DA ETIOLOGIA IDEOLÓGICA DA NEUROSE NA SOCIEDADE MODERNA


Ainda na onda de preguiça mental, mas pretendendo amenizar o tédio dos leitores (e divulgar o livro impublicado) vai aí mais um SERMÃO NA IGREJA DE SATANÁS:

DA ETIOLOGIA IDEOLÓGICA DA
NEUROSE NA SOCIEDADE MODERNA

É admissível falar-se em neurose, sofrimento mental, conflito emocional como expressões de uma patologia, portanto de um desvio dos “padrões” de normalidade, em uma sociedade filha da puta como a em que vivemos?

Afora a discussão sobre padrões (em si mórbida, pois estes, no que se refere à ação do homem , são necessariamente doentios, constituindo a negação do que há de mais sublime e criativo: a liberdade) a regra, na esmagadora maioria das vidas humanas, é, e tem sido através da História, o intenso padecimento da alma, dividida entre o desejo e o “dever”, as legítimas aspirações e as “possibilidades”, e não o contrário.

Quando concebemos um neurótico, entretanto, costumamos imaginar um indivíduo particularizado (integrante, como o alcoólatra, de uma suposta minoria a ser tratada nas entidades de “anônimos”, sejam os “A.A.” ou os “N.A.”) que insiste em ser infeliz, apesar de toda a beleza da vida! Que teima em queimar a alma nas chamas infernais (pobre Capeta!) da ansiedade, da angústia, da tristeza e do permanente sobressalto, complicando – por uma espécie de prazer masoquista – desnecessariamente a existência, enquanto o restante da humanidade vive (melhor seria dizer pasta) placidamente (ou bovinamente?).

O neurótico, na visão clássica, e sem vergonha, é, portanto, um inveterado criador de casos, cuja estranhíssima mania de consumir a vida rodando ao redor do próprio rabo (e não vivendo plenamente) é objeto das mais variadas e abstrusas investigações psicanalíticas, sem que a Psicologia especializada tenha conseguido cabalmente determinar suas origens.

Tão absurdo nos parece seu comportamento, que só podemos crer seja causado pelos mais recônditos e indizíveis traumas infantis, os mais idiossincráticos complexos emocionais.

Como é possível, porém, “ser normal”, ter-se calma, tranqüilidade, prazer de viver, quando a existência da imensa maioria de nós é um rosário perpétuo de mazelas e privações (desde as mais comezinhas necessidades materiais até as frustrações filosóficas mais sofisticadas). Exigir uma fria e controlada impassibilidade diante da fome, do não ter o que vestir de forma decente, das contas estourando, e avolumando-se de forma crescente, a cada fim de mês, é supor um super-homem, forjado em ferro – e não constituído de carne, nervos e ossos.

A caracterização da neurose como doença, como caso individual – exceção em relação a uma pretensa normalidade emocional majoritária – obscurece, na verdade, que ela é (ainda que a própria condição humana mortal a suponha), sobretudo, o produto de mazelas sociais muito bem determinadas, de um quotidiano de miséria e opressão, cuja raiz está na própria natureza da sociedