSB e PCB, pelo grupo político do governador pernambucano Miguel Arraes e as Ligas Camponesas do Nordeste, liderados pelo deputado socialista Francisco Julião.
Resultado de imagem para brizola discursando em 1964Em 25 de março, especificamente, os marinheiros e fuzileiros navais, sob a liderança do “cabo” (marinheiro de segunda classe) Anselmo (que mais tarde se apurou ser um agente infiltrado do aparelho de conspiração institucional yankee, a CIA), realizam, no Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro, um ato comemorativo ao segundo aniversário da fundação de sua associação, por José Anselmo então presidida. Naquela ocasião, durante a cerimônia, vem à tona decisão do ministro da Marinha determinando a prisão dos diretores da associação em razão de críticas à proibição de sua visita à Petrobrás em 20 de março. Em reação à repressão, os marinheiros se declaram em assembleia permanente, sendo colocados de prontidão (e, portanto, devendo dirigir-se a seus postos em navios e quartéis) pelo ministro Silvio Mota, resistindo à ordem abstrusa, que pretendia esvaziar, sob o tacão hierárquico, a resistência. Fuzileiros enviados para prender os “revoltosos”, aderem ao movimento. Entre eles se encontrava o comandante do corpo de fuzileiros navais, o Almirante nacionalista Aragão, que para lá havia se deslocado a fim de parlamentar com a massa mobilizada.

No dia seguinte o sindicato é  sitiado por tropas do Exército, levantando-se o sítio em razão da resistência dos presentes no prédio e em 27 de março, Jango, vindo de Brasília, se dirige à antiga sede da presidência da república na ex-capital, o Palácio das Laranjeiras, e determina a libertação dos marinheiros presos e a demissão do Ministro da Marinha, Sílvio Mota, responsável pelas prisões, que é substituído nacionalista e reformista Paulo Mário. O resultado é o repúdio do oficialato conservador e golpista, expresso em manifesto do “Clube Naval” no dia 28. Estava criado, definitivamente o pretexto legalista e hierárquico para depor o presidente que “desmoralizava” os austeros e sérios chefes das forças armadas, “defendendo baderneiros”, que se cristalizaria dois depois, na noite de 30 de  de março, após o discurso de Jango no automóvel clube, em ato realizado pela Associação dos Sargentos, nos quais o presidente da República defenderia ferozmente as reformas de base e denunciaria o golpe em marcha.

Algumas horas após, na madrugada de 31 de março, em conluio com o governador udenista (banqueiro que usufruiria lautamente das benesses da futura ditadura) Magalhães Pinto (e com o apoio dos governadores de São Paulo, Ademar de Barros, Rio Grande do Sul, Ildo Meneghetti, ambos do PSD, e do histérico fascista Carlos Lacerda, governador da Guanabara, da UDN) o folclórico general auto-intitulado de “Vaca Fardada”, Olímpio Mourão Filho lançaria um manifesto golpista, dirigindo suas tropas de Minas, Juiz de Fora, para o Rio de Janeiro, onde Castelo Branco (incrivelmente chefe do Estado Maior das Forças Armadas) conspirava abertamente para depor o governo federal. As tropas enviadas pelo Ministro da Guerra para combatê-lo aderem ao golpe (por ordem de seu comandante, ainda que muitos soldados e sargentos desertem para resistir), bem como as do “compadre” de Jango, Amaury Kruel, sediadas em São Paulo.

Resultado de imagem para brizola discursando em 1964

Jango se desloca para Brasília, não encontrado meios de lá resistir e, na noite de 1º de abril, se dirige para Porto Alegre, onde Brizola, juntamente com o Comandante do III Exército, General Ladário Telles, organiza a resistência ao golpe, reeditando a Cadeia da Legalidade, baseada agora na Prefeitura Municipal de Porto Alegre, governada pelo trabalhista Sereno Chaise, e na Rádio Farroupilha, a qual realizará, na noite daquele dia, o último comício do regime democrático e em que Brizola proferirá o discurso que a seguir transcrevo, a partir de gravação de áudio da época, reproduzida no Site do Correio do Povo, de Porto Alegre, neste ano, por ocasião da comemoração dos 50 anos do Movimento da Legalidade de 1961:

“Ainda não correu  bala! Ainda não se deu um tiro! Os gorilas têm vencido até agora e progredido como aqueles que são hábeis jogadores de xadrez, com seus punhos de renda. Mas, de agora em diante, nós iremos ver quem realmente tem fibra e tem raça. Na hora de correr bala, na hora do cheiro de pólvora, nós iremos ver a covardia dos traidores e dos golpistas. Neste momento, entra em cadeia, em conexão com a Rede Gaúcha da Legalidade a Rádio Nacional de Brasília e centenas de emissoras pelo Brasil afora. 

Gorilas, gorilinhas e micos de toda espécie! Golpistas e traidores! Agora é que nós vamos ver quem é que tem banha para gastar! Mas a nossa resposta, a resposta do povo gaúcho,  a resposta do povo gaúcho ao tartufo Ademar de Barras, de Barros vai ser a bala! Nós agora é que arrecém vamos começar a luta. Até agora ela esteve se realizando como um tabuleiro de num… num tabuleiro de xadrez. Agora é que nós vamos pôr à prova,  vamos comprovar a covardia destes traidores do povo e da pátria. 

Atenção, trabalhadores de São Paulo! Atenção, trabalhadores da Guanabara, trabalhadores do Nordeste e de Minas Gerais. A nossa palavra , a partir de hoje, é a greve geral dos trabalhadores. Somente na área do III Exército e onde atuem as forças que lutam ao lado do povo e dos nossos direitos é que os trabalhadores devem redobrar as suas atividades. Nós, neste momento, já recebemos a comunicação que no Estado da Guanabara parou tudo! Greve geral no Rio de Janeiro. Pararam as barcas. Pararam os trens da Central e da Leopoldina. Amanhã irão parar os metalúrgicos, os serviços de transporte, o DPT e as comunicações. Amanhã, greve geral na Guanabara. E nós, aqui, nos dirigimos ao operariado paulista, aos trabalhadores de São Paulo, aos trabalhadores da Petrobrás, da refinaria, da refinaria do Cubatão. Parem! Greve dos trabalhadores de São Paulo, para defender o próprio direito de greve das classes trabalhadoras!

 Nós, como afirmamos, não tomamos a iniciativa da violência. Nós não começamos a violência. Foram eles que começaram. Pois agora eles irão tê-la. A resposta do povo gaúcho à insurreição golpista, à violência contra os nossos direitos e liberdades , meus patrícios e irmãos, será, primeiro, a ajuda às tropas do III Exército, da 5ª Zona Aérea e da Brigada Militar. Segundo, organização de corpos provisórios para aglutinação do elemento civil, sua organização para participação na luta ao lado das gloriosas forças legalistas do III Exército e da Brigada Militar. Nós, desde já, conclamamos aos nosso chefes e dirigentes do interior: passem a reunir companheiros, centenas, milhares de companheiros para serem selecionados e organizados para a grande marcha que haveremos de realizar, ao lado de nossos irmãos de todos os recantos da pátria, para a conquista das reformas e para a libertação do povo brasileiro da espoliação do capitalismo internacional. 

Pedimos ao povo gaúcho e ao povo brasileiro que acompanhe as transmissões da Rede da Legalidade que estamos fazendo de Porto Alegre. E aos tartufos, aos traidores, aos golpistas, aos gorilas, nós daqui declaramos, a eles declaramos que eles não perdem por esperar, não perdem por esperar. Eles irão prestar contas ao povo brasileiro pelos crimes que estão cometendo contra a Constituição, contra os direitos e conquistas democráticas do nosso povo. E a eles nos queremos dizer: conosco não pegam estas mistificações, esta onda que aí fazem de que nós somos subversivos, que somos anarquistas, que somos extremistas, que somos comunistas, isso e aquilo. A eles nós queremos dizer: vermelho é o sangue de gaúcho e de brasileiro que corre nas nossas veias. 

Nós diremos  ainda, meus patrícios e irmãos, que devemos, de agora em diante, agir com firmeza e energia, sem perder a nossa cabeça e a nossa se… a nossa serenidade. Precisamos agir com firmeza e energia, mas com serenidade e confiança. Eu quero vos dizer que o meu lugar, povo gaúcho, é aqui convosco, é aqui ao vosso lado, para as lutas, as glórias e os sofrimentos do nosso povo, que caminha, que anda, que vai, incoercivelmente, progredindo, avançando em busca de sua libertação e da realização de uma sociedade justa, humana e verdadeiramente cristã, dentro das nossas fronteiras. 

Porto Alegre é um lugar histórico e, hoje, é o centro, novamente, da resistência. O Governo do Estado parece que até já abandonou a sua sede. Segundo se informa, segundo, segundo se informa, o Governador já anda lá por Uruguaiana. Outros dizem que foi se esconder na praia do Quintão. Outros, ainda, informam que está em baixo de uma cama, em algum lugar, aqui mesmo por Porto Alegre. Mas o mais certo é imaginarmos que o seu paradouro deve ser em algum lugar próximo da fronteira argentina ou da fronteira do Uruguai, para fugir da justiça do povo gaúcho, porque ele lançou um manifesto traindo a consciência democrática do nosso povo. 

Porto Alegre é um lugar histórico, Porto Alegre é um lugar histórico, e eu, há muito tempo que eu venho dizendo que os destinos deste país, a chamada crise brasileira, vai, ía e vai ter a sua solução exatamente aqui em Porto Alegre.

 

Eu peço a todos que permaneçam atentos, porque possivelmente ainda hoje tenhamos as mais importantes e decisivas informações a prestar ao povo gaúcho e ao povo brasileiro sobre a crise político-militar, esta guerrinha sem tiros que até agora assistimos, que aí estamos vendo se desenvolver pelo país. 

Nós teremos possivelmente importantes informações. E a nossa palavra de ordem, neste momento, ao povo gaúcho e ao povo brasileiro é a luta e a resistência contra o golpismo, contra a ditadura disfarçada das oligarquias e das minorias dominantes e reacionárias de nosso país! 

Luta e resistência! Nós não nos conformaremos! E nós, por isso, esperamos que o nosso Presidente não nos tire das mãos, nem das suas, nem das nossas, a bandeira da defesa da ordem democrática. Que não passe por sua cabeça, como ele próprio reafirmou, nenhuma idéia de renúncia. Porque nós queremos permanecer coerentes pelos nossos direitos para conquistar o direito de novos avanços em nossa caminhada em busca da libertação social e econômica. 

Quanto a nós, ele sabe, quanto a nós povo brasileiro, é essa a nossa posição. Se for difícil o caminho, não tem importância. Vitória sem luta é a conquista de uma glória sem honra. E, para nós patriotas e brasileiros, nessa cruzada em defesa dos nossos direitos , a nossa sorte está lançada. Mais vale perder a vida que perder a razão de viver! 

Deixo-vos, meus patrícios e irmãos, o meu abraço, a minha confiança. E volto a insistir com a minha palavra. Com a minha palavra ao… aos nossos irmãos sargentos, para que eles tome as suas iniciativas: passe a mão nestes gorilas! Prendam-nos, deponham-nos em nome do povo brasileiro e em nome da própria Constituição. 

E eu, daqui, quero enviar uma mensagem ao valoroso Comandante do Corpo de Fuzileiros Navais, ao Almirante Aragão. Para dizer a ele que o povo gaúcho está esperando dele, e acreditamos que o faça, só mesmo que obstáculos intransponíveis existam em sua frente, que nós esperamos daquele grande soldado, e de sua corporação, a imediata iniciativa da prisão do verdugo Carlos Lacerda. 

 Lacerda,  Lacerda é um homem periculoso. É um contraventor e um criminoso. Ele está ao lado do golpe e nós esperamos que o nosso companheiro Aragão, com os seus fuzileiros navais, deite a mão naquele criminoso para julgamento, para a justiça que clama o povo brasileiro! 

Ao ínclito e valoroso, ao ínclito e valoroso, ao bravo General Oromar Osório, daqui enviamos a nossa mensagem mensagem: nós entregamos ao grande e valoroso  General Oromar Osório, o traidor Amaury Kruel, para ele fazer justiça em nome do povo brasileiro. O bravo General Osório deve estar marchando em direção a São Paulo. E a ele nós entregamos o traidor Amaury Kruel para que ele, com os seus soldados, seus sargentos e seus oficiais, tome a iniciativa de ajustar contas com aquele que quebrou o seu juramento, a sua palavra, a própria dignidade, as tradições de dignidade do povo gaúcho. 

Aos meus conterrâneos do Rio Grande, gaúchos e gaúchos de todas as gerações, à valorosa e inconfundível população porto-alegrense, quero dizer, nesse momento, da minha confiança, do meu apreço, quanto a vossa dedicação, o vosso valor, o vosso heroísmo e a vossa lealdade. E, quanto a mim, podem também ter a segurança e a certeza que o meu lugar  é exatamente aqui convosco, aqui ao vosso lado.”

Na manhã seguinte, 2 de abril, após o presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, implementar o golpe de Estado, em plena sessão do Congresso Nacional, daquela madrugada, iniciada às 11 h do dia dos bobos, (declarando vaga a presidência da República, sob o pretexto completamente falacioso e inverídico de que Jango havia abandonado o território nacional, e empossando seu colega golpista e lacaio dos generais gorilas, o presidente da Câmara dos Deputados Ranieri Mazzili na Presidência da República – como fantoche, pois o poder passa a ser exercido pelo comando da “revolução”, dirigido por Costa e Silva, no Ministério da Guerra, no Rio de Janeiro), Jango, sabedor da presença de uma força tarefa de fuzileiros navais yankees postada nas águas territoriais brasileiras, em frente a Vitória (capital do Espírito Santo), pronta a apoiar militarmente os golpistas, após longa reunião com Brizola, líderes trabalhistas e generais do III Exército, renuncia implicitamente, negando-se a resistir, e dirigindo-se a São Borja e, surpreso com a repressão, no dia 4 de abril, ao exílio no Uruguai.

A cadeia da Legalidade é encerrada, na tarde de 2 de abril, com melancólico discurso de Sereno Chaise, que transmite a recomendação de Brizola aos companheiros de coragem e serenidade diante do fato consumado.Frustrados e desmotivados pela desistência do líder institucional, o Presidente da República, os militantes nacionalistas e populares desarticulariam as greves gerais e outros atos de resistência iniciados, debaixo da feroz repressão do novo regime, bem como as forças militares legalistas e nacionalistas de Oromar Osório e do Almirante Aragão não implementariam os atos reclamados no discurso de Leonel Brizola que, após permanecer por mais de um mês na clandestinidade, percorrendo o interior do Rio Grande do Sul e do Brasil, se exilaria no Uruguai, de lá tentando, nos primeiros anos, organizar a guerrilha para deposição dos militantes capachos do imperialismo e implementação da revolução de caráter popular nacionalista e depois se veria confinado ao interior do país, até ser expulso pela ditadura uruguaia em 1977, e, passando pelos Estados e Portugal, retornar, como grande líder do trabalhismo brasileiro, em 1979, em plena “abertura democrática” do ditador João Figueiredo.

Ubirajara Passos

O discurso de Brizola no comício da Central do Brasil (13 de março de 1964)


Sexta-feira, 13 de março de 1964. Um ano, dois meses e 10 dias após o plebiscito que garantiu a devolução de seus plenos poderes como chefe de governo, o Presidente da República João Goulart, finalmente se convence de que a conciliação com os partidos da direita “progressista” (especialmente o PSD de Juscelino e Tancredo, com que o PTB mantinha aliança desde a morte de Getúlio Vargas) se tornara incompatível com o nacionalismo e a defesa dos interesses dos trabalhadores. E toma  definitivamentre o lado das forças populares e anti-imperialistas, assinando, no maior comício da história do Brasil, até então, junto à Estação Ferroviária Central do Brasil, os atos legais que regulamentavam a remessa de lucros das empresas multinacionais ao estrangeiro, desapropriavam as refinarias privadas de petróleo e desapropriavam os latifúndios situados ao longo das rodovias federais, criando a Supra (Superintendência Nacional da Reforma Agrária).

Junto a Jango e à massa de trabalhadores radicalizados no movimento pelas reformas de base (a reforma agrária, a reforma urbana e universitária, entre outras), se encontram no palanque as lideranças da UNE (União Nacional dos Estudantes, ironicamente representada por seu então presidente, José Serra), do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), do PSB (Partido Socialista Brasileiro), do clandestino Partido Comunista Brasileiro, da Comando Geral dos Trabalhadores (CGT) e, principalmente, da Frente de Mobilização Popular. Falam, entre outras lideranças  da FMP, o governador de Pernambuco Miguel Arraes, do Partido Social Trabalhista (PST), o deputado do PSB Francisco Julião, líder das Ligas Camponesas, e o grande líder da frente, que era o deputado federal  do PTB pelo Estado da Guanabara Leonel Brizola.

Brizola, como governador de seu estado natal, o Rio Grande do Sul (1959-1963) havia se tornado o grande baluarte do nacionalismo de esquerda, ao desapropriar duas grandes multinacionais, a IT&T (telefônica) e a Bond and Share (energia elétrica). E, com sua rebeldia intemerata e audaz, havia garantido a posse do Vice-Presidente da República João Goulart na titularidade do cargo, vetada pelos ministros militares fascistas e pró-imperialistas de Jânio Quadros, quando da renúncia deste em agosto de 1961.

Utilizando-se da estrutura legal do governo do Estado, Brizola, com o apoio da Brigada Militar e da massa popular (que se mantinha informada através das ondas da Rádio Guaíba, instalada nos porões do Palácio Piratini, de onde Brizola proferia seus discursos), havia feito uma verdadeira revolução contra o golpe que se preparava então, epsiódio que se tornou conhecido como a Campanha da Legalidade.

Agora era o mais radical e inconformado dos líderes populares que reclamavam reformas na sociedade capazes de dar um mínimo de dignidade às massas populares (e que, se implementadas, teriam criado as condições mínimas para um avanço futuro rumo ao socialismo). Neste comício proferiria o discurso que reproduzimos abaixo, publicado no órgão de imprensa da FMP, o jornal  Panfleto – o jornal do homem da rua – , de 16 de março de 1964, n.º 5 (páginas 2 e 3)

“Este é um encontro do povo com o governo. Encontro com esta multidão e com os milhões que, através dos seus rádios, do recesso de seus lares, estão presentes não apenas para aplaudir, mas para dialogar com o governo.  Se fosse apenas para aplaudir, não seríamos um povo independente, mas um rebanho de ovelhas. O povo está aqui para clamar, para reivindicar, para exigir e para declarar sua inconformidade com a situação que estamos vivendo.

Saudamos o governo pelo seu gesto democrático. Porque é realmente democrático um governante descer para o diálogo com o povo.  E estamos certos de que o presidente não veio, nesta noite, apenas para falar, mas para ouvir e para ceder ao povo brasileiro. Para ceder a esta pressão – é a voz que vem da fonte de todo o poder, é a pressão popular, a que com honra, um governante deve se submeter. 

Quero citar e aplaudir estes dois atos que devem deflagrar um processo de transformação em nosso país: o decreta a Supra e o decreto de expropriação das refinarias de petróleo.

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Povo e governo, num país como o nosso, devem formar uma unidade.  Unidade esta que já existiu em agosto de 1961, quando o povo praticamente de fuzil na mão, repeliu o golpismo que nos ameaçava e garantiu os nossos direitos. Unidade, esta, que já existiu no plebiscito de janeiro de 1963, quando mais de dez milhões de brasileiros exigiram o fim da conciliação do parlamentarismo e a realização imediata das reformas.

Quando uma multidão se reúne como nesta noite, isto significa um grito do nos caminhos da sua libertação. Em verdade, se conseguirmos hoje a  restauração daquela unidade, o presidente poderá retornar, através da manifestação do povo, às origens de seu governo. E, para isso, será suficiente que ponha fim à política de conciliação e organize um governo realmente democrático, popular e nacionalista. 

Pode ser que, neste momento, a minha palavra esteja sendo impugnada. Podem julgar que as minhas credenciais não sejam suficientes. Mas o meu lugar é ao lado do povo, interpretando suas aspirações, e por isso, aqui estou como um dos seus autênticos representantes.

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Mas quero perguntar ao povo: querem que continue a política de conciliação ou preferem um governo nacionalista e popular? Aos que desejam  um governo nacionalista e popular que levantem as mãos.

Chegamos a um impasse na vida do nosso país.  O povo brasileiro já não suporta mais suas atuais condições de vida.  Hoje, até as liberdades  democráticas estão ameaçadas.  Vimos isso em Belo Horizonte, em São Paulo e no Rio Grande do Sul, onde um governo reacionário está queimando os ranchos dos camponeses.   O que se passa no estado da Guanabara é uma prova dessa ameaça, pois a Guanabara é governada por um energúmeno.  Tanto isso é verdade que o próprio presidente da República, para falar em praça pública, precisou mobilizar as valorosas Forças Armadas.

Não podemos continuar nesta situação.  O povo está exigindo uma saída.  Mas o povo olha para um dos poderes da República, que é o Congresso Nacional, e ele diz NÃO, porque é um poder controlado por uma maioria de latifundiários, reacionários, privilegiados e de ibadianos.  É um Congresso que não dará nada mais ao povo brasileiro.  O atual Congresso não mais se identifica com as aspirações do nosso povo.  A verdade é que, como está, a situação não pode continuar.  E aqui vai a palavra de quem deseja apenas uma saída  para o trágico impasse a que chegamos.  A palavra de quem apenas quer ver o país livre da espoliação internacional como está escrito na CartaTestamento de Getúlio Vargas.
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E o Executivo? Os poderes da República, até agora, com suas perplexidades, sua
inoperância e seus antagonismos, não decidem.  Por que não conferir a decisão ao povo brasileiro?  O povo é a fonte de todo poder.  Portanto, a única saída pacífica é fazer com que a decisão volte ao povo através de uma Constituinte, com a eleição de  um congresso popular, de que participem os trabalhadores, os camponeses, os sargentos e oficiais nacionalistas, homens públicos autênticos, e do qual sejam eliminadas as velhas raposas da política tradicional.

Dirão que isto é ilegal.  Dirão que isto é subversivo.  Dirão que isto é inconstitucional.  Por que, então, não resolvem a dúvida através de um plebiscito?

Verão que o povo votará pela derrogação do atual Congresso.  

Dirão que isso é continuísmo. Mas já ouvi pessoalmente do presidente da República a sua palavra assegurando que, se fosse decidida nesse país a realização de eleições para uma Constituinte, sem a participação dos grupos econômicos e da imprensa alienada, mas com o voto dos analfabetos, dos soldados e cabos, e com uma imprensa democratizada, o presidente encerraria o seu mandato.

A partir destes dois atos – assinatura do decreto da SUPRA e do que encampa as refinarias particulares – desencadear-se-á, por esse país, a violência. Devemos, pois, organizar-nos para defendermos nossos direitos.  Não aceitaremos qualquer golpe, venha ele de onde vier.  O problema é de mais liberdade para o povo, pois quanto mais liberdade o povo tiver maior supremacia exercerá sobre as minorias dominantes e reacionárias que se associaram ao processo de espoliação de nosso país. O nosso caminho é pacífico, mas saberemos responder à violência com a violência.  

O nosso presidente que se decida a caminhar conosco e terá o povo ao seu lado.  Quem tem o povo ao seu lado nada tem a temer.

Dezessete dias depois os capachos do imperialismo americano, sob as lideranças histéricas e conservadoras de Carlos Lacerda UDN (governador do Estado da Guanabara), de deputados do PSD, dos governadores Ademar de Barros (São Paulo), Magalhães Pintos (Minas Gerais) e Ildo Meneghetti (Rio Grande do Sul), iniciariam o golpe militar, através do general Olímpio Mourão Filho, o auto-denominado “Vaca Fardada” , que derrubaria Jango do poder na madrugada de 2 de abril, inaugurando o Brasil da pobreza extrema, da corrupção escancarada e assumida e da deformação ideológica e mental do povo sob a influência da mídia eletrônica, que vivemos até nossos dias, hoje, ironicamente sob a direção de uma ex-guerrilheira que se opunha à ditadura entreguista e fascista então estabelecida, a Presidente Dilma Rouseff.

Ubirajara Passos

 

 

Dilma Rousseff não é comunista!


Não pretendo discutir neste post os detalhes da militância da minha “ex-companheira” de partido (PDT, em que também já não milito, ainda que continue filiado) Dilma na guerrilha da resistência socialista à ditadura militar fascista inaugurada em primeiro de abril de 1964. Pouco importa se sua atuação na POLOP (política operária), COLINA (Comando Libertador Nacional) ou VAR-PALMARES (Vanguarda Armada Revolucionária PALMARES), ou outra eventual organização clandestina de que agora não me lembro, foi de planejamento, atuação física concreta ou simples discussão e apoio logístico. Afinal os qualificativos de “terrorista”, “assaltante de banco” ou “assassina sanguinária” com que a direita concorrente (“democratas” e “tucanos”) a tem brindado, nada mais são do que a reprodução tosca e ridícula das acusações que a mais torpe e cruel das ditaduras que o Brasil já conheceu fazia aos legítimos defensores, de armas na mão, da dignidade da massa do povo brasileiro, fossem eles comunistas, nacionalistas ou trabalhistas, no auge do regime militar.

Na tentativa de espantar o eleitorado com a caracterização da “comunista comedora de criancinhas que mata velho pra fazer sabão” seus adversários infelizmente estão errando feio a estratégia e embarcando na canoa de marketing mais furada possível, que talvez não convença nem eventuais octagenários saudosos de Plínio Salgado (o fürehr tupiniquim, líder máximo da versão brasileira do nazismo, o “integralismo”).

Pois se há alguma coisa que Dilma Roussef não é, desde que abandonou o Partido Democrático Trabalhista, quando este rompeu com o governador gaúcho petista Olívio Dutra, na virada do século, migrando para o PT (a fim de conservar seu cargo no secretariado) é justamente comunista.

Primeiro porque o PT, conforme nos foi definitivamente revelado por sua prática depois de sua ascensão ao poder federal em 2003, sequer pertence realmente às hostes do “fascismo de esquerda” (seja ele stalinista, trotskysta, maoísta ou de qualquer outra escola leninista minoritária), mas é neo-fascismo puro e simples, em que os métodos tradicionais de domínio autoritário (partido único e incentivo ao conservadorismo religioso místico-cristão) foram apenas modernizados e adaptados aos interesses e carências do patriciado político pequeno-burguês e do proletariado “lumpen” (a massa dos trabalhadores em estado completo de miséira). No governo de Lula são bem mais eficazes, e permitem manter a fachada de regime democrático-constitucional, o uso do mensalão e do bolsa-esmola.

Segundo porque, ao contrário do que o próprio marketing político petista tenta fazer passar (enfatizando, de forma chorosa e glamourizada, por exemplo, as tendências esquerdistas da Dilma menininha do Jardim da Infância, que não sabia que uma cédula rasgada ao meio não vale, mas já “sabia dividir” e se compadecer dos pobres, dando ao guri esfarrapado metade rasgada de seu único dinheirinho), a senhorita Rousseff não é uma militante diferenciada do partido, participante do núcleo do poder, mas com intenções mais “avançadas” e vermelhas em relação a Dom Luís Inácio. Ela, depois de ter sido ministra das Minas e Energia, ocupava ultimamente justamente o cargo burocrático-administrativo chave do Palácio do Planalto, a chefia da Casa Civil, onde exercia, de fato, as funções de implementação institucional dos interesses da burguesia imperialista, seus gerentões no Brasil colonial, e da incipiente e dependente burguesia nacional associada. Pois o Inácio dos Nove Dedos, muito mais do que qualquer presidente da República, possui tarefas meramente decorativas, e cênico-mambembes, correspondentes ao seu semi-analfabetismo cultural histórico. Ou seja, Dilma é quem fazia andar, efetivamente,  com o seu afã diário a máquina do Poder Executivo em Brasília, e, como verdadeira “primeira-ministra” é ela a própria responsável pela miséria e condições indignas de vida e trabalho da maioria, mantidas pelo disfarce do assistencialismo safado e eleitoreiro.

Seu horrendo e “criminoso” passado guerrilheiro, ao contrário da desqualificação falaz tentada pela turma de José Serra e seus asseclas, é justamente a única coisa que poderia absolvê-la perante a massa dos trabalhadores brasileiros e preservar-lhe a dignidade política, se tivesse mantido coerência com ele na sua atuação constitucional e institucionalizada na última década. O fato de ter pertencido a organizações clandestinas de contestação da ditadura militar é justamente o que há de mais louvável e benéfico. Seu inconformismo juvenil e sua disposição de colocar em risco a própria vida em favor das classes oprimidas e contra o autoritarismo lhe renderam inclusive a prisão e a tortura (bem como ao seu marido, o ex-deputado brizolista gaúcho Carlos Araújo, que eu, assim como Dilma, admirava quando pertencíamos todos ao PDT) nos porões do funesto regime.

A Dilma dos anos 1960 e 1970 era, como tantos, mais um dos inconformados jovens latino-americanos a seguir o ímpeto rebelde e altruísta de Ernesto Che Guevara, e, se  seus pendores ainda fossem exatamente os mesmos, estaríamos salvos, porque a peonada que sua todo dia sem ver o resultado do seu trabalho, recebendo de volta o mau trato e a vida faminta e esfarrapada, teria como líder quem estivesse disposto a botar a mão na expropriação que lhe pratica todo dia a patronagem multinacional e brasileira, e revertê-la em favor do povo.

Mas a deusa da História parece que, especialmente no hemisfério situado ao sul da linha do Equador terrestre, é terrivelmente irônica. E assim os principais candidatos à presidência da República são hoje uma ex-guerrilheira comunista e o ex-Presidente da UNE (União Nacional dos Estudantes), que liderava a entidade rebelde pró-reformas de base (aliada dos trabalhistas, nacionalistas e socialistas, em favor da Reforma Agrária, Urbana, Universitária, a limitação de remessa de loucros ao estrangeiro, e outras que pavimentavam o avanço dos direitos populares e o estabelecimento do socialismo no Brasil) justamente às vésperas do golpe que derrubou João Goulart, em primeiro de abril de 1964. Teríamos tudo, caso qualquer um dos dois fosse eleito, para retomar a linha de defesa dos interesses nacionais e populares, e de combate ao imperialismo, ao latifúndio e à dominação burguesa, que foi rompida dramaticamente há 46 anos atrás! Mas ELA representa o neo-fascismo travestido de esquerda assistencialista, subserviente ao imperialismo americano e ELE a fração da direita política alijada da representação dos interesses majoritários da burguesia internacional, que necessita sobreviver (ocupando os cargos de confiança palacianos que garantam seus privilégios e comodidades) se fazendo alternativa no jogo da disputa de mentirinha!

Pobre Brasil! Ao invés do rebelde presidente da UNE e da rebeldíssima guerrilheira, pode ter certeza de que terá no poder, após as eleições de outubro, qualquer um dos dois ilustres canastrões dispostos a perpetuar sua condição de colônia econômica crivada de escravos assalariados sem condição nenhuma de vida caracterizável como de gente, seja sob o aspecto econômico, seja quanto ao conforto e dignidade mental, psicológica e cultural (burros de carga que somos, açoitados todo dia pelo mais cru e disfarçado assédio moral, que nos dá direito, dos escritórios às lavouras, tão somente a obedecer e nos prostrar em culto e honra das ordens e interesses patronais e da ideologia da mídia abobalhada e mediocrizante, que nos submete à hipnose de massas permanentemente).

Somente a revolução independente, vinda do âmago das cabeças pensantes do proletariado marginalizado poderá nos resgatar. Mas estes rebeldes ainda estão dispersos e, em boa parte,  desiludidos e a revolução ainda está muito distante!

Ubirajara Passos

AS DUAS GRANDES TRADIÇÕES IDEOLÓGICAS DO BRASIL MODERNO ANTE-LULIANO


Antes que o leitor desavisado me tome por analfabeto ou maluco, vou logo explicando: a expressão “ante-luliano” quer dizer exatamente anterior à Era Lula (não troquei, portanto, anti – de contra – por ante) e também pretende estabelecer uma certa ironia relacionada a ante-diluviano, já que, nos tempos do Inácio, passou uma verdadeira inundação sobre as antigas correntes ideológicas (ainda que formais) deste país, reduzindo praticamente todo mundo político à aceitação devota e embevecida do capitalismo fascista dito neo-liberal, tingido de demagógico assistencialismo, dirigido pelo Homem dos Nove Dedos e seus parlamentares mensaleiros.

Feita esta advertência, é necessário que se diga que este texto nasceu para preencher a necessidade de responder à provocação (no bom sentido político e intelectual) de um ilustrado leitor deste blog, postado na crônica  O Verdadeiro Hino Gaúcho, cuja natureza demanda bem mais que uma simples réplica no espaço destinado aos comentários.

O ilustre cidadão, após sanar uma meia-impropriedade que cometi, taxando o ex-governador Ildo Meneghetti, do PSD, de interventor da ditadura de 1964 (cuja retificação eu fiz acompanhar de algumas observações a respeito da atuação do político referido no golpe de estado do ano mencionado, e de seus maiores contendores de então, os herdeiros do trabalhismo de Getúlio Vargas, Jango e Brizola) me questiona sobre minha opinião a respeito da ditadura do Estado Novo (chefiada por Getúlio), procurando sutilmente colocar em contradição minhas convicções anarquistas (e o meu repúdio à ditadura militar de 1964-1985) com a admiração por um “ditador fascista” (o fundador do trabalhismo, Getúlio Vargas). E, não contente com isto apenas, cita farta bibliografia para provar que Getúlio, João Goulart e Leonel Brizola eram corruptos horríveis e sanguinários.

Carlos Lacerda, o Corvo: o pai e inspirador de todos os críticos histéricos e difamadores do trabalhismo

Carlos Lacerda, o Corvo: o pai e inspirador de todos os críticos histéricos e difamadores do trabalhismo

Eu poderia simplesmente responder que as acusações são típicas do corolário direitoso escabelado (aceito e seguido, inclusive, nos anos seguintes à “abertura” do ditador João Figueiredo  – 1979 – pelos liberais de meia-tigela do PMDB e pretensos radicais esquerdistas, de então, do Partido “dos Trabalhadores”), que procura combater e apagar da memória do povo brasileiro a única corrente concreta que defendeu, de alguma forma, os direitos do povão trabalhador do Brasil no período republicano, o trabalhismo, lançando sobre seus líderes maiores a difamação moralista e “infantil”, a fim de misturá-los na lama da corrupção secular fomentada e admitida pela direita colonialista, e transformar a própria História pretérita em um cenário tão indistinto e torpe quanto o da paz luliana pós 2003. Ou poderia caracterizar tais manifestações como típicas daquilo que o mestre Wilhelm Reich chama de “peste emocional”  (o ranço anti-prazer do autoritarismo sexual, familiar e quotidiano introjetado na maioria dos seres humanos nos últimos seis mil anos que eclodiu, como manifestação política concreta, na forma do fascismo do século passado).

Mas, ainda que legítima, esta contestação seria excessivamente reducionista e simplificadora. É preciso que se diga, portanto, em primeiro lugar, que infelizmente não li a maioria da bibliografia citada pelo meu ilustrado crítico, com exceção de “Minha Razão de Viver”, de Samuel Weiner, e da resposta de Rivadávia de Souza, “Botando os Pingos nos Is”. Em segundo lugar, embora seja praticamente um piá para conhecer de experiência própria todo o período abordado, afinal recém estou às vésperas de completar os meus 43 anos, vivi o suficiente já para não me pautar somente na literatura (até porque nunca fui um acadêmico, o que estaria em contradição com o meu anarquismo), mas na convivência, e no depoimento dos que os acompanharam, com os fatos in loco. Em terceiro lugar que, embora anarquista, como fica perfeitamente contextualizado neste blog, sou “heterodoxo”, tendo me envolvido, apesar de minhas convicções, no mundo da política do Estado, e tendo vindo da formação socialista de matiz brizolista e trabalhista, o que não me faz um defensor fanático e acrítico de tal corrente ou de Brizola.

Lula e Sarney abraçados: a receita perfeita da ditadura lacaia do imperialismo para continuar o regime sob a fantasia da Constituição democrática

Lula e Sarney abraçados: a receita perfeita da ditadura lacaia do imperialismo para continuar o regime sob a fantasia da Constituição democrática

Feita esta série de advertências chatas e rançosas, vamos ao tema do texto propriamente dito.  Não sem antes mencionar que a corrupção é um fenômeno nascido praticamente no descobrimento do Brasil, que perpassou “todos” os governos do Brasil desde então, em maior ou menor grau, com ou sem conhecimento de seus chefes maiores. Muito embora Getúlio tenha morrido pobre, proprietário apenas de uma fazendinha na Região das Missões, no Rio Grande do Sul; Jango jamais tenha emitido decretos secretos para empregar apaniguados, como o aliado-mor de Lula, e ex-presidente da República, José Sarney; e, de Brizola, com todas as investigações exaustivas persecutórias da ditadura militar, não se tenha constatado o menor deslize. É interessante citar, inclusive, entrevista profética de Getúlio Vargas, antes de se eleger presidente da República, em 1950, reproduzida pelo intelectual, honesto e de mente absolutamente livre, Darcy Ribeiro em “Aos Trancos e Barrancos – como o Brasil deu no que deu”, na qual o velho Gegê dizia que seus opositores (defensores dos interesses do imperialismo americano) tratariam de apeá-lo do poder alegando justamente uma profunda rede de corrupção que eles próprios haviam se encarregado de estabelecer e aprofundar desde a República pré-revolução de 1930.

E o fato é que, da revolução de 1930 (liderada por Getúlio Vargas) e dos movimentos que antecederam (como as revoltas tenentistas, do 18 de julho paulista à coluna Prestes), nos anos 1920, derivaram as duas principais correntes políticas que tem dirigido este país, com orientações diametralmente opostas, embora ambas tenham resultado em ditaduras.

A corrente trabalhista surgiu justamente com as atitudes concretas tomadas por Getúlio como ditador durante o Estado Novo (1937-1945), quando se estabeleceu, de fato e de direito, pela primeira vez no Brasil o mínimo de direitos à massa de trabahadores, que a permita viver como gente. Das regulamentações anteriores e do decreto-lei que promulgou a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) surgiram direitos como o salário mínimo (hoje infelizmente reduzido a nada), as horas-extras, as férias, os adicionais por insalubridade e periculosidade, e outros tantos que a incipiente burguesia e os velhos latifundiários deste país sequer cogitavam ceder aos seus peões. É verdade que o Estado Novo foi um regime fascista e, resultado da óbvia repressão aos opositores, inclusive aos comunistas de Prestes, ocorreram atos bárbaros como a entrega de Olga Benário grávida nas mãos da polícia nazista de Hitler, mas colaboradores como Filinto Muller (o responsável pelo ato), assim como o tenente de 30 Juarez Távora, foram justamente os que vieram a formar a segunda corrente, que resultou na outra ditadura, a inaugurada pelo golpe de 1º de abril de 1964, e que é a corrente colonialista.

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CLT: o grande avanço social da corrente nacionalista


Não é casualidade nenhuma que oficiais como Castelo Branco e Cordeiro de Farias (que atuaram na Frente Expedicionária Brasileira, nos campos da Itália na segunda mundial, sob o comando e em estrita colaboração com o imperialismo americano) tenham sido justamente os protagonistas do golpe de 64 e da ditadura dele resultante, que reduziu o Brasil definitivamente à situação de colônia informal de americanos, europeus, japoneses e grupos econômicos transnacionais em geral.

Se na ditadura de Getúlio se estabeleceu a proteção legal do Estado à classe trabalhadora, na ditadura de Castelo Branco e seus sucessores tais direitos começaram a ser suprimidos (exemplo clássico é a estabilidade no emprego aos dez anos de firma, revogada na prática com a criação do FGTS). E se na ditadura de Getúlio deram-se os primeiros passos rumo à independência econômica e tecnológica do Brasil, com a instalação da indústria metalúrgica em Volta Redonda, na ditadura dos generais gorilas submissos ao imperialismo “ocidental” se consolidou a entrega da economia nacional aos grandes grupos econômicos internacionais.

Findo o Estado Novo (com a deposição de Getúlio pelos candidatos a presidente da república de direita, Eurico Dutra – PSD-  e Eduardo Gomes – UDN, ambos altos oficiais militares) surgem como representantes clássicos de tais correntes o PTB (Partido Trabalhista Brasileiro, do qual eram membros Jango e Brizola) e a UDN (União “Democrática” Nacional, que de democrática e nacionalista não tinha nada), que, juntamente com o PSD (Partido “Social Democrata”), representava os interesses das elites latifundiárias e dos apaniguados do imperialismo yankee. Getúlio, no princípio, liderava tanto PSD (formado pelos inicialmente pelos quadros burocráticas de sustentação da ditadura de 1937-1945, próximos ao coronelismo latifundiário das diferentes regiões) quanto o PTB. Mas, após ser eleito, pelo voto popular, Presidente da República em 1950, assumirá, de vez, o PTB como seu partido, tomando medidas que afrontavam diametralmente os interesses de oligarcas nacionais e grupos internacionais, como a duplicação do salário mínimo (sugerida pelo ministro do Trabalho João Goulart) e a criação da Petrobrás. Tais atitudes determinaram a campanha difamatória movida pelo principal político histérico da UDN (o ex-comunista Carlos Lacerda), que resultou na crise do pretenso atentado a Lacerda (que teria sido, segundo os lacerdistas, coordenado pelo chefe da guarda pessoal de Getúlio, o qüera Gregório Fortunato) e no suicídio de Getúlio Vargas. Por trás da gritaria udenista estavam, na verdade, os interesses de empresários e governo dos Estados Unidos.

João Goulart no comício da Central do Brasil (13 de março de 1964)

João Goulart no comício da Central do Brasil (13 de março de 1964)

Eleito Vice-Presidente, sucessivamente, nos governos de Juscelino Kubitcheck de Oliveira (mineiro do PSD, com o qual o PTB estabeleceria aliança estratégica até o início dos anos 60) e Jânio Quadros (que fazia oposição a Juscelino, Jango só se elege porque o vice-presidente na época não concorria em chapa casada com o presidente, se votava para ambos os cargos em separado), João Goulart assume a Presidência da República em setembro de 1961, após a renúncia de Jânio no mês anterior, graças à resistência de Leonel Brizola ao golpe dos militares ligados à corrente colonialista/udenista (Odílio Denis e Orlando Geisel, entre outros), que pretendiam impedir sua posse sob o pretexto de que era “comunista”, a fim de garantir os interesses da burguesia nacional e seus associados pró-yankee contra o possível governo dos trabalhistas/nacionalistas. Uma manobra dos partidos clássicos da direita (PSD e UDN principalmente) impõe o regime parlamentarista (contra o qual Brizola se revolta, e por isto não vai à posse), a fim de limitar o poder efetivo de Jango na Presidência.

Em 1963, entretanto, em plebiscito que resulta da ampla mobilização das forças nacionalistas e de esquerda (de que um dos grandes líderes era Leonel Brizola), Jango tem devolvidos plenamente seus poderes de chefe do Executivo do país. Daí até o golpe militar que o derrubou, a guerra ideológica explícita entre os defensores da reforma agrária, da limitação da remessa de lucros de empresas multinacionais ao estrangeiro, da reforma universitária (entre outros instrumentos de construção de um Brasil independente e com condições mínimas de vida digna para a peonada) e os seus opositores, defensores do latifúndio, do imperialismo econômico internacional e do ranço autoritário tipicamente fascista se radicaliza. Assim é que fazendeirões tradicionais do PSD e “modernos” representantes da pequena burguesia urbanizada da UDN se abraçarão aos prantos pelo temor das reformas defendidas por João Goulart, pelo PTB e pelos movimentos sociais de esquerda, articulando o golpe que assassinaria de vez os interesses nacionais e operários.

Costa e Silva, Geisel e Castelo (em trejaes civis de presidente

Costa e Silva, Geisel e Castelo (em trajes civis de “presidente”

Finda a ditadura militar, que torturaria e assassinaria centenas de opositores (esquerdistas ou meros liberais democratas) nos porões da repressão, impondo o monopólio do capital e a cultura americana (de que derivaria a miséria, a violência e narcotráfico que campeiam no Brasil de hoje), Sarney (um velho coronel feitor da ditadura na sua “fazenda”, o Maranhão), Collor (filhote das elites agrárias alagoanas sustentadoras do regime militar) e Fernando Henrique Cardoso (opositor formal da ditadura, cooptado e integrado aos planos de sucessão que resultaram no seu governo e de Lula, tramados pela inteligência gorila em meados dos anos 1970) tratarão de dar continuidade ao regime formalmente revogado, perpetuando no “Estado de Direito Constitucional” o que antes se impunha pela força do arbítrio.

Nos anos pós-1985, com exceção de pequenos partidos da esquerda real, como o PSTU e o PC do B, Leonel Brizola e o PDT serão os únicos representantes da corrente popular-nacionalista derrotada em 1964, até se dissolver (após a morte de Brizola) na geléia geral do governo do Inácio, que criou o Brasil do partido único informal, o próprio Lula e seus aliados felinos de todas as pelagens, sob cuja fantasia socialisteira se pratica a maior corrupção, a mais escancarada inexistência de direitos sociais, a plena submissão aos interesses estrangeiros, e, ultimamente, a mais soturna e informal repressão ditatorial, jogando no lixo a liberdade de expressão, sob o pretexto da defesa da honra pessoal e da imagem, justamente, dos maiores lacaios corruptos pró-colonialismo.

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A demagogia petista corrompeu até os herdeiros do trabalhismo

 

Ubirajara Passos

 

O “anarquista” Darcy Ribeiro


Na crônica “O Vinho do Carlão”, há quase dois anos (em abril de 2006, quando eu recém iniciava este blog, ainda no provedor do Terra) eu citava, a respeito do protagonista da narrativa (o Carlão), que havia me mandado “uma mensagem em português todo empolado para este blog” e arrematava afirmando: “comentarei isto outro dia”. E desde então tenho deixado os leitores da época (ou que acessaram o texto posteriormente), e mantém a freqüência ao blog até hoje, na mais absoluta ignorância e frustração.

Mas, conforme fiz, na última semana, com a questão do DDA, cumpro hoje (com vinte e um meses de atraso) a promessa então feita – se é alguém ainda se lembra dela (o Carlão provavelmente lembrará). Pois a mensagem do sujeito, postada no primeiro texto do blog, o poema “Esconjuro Ateu e Libertário”, era assinada sob o pseudônimo de “Fernando Sabino” (o cronista preferido do Carlão, que como eu, ficou conhecendo seus textos na antiga coleção didática “Para Gostar de Ler”, da Editora Ática, lá nos tempos do “1º grau”, no final dos anos 1970). E lascava; “Texto de excelente construção léxica, demonstrando que o autor é um anarquista de fazer inveja a Darci Ribeiro”.

Nada de mais quanto ao irônico elogio sobre a “construção léxica”. O único problema é que Darcy Ribeiro (cuja última entrevista, pouco antes de sua morte, em janeiro de 1997, Carlão assistiu aqui em casa, em vídeo-cassete que gravei e ainda conservo comigo), tecnicamente falando, jamais foi anarquista. Ao contrário, antes de se integrar ao trabalhismo , após o suicídio de Getúlio Vargas, em 1954, e se tornar um dos fundadores do futuro PDT de Leonel Brizola, e signatários da “Carta de Lisboa” (o encontro de trabalhistas exilados e residentes no Brasil), em 1979, foi militante, nos anos 1930 e 1940, do “estalinista” Partido Comunista Brasileiro, de Luís Carlos Prestes. Mas, assim como Brizola, possuía traços bastante próximos de um libertário e, se não advogava a liberdade absoluta ou a “sociedade sem estado”, encarnou vida a fora a figura de um sujeito radicalmente livre, seja como pensador e cientista social, seja como político. Ele e Brizola foram, desde os meus quatorze anos (lá em 1979), as figuras que me influenciaram mais profundamente.

Darcy e Brizola

Leonel Brizola foi o grande arquétipo político da minha vida, mesmo que eu tenha me tornado anarquista. Ele encarnava a coragem e a segurança absolutos e, sobretudo, o radicalismo (aquela profunda crença no ideal, aquela energia interior de quem realmente quer mudar as coisas), e uma autenticidade a toda prova, que não dobrava a espinha aos críticos intelectualóides da esquerda “caricata”, nem às distorções difamadoras da mídia..

E em suas atitudes se podia constatar um profundo e real compromisso com o sofrimento do brasileiro comum que rala todo dia, bem como a mais incoercível oposição ao imperialismo capitalista que submete um dos mais ricos países do mundo (o Brasil) à situação de colônia miserabilizada (em que 90% da população sequer tem acesso a um computador ou a Internet, no fundo estou aqui escrevendo para a “pequena-burguesia”, não no sentido ideológico, mas daqueles “remediados” financeiramente como eu, cujo salário permite ter um computador e uma linha telefônica em casa).

Mas, se Brizola era a verdadeira encarnação do revolucionário sem armas, nem dogmas (ainda que socialista ou “social-democrata”, nunca foi “marxista” e não andava por aí recitando as teses do “Capital”, nem enquadrando os fatos na dialética do materialismo histórico, como muitos burocratas comunistas, mas vivia a prática revolucionária nas atitudes), uma espécie de “Super-Homem” nietzchiano da esquerda, nunca me inspirou a menor intimidade pessoal.Darcy na praia de Copabana, celebrando a vida
Com Darcy foi diferente. Embora nunca o tenha visto de perto (ao contrário de Brizola, que, em agosto de 1995, cheguei a seguir, da Carta Testamento na praça da Alfândega, em Porto Alegre, até a então sede do Banco Meridional,hoje Santander, quando embarcou no carro, sem coragem de abordá-lo, tímido sindicalista que eu era então), desde a primeira entrevista sua na televisão tive a impressão de estar diante de um camarada de pensamento e de buteco.

Darcy na praia de Copabana, celebrando a vida

E o pensamento e as tiradas do Darcy eu os conheci não através da fama distorcida de mero planejador de CIEPs (quando Vice-governador fluminense e Secretário da Educação de Brizola) ou “intelectual importante” (inclusive membro da Academia Brasileira de Letras) das cartilhas partidárias do PDT. De Darcy li os principais livros (O Processo Civilizatório, O Povo Brasileiro), assim como seus poemas (Eros e Tanatos, editado postumamente), o romance Maíra, o recordatário do Brasil no século XX “Aos Trancos e Barrancos – como o Brasil deu no que deu”, as antologias de ensaios “Gentidades” e o “Brasil como Problema”, além, é claro de sua auto-biografia, fantástica, as “Confissões”. E além dos livros, sempre me impressionaram suas entrevistas na TV (especialmente as concedidas a Roberto D’Ávila, como a última de sua vida) e eventuais participações em documentários.

Darcy com os  ndios do Planalto Central

E se Brizola era o que havia de mais próximo dos sentimentos do povinho comum, Darcy era o intelectual mais gaiato, menos hermético, mais entusiasmado, crítico, humano e sincero possível da nossa “esquerda” pensante. Ainda mais que não era intelectual de gabinete. Como etnólogo viveu por dez anos entre os índios do Xingu (cuja criação do “Parque Nacional” foi obra de sua pressão, dos irmãos Vilas Boas e de Noel Nutels sobre Getúlio Vargas). E como educador esteve à frente da criação da Universidade de Brasília. Sem falar nos cargos políticos exercidos em momentos capitais da história brasileira, como Chefe da Casa Civil do Presidente da República João Goulart, cargo que ocupava quando do golpe fascista de 1.º de abril de 1964, o que lhe valeu o exílio por boa parte do período autoritário.

Mas o que mais impressionava em Darcy Ribeiro, além do humor gaiato e inteligente, bem distante da “seriedade intelectual” dos burocratas do pensamento (na última entrevista faz uma entusiasmada recomendação, com uma felicidade de moça debutante, aos telespectadores que tivessem dor, como ele vitimado pelo câncer, para que “tome morfina meu irmão, morfina é muito bom”), era seu completo desapego do “bom senso” e sua ousadia sem espetacularismos, que o fez voltar ao Brasil (ele, figura proeminente, e tida por ideologicamente perigosa, do governo trabalhista deposto), com a cara e a coragem, em 1968, época dos protestos estudantis e do AI-5, em plena ditadura fascista raivosa e espumante.

E esta mesma ousadia “irresponsável”, moleque é que o fez fugir do hospital para viver plenamente e escrever seus últimos livros (como o Povo Brasileiro e as Confissões). Com certeza foi este jeitão irrequieto, absolutamente DDA, que saltava aos olhos no menor parágrafo de texto, a absoluta autenticidade e o humor de suas manifestações que fez com que o Carlão o identificasse, não de todo errado, como um “anarquista”, que, se não o foi na teoria e militância, o foi no exercício da própria vida: uma alma absolutamente livre, humana, defensora absoluta do direito a uma vida digna de gente para cada ser humano, e sobretudo incansável e entusiasmada.

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Darcy nunca reinou e ruminou sobre as nossas desgraças nacionais e aDarcy, o utopista sem fuzil frustração da revolução socialista, mas sempre manteve acesa a chama da construção de um Brasil digno para os brasileiros, não como mera esperança intelectualóide, mas na atividade prática. Foi o nosso Che Guevara embalado em samba e sem fuzil, melhor e mais tolerante, mas não menos indignado e determinado, por que batizado nas águas indígenas e africanas.

Na introdução de “Aos Trancos e Barrancos” (escrito em 1985), os dois últimos parágrafos dão uma idéia de sua ação e pensamento :

“Desejo apenas que este livro faça algum jovem pensar que é tempo de tomar este país nas mãos. Para construir aqui a beleza de nação que podemos ser. Havemos de ser! Para tanto, é indispensável impedir o passado de construir o futuro: quero dizer, tirar da gente que nos regeu e infelicitou através dos séculos o poder de continuar conformando-deformando nosso destino.

É hora de lavar os olhos para ver nossa realidade. é hora de passar o Brasil a limpo para que o povão tenha vez. No dia em que todo brasileiro comer todo dia, quando toda criança tiver um primeiro grau completo, quando cada homem e mulher encontrar um emprego estável em que possa progredir, se edificará aqui a civilização mais bela deste mundo. É tão fácil: estendendo os braços no tempo, sinto na ponta dos dedos esta utopiazinha nossa se realizando.

Ponha o ombro no andor, companheiro, faça força você também. Se não cuidarmos deste país que é nosso, os gerentes das multi e seus servidores e sequazes civis e militares continuarão forçando o Brasil a existir para eles.”

Para terminar este panegírico, que vai ficando extenso e pouco diz do elogiado (nem sequer citei o que seria o maior “orgulho institucional” dos burocratas do PDT: o fato de Darcy ter sido senador do partido, pelo Rio de Janeiro, nos últimos anos de vida), reproduzo abaixo o prólogo das Confissões (1996), que neles o leitor “sentirá”, mais do que constatará racionalmente, a essência do que era o vulcão Darcy Ribeiro:

“Escrevi estas Confissões urgido por duas lanças. Meu medo-pânico de morrer antes de dizer a que vim. Meu medo ainda maior de que sobreviessem as dores terminais e as drogas heróicas trazendo com elas as bobeiras do barato. Bobo não sabe de nada. Não se lembra de nada.Tinha que escrever ligeiro, ao correr da pena. Hoje, o medo é menor, e a aflição também. Melhorei. Vou durar mais do que pensava.

Se nada de irremediável suceder, terei tempo para revisões. Não ouso pensar que me reste vida para escrever mais um livro. Nem preciso, já escrevi livros demais. Mas admito que tirar mais suco de mim nesta porta terminal é o que quisera. Impossível?

Este livro meu, ao contrário dos outros todos, cheios de datas e precisões, é um mero reconto espontâneo. Recapitulo aqui, como me vem à cabeça, o que me sucedeu pela vida afora, desde o começo, sob o olhar de Fininha, até agora, sozinho neste mundo.

Muito relato será, talvez, equivocado em alguma coisa. Acho melhor que seja assim, para que meu retrato do que fui e sou me saia tal como me lembro. Neguei-me, por isso, a castigar o texto com revisões críticas e pesquisas. Isso é tarefa de biógrafo. Se eu tiver algum, ele que se vire, sem me querer mal por isso.

Quero muito que estas minhas Confissões comovam. Para isso asDarcy nos últimos meses de vida escrevi, dia a dia, recordando meus dias. Sem nada tirar por vexame ou mesquinhez nem nada acrescentar por tolo orgulho. Meu propósito, nesta recapitulação, era saber e sentir como é que cheguei a ser o que sou.

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Quero também que sejam compreendidas. Não por todos, seria demasia. mas por aqueles poucos que viveram vidas paralelas e delas deram ou querem dar notícia. Nos confessamos é uns aos outros, os de nossa iguala, não aos que não tiveram nem terão vidas de viver, nem de confessar. Menos ainda aos pródigos de palavras de fineza, cortesãos.

Quero inclusive o leitor anônimo, que ainda não viveu nem deu fala. Mas tem coração que pulsa, compassado com o meu. Talvez até me ache engraçado, se alegre e ria de mim, se tiver peito. Não me quer julgar, mas entender, conviver.

Não quero mesmo é o leitor adverso, que confunde sua vida com a minha, exigindo de mim recordos amorosos e gentis, apagando os dolorosos, conforme sua pobre noção do bem e da dignidade. O preço da vida se paga é vivendo, impávido, e recordando fiel o que dela foi dor ou contentamento.

Termino esta minha vida exausto de viver, mas querendo mais vida, mais amor, mais saber, mais travessuras. A você que fica aí, inútil, vivendo vida insossa, só digo: ‘Coragem! Mais vale errar, se arrebentando, do que poupar-se para nada. O único clamor da vida é por mais vida bem vivida. Essa é, aqui e agora, a nossa parte. Depois, seremos matéria cósmica, sem memórias de virtudes ou de gozos. Apagados, minerais. Para sempre mortos’.”

Peço paciência aos leitores que preferem textos mais ágeis e concisos, mas o resgate deste meu “guru” (nos trechos reproduzidos devem ter percebido algo da influência no que escrevo), há muito estava planejado, era necessário, e casualmente se fez no mês em que se completam os dez anos da sua morte (ocorrida em 17 de janeiro de 1997).

Ubirajara Passos

BRIZOLA E A “CAMPANHA DA LEGALIDADE”


Na sucessão de Juscelino Kubitschek, em 1960, finalmente a trupe defensora do imperialismo yankee no Brasil, capitaneada pela conservadora e descabeladamente moralista UDN (União “Democrática Nacional”), conseguira chegar ao poder federal, elegendo para a presidência da República o demagogo puritano arquetípico da política brasileira: o folclórico, volúvel e bêbado Jânio Quadros (que inspiraria criaturas pretensamente anti-políticas e anti-corrupção como Fernando Collor).

Mas levava uma pedra no sapato. Como não havia vinculação, mas eleições separadas, na época, para os cargos de presidente e vice, se elegera Vice-Presidente da República o Presidente Nacional do PTB, João Goulart, que fora ministro do Trabalho de Getúlio e Vice-Presidente de Juscelino, e que liderava os defensores da classe trabalhadora e do nacionalismo no Brasil (a esquerda legal da época).

Mas o próprio Jânio (cuja inconstância emocional levara a renunciar e retomar a candidatura a Presidente diversas vezes, antes de eleito), se revelou “uma pedra no meio do caminho” para os udenistas e defensores da direita imperialista. Embora adotando internamente uma política econômica conservadora, Jânio, em plena fase áurea da guerra fria entre americanos e russos, reataria relações diplomáticas com a União Soviética e condecoraria “Che Guevara” com a “Ordem do Cruzeiro do Sul (a principal comenda da República brasileira).

Tais atos e  a atitude incontrolável, que impedia a UDN de dar as cartas na Presidência da República, alarmaram seus aliados e levaram o histérico Carlos Lacerda (que só contentaria sua sanha com o golpe de 1.º de abril de 1964, para ser depois perseguido pelos próprios generais “gorilas” que ajudara a colocar no poder), a desferir contra Jânio a mesma oposição virulenta que já fizera a Getúlio,  Juscelino e Jango.

Em 24 de agosto de 1961, casualmente no 7.º aniversário do suicídio de Getúlio, Lacerda (então governador do novo Estado da Guanabara, composto pela Cidade do Rio de Janeiro, após a transferência do Distrito Federal para Brasília) iria para a televisão denunciar que Jânio o convidara (através do Ministro da Justiça, Pedroso Horta) para desferir um golpe de estado e instaurar um governo autoritário.

Jânio, no dia seguinte, renunciaria à Presidência da República.  Não se sabe se por estar apavorado com as repercussões do discurso de Lacerda, ou por alimentar a esperança de que (diante da perspectiva de posse de seu vice,  enviado em missão diplomática à China Comunista) o Congresso Nacional recusasse a renúncia e lhe concedesse poderes ditatoriais.

Os ministros militares (da mesma turma que deu o golpe em 1964) se oporiam, então, à posse de Jango.

Através do presidente da Câmara do Deputados, o fantoche Ranieri Mazzili, presidente da república interino, divulgariam nota afirmando não ser “conveniente” o retorno de João Goulart ao Brasil.  E determinariam a prisão do Marechal Lott (ex-ministro da Guerra, que garantira a posse de Juscelino contra o golpe udenista em 1955 e fora candidato à presidência pela aliança PSD-PTB EM 1960) por ler manifesto favorável à posse de Jango, em sessão extraordinária do Congresso, no domingo, dia 27 de agosto.

O Brasil estava então virtualmente sob o governo da “junta militar” e em estado de sítio. Leonel Brizola, governador trabalhista do Rio Grande do Sul, desde 1959, diante da renúncia de Jânio e do veto a João Goulart, transformaria o Palácio Piratini (em cujos porões foi instalado o estúdio da Rádio Guaíba, a única que não havia sido silenciada pelos golpistas, e na cobertura foi instalado ninho de metralhadora) e Porto Alegre na sede da “campanha da legalidade”. Assim se denominou o movimento de resistência que garantiria a posse constitucional de Jango, ainda que o Congresso viesse a impor (em manobra conservadora da qual Tancredo fora articulador e beneficiário inicial, como primeiro-ministro que foi nomeado) o regime parlamentarista (revogado em plebiscito, em janeiro de 1963).

No auge do enfrentamento político (que não chegou ao disparo de balas) seria interceptado telegrama do golpista Odilio Denys, ministro da Guerra, determinando o bombardeamento do Palácio Piratini.

Foi então que Brizola proferiu, às 11 horas do dia 28 de agosto, pela rede da Legalidade, para o Rio Grande do Sul e o Brasil, o discurso que segue:

” Peço a vossa atenção para as comunicações que vou fazer. Muita atenção. Atenção, povo de Porto alegre! Atenção Rio Grande do Sul! Atenção Brasil! Atenção meus patrícios, democratas e independentes, atenção para essas minhas palavras!

Em primeiro lugar, nenhuma escola deve funcionar em Porto Alegre. Fechem todas as escolas. Se alguma estiver aberta, fechem e mandem as crianças para junto de seus pais. Tudo em ordem. Tudo em calma. Tudo com serenidade e frieza. Mas mandem as crianças para casa.

Quanto ao trabalho, é uma iniciativa que cada um deve tomar, de acordo com o que julgar conveniente. Quanto às repartições públicas Estaduais, nada há de anormal. Os serviços públicos terão o seu início normal e os funcionários devem comparecer como habitualmente, muito embora o Estado tolerará qualquer falta que, por ventura, se verificar no dia de hoje.

Hoje, nesta minha alocução, tenho os fatos graves a revelar. O Palácio Piratini, meus patrícios, está aqui transformado em uma cidadela que há de ser heróica, uma cidadela da liberdade, dos direitos humanos, uma cidadela da civilização, da ordem jurídica, uma cidadela contra a violência, contra o absolutismo, contra os atos dos senhores, dos prepotentes. No Palácio Piratini, além da minha família e de alguns servidores civis e militares do meu Gabinete, há um número bastante apreciável, mas apenas daqueles que nós julgamos indispensáveis ao funcionamento dos serviços da sede do Governo. Mas todos os que aqui se encontram, estão de livre e espontânea vontade, como também, grande número de amigos que aqui passou a noite conosco e retirou-se hoje, por nossa imposição.

Aqui se encontram os contingentes que julgamos necessários, da Gloriosa Brigada Militar – O Regimento Bento Gonçalves e outras forças. Reunimos aqui o armamento de que dispúnhamos. Não é muito, mas também não é pouco para aqui ficarmos preocupados frente aos acontecimentos. Queria que os meus patrícios do Rio Grande e toda a população de Porto Alegre, todos os meus conterrâneos do Brasil e todos os soldados da minha terra querida pudessem ver com seus olhos o espetáculo que se oferece. Aqui nos encontramos e falamos por esta estação de rádio que foi requisitada para o serviço de comunicação, a fim de manter a população informada e, com isso, auxiliar à paz e à manutenção da ordem. Falamos aqui do Serviço de Imprensa. Estamos rodeados por jornalistas que teimam, também, em não se retirar, pedindo armas e elementos necessários para que cada um tenha oportunidade de ser também um voluntário, em defesa da Legalidade.

Esta é a situação! Fatos os mais sérios quero levar ao conhecimento dos meus patrícios de todo o País, da América Latina e de todo o mundo. Primeiro: ao me sentar aqui, vindo diretamente da residência, onde me encontrava com minha família, acabava de receber a comunicação de que o ilustre general Machado Lopes, soldado do qual tenho a melhor impressão, me solicitou audiência para um entendimento. Já transmiti, aqui mesmo, antes de iniciar minha palestra, que logo a seguir receberei S. Exa. com muito prazer, porque a discussão e o exame dos problemas é o meio que os homens civilizados utilizam para solucionar os problemas e as crises. Mas pode ser que esta palestra não signifique uma simples visita de amigo. Que esta palestra não seja uma aliança entre o Poder Militar e o Poder Civil, para a defesa da ordem constitucional, do direito e da paz, como se impõe neste momento, como defesa do povo, dos que trabalham e dos que produzem, dos estudantes e dos professores, dos juízes e dos agricultores, da família. Todos, até as nossas crianças, desejam que o Poder Poder Militar e o Poder Civil se identifiquem nesta hora para vivermos na Legalidade. Pode significar, também, uma comunicação ao Governo do Estado da sua deposição. Quero vos dizer que será possível que eu não tenha oportunidade de falar-vos mais, que eu, nem deste Serviço, possa me dirigir mais, comunicando esclarecimentos à população. Porque é natural que, se ocorrer a eventualidade do ultimato, ocorrerão, também, conseqüências muito sérias. Porque nós não nos submeteremos a nenhum golpe. A nenhuma resolução arbitrária. Não pretendemos nos submeter. Que nos esmaguem! Que nos destruam! Que nos chacinem, neste Palácio! Chacinado estará o Brasil com a imposição de uma ditadura contra a vontade de seu povo. Esta rádio será silenciada tanto aqui como nos transmissores. O certo, porém, é que não será silenciada sem balas. Tanto aqui, como nos transmissores, estamos guardados por fortes contingentes da Brigada Militar.

DESTRUIÇÃO

Assim, meus amigos, meus conterrâneos e patrícios, ficarão sabendo porque esta rádio silenciou. Foi porque ela foi atingida pela destruição e porque isso ocorreu contra a nossa vontade. E quero vos dizer porque penso que chegamos a viver horas decisivas. Muita atenção, meus conterrâneos, para essa comunicação. Ontem à noite o sr. ministro da Guerra, marechal Odílio Denys, soldado no fim de sua carreira, com mais de 70 anos de idade e que está adotando decisões das mais graves, as mais desatinadas, declarou através do Repórter Esso que não concorda com a posse do sr. João Goulart, que não concorda com o que o Presidente Constitucional do Brasil exerça suas funções legais! Porque, diz ele numa argumentação pueril e inaceitável, isso significa uma opção entre comunismo ou não. Isto é pueril, meus conterrâneos! Isso é pueril, meus patrícios! Não nos encontramos neste dilema. Que vão essas ou aquelas doutrinas para onde quiserem. Não nos encontramos entre uma submissão à União Soviética ou aos Estados Unidos. Tenho uma posição inequívoca sobre isto. Mas tenho aquilo que falta a muitos anti-comunistas exaltados deste País, que a coragem de dizer que os Estados Unidos da América, protegendo seus monopólios e trustes, vão espoliando e explorando esta Nação sofrida e miserabilizada. Penso com independência. Não penso ao lado dos russos ou dos americanos. Penso pelo Brasil e pela República. Queremos um Brasil forte e independente. Não um Brasil escravo dos militaristas e dos trustes e monopólios norte-americanos. Nada temos com os russos. Mas nada temos também com os americanos, que espoliam e mantêm nossa Pátria na pobreza, no analfabetismo e na miséria.

Estes que muito elogiam a estratégia norte-americana querem submeter nosso povo a esse processo de esmagamento. Mas isso foi dito pelo ministro da Guerra. Isso quer dizer que S. Exa. tomará todas as medidas contra o Rio grande. Estou informado que todos os aeroportos do Brasil, onde pousam aviões internacionais de grande porte, estão guarnecidos e com ordem de prender o sr. João Goulart, no momento da descida. Há pouco falei, pelo telefone, com o sr. João Goulart, em Paris, e disse a ele que todas as nossas palestras de ontem foram censuradas. Tenho provas.Censuradas não nos seus efeitos, mas a rigor. A companhia norte-americana dos telefones deve ter gravado e transmitido os termos de nossas conversas para essas forças de segurança. Hoje eu disse ao sr. João Goulart: decide de acordo com o que julgares conveniente. Ou deves voar, como eu aconselho, para Brasília, ou para um ponto qualquer da América Latina. a decisão é tua! Deves vir diretamente a Brasília, correr o risco e pagar para ver. Vem. Toma um dos teus filhos braços. Desce sem revólver na cintura, como um homem civilizado. Vem como para um País culto e politizado como é o Brasil e não como se viesse para uma republiqueta, onde dominem os caudilhos, as oligarquias que se consideram todo-poderosas. Voa para o Uruguai, então, esta cidadela da liberdade, aqui pertinho de nós, e aqui traça os teus planos, como julgares conveniente.

Vejam, meus conterrâneos, se não é loucura a decisão do ministro da Guerra. Vejam, soldados do Brasil, soldados do III Exército! Comandante, general Machado Lopes! Oficiais, sargentos e praças do III Exército, guardiães da ordem da nossa pátria. Vejam se não é loucura. Este homem está doente! Este homem está sofrendo de artereosclerose, ou outra coisa. A atitude do marechal Odílio Denys é uma atitude contra o sentimento da Nação. Contra os estudantes e intelectuais, contra o povo, contra os trabalhadores, contra os professores, juízes, contra a Igreja. Ainda há pouco, conversando com S. Exa. Revdma., Arcebispo Dom Vicente Scherer, recebi a comunicação de que todos os cardeais do Brasil haviam decidido lançar proclamação pela paz, pela ordem legal, pela posse a quem constitucionalmente cabe governar o brasil, pelo voto legítimo de seu povo. Esta proclamação está em curso pelo País. As Igrejas Protestantes, todas as seitas religiosas clamam por paz, pela ordem legal. Não é a ordem do cemitério ou a ordem dos bandidos. Queremos ordem civilizada, ordem jurídica, a ordem do respeito humano. É isso.

DESATINO E LOUCURA

Vejam se não é desatino. Vejam se não loucura o que vão fazer. Podem nos esmagar, num dado momento. Jogarão o País no caos. Ninguém os respeitará. Ninguém terá confiança nessa autoridade que será imposta, delegada de uma ditadura. Ninguém impedirá que este País, por todos os seus meios, se levante lutando pelo poder. Nas cidades do interior surgirão as guerrilhas para defesa da honra e da dignidade, contra o que um louco e desatinado está querendo impor à família brasileira. Mas confio, ainda, que um homem como o general Machado Lopes, que é soldado, um homem que vive de seus deveres, como centenas, milhares de oficiais do Exército, como esta sargentada humilde, sabe que isso é uma loucura e um desatino e que cumpre salvar nossa pátria. Tenho motivos para vos falar desta forma, vivendo a emoção deste momento, que talvez seja, para mim, a última oportunidade de me dirigir aos meus conterrâneos. Não aceitarei qualquer imposição.

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ORDEM SÓ INTERESSA A BRIZOLA

Desde ontem, organizamos um serviço de captação de notícias por todo o território nacional. É uma rede de radioamadores, num serviço organizado Passamos a captar, aqui, as mensagens trocadas, mesmo em código e por teletipos, entre o III Exército e o Ministério da Guerra. As mais graves revelações quero vos transmitir. Ontem, por exemplo – vou ler rapidamente porque talvez isto provoque a destruição desta rádio – o ministro da Guerra considerava que a preservação da ordem ‘só interessa ao governador Brizola’. Então, o Exército é agente da desordem, soldados do Brasil?! É outra prova da loucura! Diz o texto: ‘É necessário a firmeza do III Exército para que não cresça a força do inimigo potencial’.

Eu sou inimigo, meus conterrâneos?! Estou sendo considerado inimigo, meus patrícios, quando só o que queremos é ordem e paz. Assim como este, uma série de outros rádios foi captada até no Estado do Paraná, e aqui os recebemos por telefone, de toda a parte. Mais de cem pessoas telefonaram e confirmaram. Vejam o que diz o general Orlando Geisel, de ordem do marechal Odílio Denys, ao III Exército: ‘Deve o comandante do III Exército impedir a ação que vem desenvolvendo o governador Brizola. Deve promover o deslocamento de tropas e outras medidas que tratem de restituir o respeito ao Exército. O III Exército deve agir com a máxima urgência e presteza. Faça convergir contra Porto Alegre toda a tropa do Rio grande do Sul que julgar conveniente. A Aeronáutica deve realizar o bombardeio, se for necessário. Está a caminho do Rio Grande uma força-tarefa da Marinha de Guerra e mande dizer qual o reforço de que precisa.’ Diz mais o general Geisel: ‘Insisto que a gravidade da situação nacional decorre, ainda, da situação do Rio Grande do Sul, por não terem, ainda sido cumpridas as ordens enviadas para coibir a ação do governador Brizola’.

Era isto, meus conterrâneos. Estamos aqui prestes a sofrer a destruição. Devem convergir sobre nós forças militares para nos destruir, segundo determinação do ministro da Guerra. Mas tenho confiança no cumprimento do dever dos soldados, oficiais e sargentos, especialmente do general Machado Lopes, que, esperamos, não decepcionará a opinião gaúcha. Assuma, aqui, o papel histórico que lhe cabe. Imponha ordem neste País. Que não se intimide ante os atos de banditismo e vandalismo, ante este crime contra a população civil, contra as autoridades. É uma loucura.

CHACINA

Povo de Porto Alegre, meus amigos do Rio Grande do Sul! Não desejo sacrificar ninguém, mas venham para a frente deste Palácio, numa demonstração de protesto contra esta loucura e este desatino. Venham, e se eles quiserem cometer esta chacina, retirem-se, mas eu não me retirarei e aqui ficarei até o fim. Poderei ser esmagado. Poderei ser destruído. Poderei ser morto. Eu, a minha esposa e muitos amigos civis e militares do Rio Grande do Sul. Não importa. Ficará o nosso protesto, lavando a honra desta Nação. Aqui resistiremos até o fim. A morte é melhor do que a vida sem honra, sem dignidade e sem glória. Aqui ficaremos até o fim. Podem atirar. Que decolem os jatos! Que atirem os armamentos que tiverem comprado à custa da fome e do sacrifício do povo! Joguem estas armas contra este povo. Já fomos dominados pelos trustes e monopólios norte-americanos. Estaremos aqui para morrer, se necessário. Um dia, nossos filhos e irmãos farão a independência do nosso povo!

Um abraço, meu povo querido! Se não puder falar mais, será porque não me foi possível! Todos sabem o que estou fazendo! Adeus, meu Rio Grande querido! Pode ser este, realmente, o nosso adeus! Mas aqui estaremos para cumprir o nosso dever”

brizola ao microfone

Os sargentos da Base Aérea de Canoas (então de Gravataí) se rebelaram e impediram que os oficiais levantassem vôo para bombardear o Palácio. Machado Lopes aderiu ao movimento da Legalidade, Jango retornou ao Brasil, via Porto Alegre, e tomou posse no dia 7 de setembro de 1961 na Presidência da República. Após ter restabelecidos seus poderes constitucionais, como chefe do Executivo federal (manietados no golpe de “salão” que impôs o parlamentarismo), em 1963, governaria apenas um ano, derrubado pelos amigos da burguesia nacional e americana, por querer implementar a reforma agrária (no comício de 13 de março de 1964 assinaria decreto desapropriando terras ao longo das rodovias federais), a reforma urbana e universitária, entre outras, e por assinar a lei de controle de remessa de lucros das empresas estrangeira – revogada logo após o golpe de 1.º de abril.

Com sua queda, o povo brasileiro perdia a chance de ter uma vida de gente, em vista de seus próprios interesses e dignidade, sem a escravização pelo capital internacional, que nos transforma em zumbis, sem vontade e condições de vida, a serviço do luxo sádico dos donos do mundo! E nascia o Brasil da miséria absoluta, da criminalidade desenfreada, da concentração urbana absurda e do êxodo rural marginalizador de multidões, o Brasil do deboche político, da completa falta de consciência das grandes massas de trabalhadores, de mente diariamente manipulada pela toda poderosa mídia, a nova “deusa inquestionável”, que hoje conhecemos.

Ubirajara Passos

O DISCURSO DE OSWALDO ARANHA NO ENTERRO DE GETÚLIO VARGASG


 

Há exatos 53 anos, em 23 de agosto de 1954, ocorria a última reunião ministerial de Getúlio com seus ministros, que se estenderia pela madrugada de 24 de agosto, em meio à crise gerada pelo assassinato do Major Vaz, puxa-saco do representante maior do imperialismo americano, Carlos Lacerda (típico exemplar do fascismo histérico-moralista e ex-comunista convertido ao pior conservadorismo) em atentado pretensamente dirigido contra o último, segundo a sanha lacerdista pestilenta, a mando de Getúlio (o que nunca foi comprovado e era a mentira de que os capachos da burguesia americana precisavam para mobilizar, pela via do moralismo arraigado culturalmente, a população contra o governo nacionalista e popular).

Na manhã do dia seguinte, diante da pressão dos milicos golpistas de extrema-direita, de cabeça feita pelos yankees na Força Expedicionária Brasileira – a FEB – nos campos da Itália, no final da segunda guerra mundial (os mesmos que deram o golpe de estado em 1º de abril de 1964, inaugurando o Brasil triste e miserável que vivemos), que exigiam sua renúncia, Getúlio se suicidaria com um tiro no peito, causando a reação comovida e dolorosa das multidões de trabalhadores Brasil a fora, e evitando (pelos dez anos seguintes) o golpe dos imperialistas histéricos. Em Porto Alegre a multidão enfurecida chegou a depredar os jornais da oposição direitosa (como os “Diários Associados” de Assis Chateaubriand).

No enterro de Getúlio em São Borja, sua terra natal, no dia 25 de agosto, o ministro Oswaldo Aranha (companheiro que o acompanhava na vida política desde a época do governo castilhista de Borges Medeiros no Rio Grande do Sul, nas décadas de 1910 e 1920, que preparou com ele, como grande articulador, a Revolução de 1930 e foi seus ministro diversas vezes nos anos seguintes, que ficaram conhecidos na História como a “Era Vargas”,1930-1945 e 1951-1954, tendo presidido, como representante do Brasil, a ONU em 1947, ano em que a organização reconheceu a constituição do “Estado de Israel”) aos prantos, proferiu o discurso que transcrevo abaixo, que além da profunda humanidade é um depoimento íntimo de quem lutou vida a fora ao lado de Getúlio Vargas pela independência econômica do Brasil e e a libertação de seus trabalhadores. É bom lembrar, quando se avizinha a reforma trabalhista e sindical do ex-sindicalista Luís Inácio, que pretende revogar os mínimos direitos que os escravos assalariados ainda têm para protegê-las da sanha exploratória e sádica da classe dominante, que foi Getúlio, em plena ditadura do Estado Novo, que deu corpo legal e efetivo, em 1943, à única legislação trabalhista nacional que merece este nome (e que hoje já se encontra deformada por décadas de ditadura fascista e seus sucessores “democráticos”, mas mesmo assim o Inácio quer revogá-la). Vamos ao discurso:

 

Oswaldo Aranha“Getúlio,

Não era possível os teus restos serem recolhidos ao seio maternal de tua terra sem que antes, tendo contigo vivido os últimos dias de tua vida, eu procurasse, ante a eternidade que nos vai separar, conversar contigo, como costumávamos conversar, nos nossos despachos, sobre a vida, as criaturas e os destinos do Brasil. Não sei se, neste instante, poderei conversar contigo como outrora conversamos. Eu estou, como todos os brasileiros, constrangido, dolorido, ferido na alma, ao ver que te arrancaram a a vida aqueles que te deviam conservar para melhor sorte do povo e do Brasil. Quero que Deus me dê, neste instante, um pouco da tua mansidão, um pouco da tua bondade e generosidade, para que nós possamos suportar neste transe, quando já no horizonte do do Brasil, na sorte do povo e no futuro de nossa Pátria, já se carrega de nuvens negras da insegurança e da violência. Disseste que só o amor constrói para a eternidade, e este teu amor será aquele que vai construir o Brasil. Não há quem tenha forças nem poder para trocar o amor que está no coração dos brasileiros e não tenha forças e poder para mudar os destinos desta Pátria contrariamente às suas tradições, pelos golpes da ilegalidade, da traição e das armas. Neste momento, Getúlio, conversando com aquela intimidade boa e generosa com que nos entendíamos, quero te dizer que o povo todo chorou, chora e chorará por ti, como nunca imaginei pudesse um povo chorar. Se é verdade aquilo que se disse, quando morreu um grande homem da História que orgulha todos os sul-rio-grandenses, quando morreu Castilhos; se é verdade o que disse Pereira da Cunha, numa hora de emoção, declarando que, se houvesse um processo para a cristalização da lágrima, o túmulo dele não seria de mármore, eu te diria que se houvesse esse processo para a cristalização da lágrima, tu não te enterrarias no fundo da terra de São Borja e do Rio Grande, mas na mais alta montanha da geografia política do Brasil, porque nunca se chorou tanto, nunca um povo foi tão dominado pela dor ao perder um filho, como neste instante o povo brasileiro diante de tua morte.

Getúlio,

Saímos juntos daqui há vinte e tantos anos; íamos todos levados pelo teu sonho e teu ideal. A tua filosofia era inspirada nos humildes, nos necessitados, na assistência de quantos viviam à margem da sociedade brasileira, espalhados por esta imensidão, por estas terras abandonadas e abandonados eles também em suas terras, os trabalhadores. Todos tínhamos um só sonho: era integrar o Brasil em si mesmo, era fazer com que o Brasil não pertencesse às classes dominantes, aos potentados, ou poderosos, e que entre nós existisse, pela condição humana, de pobres e ricos, maior igualdade e fôssemos todos igualmente brasileiros. A preocupação dominante da tua vida eu não direi que era fraternal, direi que era material, porque eu o testemunhei: o teu ideal era dividir igualmente entre todos os seus filhos o carinho, o amor e a possibilidade de assistência, de vida e de futuro. O que mais te feria eram as discriminações, as separações, era este contraste horrível que só não emociona os homens que não têm formação cristã e faz com que enquanto uns vivam no gozo, no luxo e na grandeza, outros se afundem na fome, na miséria e no desespero. Conheci o teu íntimo, como talvez poucos homens puderam conhecer, porque, entre os grandes títulos de minha vida, um dos maiores era a confiança do teu pensamento e do teu sentimento, a honra da tua amizade, que acidentes políticos nunca modificaram, antes estreitaram e engrandeceram entre nós. Saímos daqui há vinte e poucos anos. Voltamos juntos, e tenho consciência de que se tu voltas, neste momento, para a terra de São Borja, para um túmulo, e eu não volto para a cidade de Alegrete, ainda é por causa do teu amor, da tua generosidade e do teu desprendimento, porque sei, tenho consciência e devo dizer a todos e a todo o País, que tu morreste para que nós, os que te assistiam, os teus amigos, não morressem contigo. Devo declarar que, se ainda vivemos, é porque tu te antecipaste na morte, para nos deixar na vida. O teu suicídio é o grande suicídio, o suicídio altruístico, aquele que faz a mãe,e do pai pelo filho, o pai, e que foste pai e filho como ninguém, e por isso soubeste fazer pelos teus. Ninguém mais do que eu o pôde testemunhar. Todos os meus apelos eram no sentido de que a tua vida era da maior necessidade para o Brasil. Praticaste não o ato de renúncia da tua vida, praticaste a grande opção, que só os fortes sabem fazer, a opção altruística que, entre a vida e os seus prazeres e a morte, decide-se pela última.

Se ele tivesse querido, nesta hora, meus senhores, seria mais forte do que nunca, em vida; mas não mais forte do que é agora na morte, porque a morte é eterna e a vida, passageira. Ele seria mais forte porque tinha no seio das Forças Armadas e no coração do povo, que é invencível, os elementos para resistir, dominar e vencer. Mas procurou vencer-se a si mesmo, não derramar o sangue daqueles que sabia, como disse momentos antes, os melhores, os bons, os amigos. Não foi, como se disse, o suicídio de um grande homem, tu te mataste para evitar que o novo Brasil se suicidasse e para que, de ti, da tua morte e do teu sangue, surjam, como numa transfiguração, o futuro e o destino, e nós, nos contemplando, possamos ter, neste momento, a convicção de que deste com o teu sangue a certeza de que o Brasil surgiu de ti, da tua filosofia, de nossa Pátria! Este destino surgirá como uma emanação deste túmulo e se espraiará pelo tempo dos tempos e por todos os horizontes, numa afirmação renovada das tuas idéias e dos teus sentimentos. Quando se quiser escrever a História do Brasil, queiram ou não, tem-se de molhar a pena no sangue do Rio Grande do Sul, e ainda hoje, quem quiser escrever e descrever o futuro do Brasil, terá de molhar a pena no sangue do teu coração.

Getúlio,

Saímos daqui juntos. Tenho consciência de que não voltamos juntos porque tu quiseste poupar a minha vida. Naquela horas trágicas e difíceis, quando o Judas preparava um novo Cristo na História do Brasil, nós sentíamos que a traição estava às nossas portas, e a negação de apóstolo e do Senhor era feita pelos que mais juravam a sua fé. Naquela hora, nós tínhamos um pacto, o pacto dos homens desta terra, o pacto dos homens dignos, que todos poderiam derramar sangue para te conservares no poder, mas nós decidimos ficar juntos de ti, porque estávamos dispostos a fazer tudo pelo Brasil, a fazer todos os sacrifícios, menos o de sermos humilhados, porque a humilhação é incompatível com a dignidade humana. Tu te antecipaste para nos poupar a vida. Não sei ! As tuas decisões sempre foram as melhores, mas não sei se não fora talvez melhor para nós termos idos juntos, já que juntos vivemos, juntos sonhamos, e eu te acompanhei por toda esta tua longa vida.

Quando, há vinte e tantos anos, assumiste o governo deste País, o Brasil era uma terra parada, onde tudo era natural e simples; não conhecia nem o progresso, nem as leis de solidariedade entre as classes, não conhecia as grandes iniciativas, não se conhecia o Brasil. Nós o amávamos, de uma forma estranha e genérica, sem consciência da nossa realidade. Tu entreabriste para o Brasil a consciência das coisas, a realidade dos problemas, a perspectiva dos nossos destinos. Ao primeiro relance, viste que a grande maioria dos brasileiros estava à margem, e a outra parte estava a serviço das explorações estrangeiras.E então, este espírito que conhecemos, retemperado no drama da fronteira, se alarmou nos seus estudos e se multiplicou na generosidade de seus sentimentos. Trouxeste uma cruzada que não está marcada no tempo e não tem horizonte fixado, que é a da integração dos brasileiros pelos brasileiros no seu próprio destino. Até então o Brasil não era nada, esperava por tudo. Não havia consciência do nosso progresso. Tu ofereceste a realidade, penetraste nela, tudo deste pelo novo Brasil que há deGetúlio e Oswaldo Aranha, vitoriosa a revolução de 1930 surgir, que há de crescer e se multiplicar e, quando integrado na sua grandeza entre as maiores nações do mundo, que fatalmente viremos a ser, o teu nome estará não neste túmulo, mas no topo de um pedestal, onde a gratidão de todos os brasileiros te levará como reconhecimento.

Getúlio,

Não tenho nem idéias, nem pensamento, nem forças para falar. Estou vivendo, nesta hora, ao teu lado, o turbilhão das minhas emoções, que se agrupam entre espasmos de dor e lágrimas, entre conjecturas e dúvidas, e, olhando para ti, sei que estou olhando para o Brasil e vendo que tu, ao entrares para a eternidade, tornaste maior o teu nome na História. Começo a pensar o que será de nós, os brasileiros, neste transe que se abre com a tua morte.

Direi, procurando interpretar as palavras que João Goulart acabou de proferir em nome de seu partido, que nós, os teus amigos, continuaremos, depois da tua morte, mais fiéis do que na vida: nós queremos o que tu sempre quiseste para este País. Queremos a ordem, a paz, o amor para os brasileiros.

Neste instante, quando ainda agitados pelo remorso ou atormentados e com as mãos tintas da traição, eu, receoso diante da afronta que se fez ao povo brasileiro com o teu afastamento do poder e da vida, a maior afronta que registra a história política do Brasil, porque se verificou não uma eleição com a tua morte, mas a consagração defintiva do teu povo pelo teu amor pelo Brasil: neste instante, diante do teu túmulo, não há lugar para exaltações, para paixões, o que ofenderiam a tua bondade, de que tanto se abusou neste país. Diante de ti não há lugar para recriminações. Há sim, para afirmar ao Brasil inteiro a mensagem de um homem que não queria morrer, mas continuar os seus ideais. Nós queremos, seguindo as tuas lições, um entendimento, mas fique bem claro que os entendimentos têm de se fazer entre os humildes, entre os trabalhadores, entre o povo e os homens capazes de assumir responsabilidades, mas jamais com os traidores. A traição não teve guarida no teu coração, não pode ter no nosso. Assim como detestamos a traição, perdoaremos os traidores. Sigam o seu destino, perseguidos como Judas, pelo tempo dos tempos, recebendo o castigo da reprovação. Pela torpeza que cometeram, apesar do dever e dos compromissos de honra assumidos. Nesta hora, aos que já estão adotando providências que indicam para o Brasil o rumo da violência, da supressão de direitos elementares, da perseguição, responderemos como o povo brasileiro com o coro de suas lágrimas.

Haveremos, juntamente com aqueles que rendem as homenagens ao teu sentimento, de jurar fidelidade eterna às idéias do teu amor, que desse túmulo emana, como disseste do teu próprio sangue, a flâmula da redenção, pela ordem, pela concórdia, pela paz. Estão eles atemorizados com o que fizeram. Estão atemorizados pelo remorso. Estamos ameaçados de dias incertos, negros e sangrentos, mas contra tudo isso, contra este crime que se pressente contra o povo brasileiro, clama a tua vida de tolerância, de bondade e de generosidade, porque se é verdade que sabias ser bom com os teus amigos, eu que testemunhei a tua vida, posso dizer que não houve no Brasil homem melhor para os seus inimigos.

Getúlio,

Vamos encerrar o nosso despacho, a nossa conversa, aquela conversa que tínhamos tantas vezes por semana, em que tanto me inspirava, me aconselhava e decidia. É que procurei dar o melhor de mim mesmo pela sorte e pelos destinos do nosso País. Vamos encerrar a nossa conversa com a afirmação, ou melhor, com a informação que te costumava dar do que sinto, vejo e prevejo para o nosso País. Teremos dias intranqüilos, criados por aqueles que disseram que iriam defender as leis, que são as que dão segurança à vida do povo. Teremos dias de erros graves e de crimes, mas podes estar certo de que defenderemos a tua memória, porque tu não nos legaste a tua morte, mas a eternidade de tua vida. Podes ir tranqüilo, porque venceremos, inspirados em teus sentimentos de amor e de igualdade. O teu apelo será atendido. Tudo faremos para atendê-lo, para que o Brasil viva dirigido não por ódios, por sentimentos subalternos, nem por vinganças ou recriminações, mas dentro da realidade generosa e fraterna. A tua vida é a maior lição que recebeu o Brasil. A tua morte é apenas um episódio da tua vida. Não chega nem a interromper o teu destino.

Muitas e grandes vozes te falaram neste instante, muitos e grandes pensamentos trouxeram-te nesta hora o testemunho da admiração que despertaste em todo o Brasil. O povo está falando nas ruas, com as suas lágrimas, com o seu desespero, com a sua inconformação. Tu ouviste a voz dos trabalhadores pelos seus líderes, a voz de Minas demonstrando a sua fidelidade mais alta que suas montanhas, para te trazer, através de um dos nossos companheiros, de um daqueles que ilustravam a tua família governamental, a sua palavra de despedida.

Eu, Getúlio, não te dou minha despedida, posto que tu não te despediste de nós, porque nós iremos todos os dias, a ti, buscar inspiração para os nossos atos.

Quero te dizer agora, homem que tem que enfrentar um futuro ao qual havia pretendido renunciar, por isso que era minha decisão encerrar a minha vida pública, que diante da nossa realidade, quando tu te tornas ainda maior, eu me reincorporarei a quantos de hoje para o futuro continuarão a obra daquele que foi, entre os brasileiros que eu conheci e entre os grandes homens com que tenho convivido no mundo, um dos maiores, mas sem dúvida, o melhor entre os melhores.

Não te trouxe o meu abraço , que separa para sempre, que nem o meu abraço que une ainda mais, nem o beijo com que nos aproximamos dos mortos queridos, mas aquele aperto de mão amigo de todos os dias para que continuemos, tu na eternidade, eu nesta vida, o diálogo de dois irmãos ligados pela terra, pela raça, pelo serviço e pelo amor do Brasil”.

 

Oswaldo Aranha (que veio, em 1957, a presidir novamente a delegação do Brasil na ONU) morreu cinco anos depois, em 27 de janeiro de 1960, em pleno governo Juscelino Kubitschek (o construtor de Brasília, eleito em coligação com o PTB,do qual o Presidente, João Goulart, era seu vice).

Ubirajara Passos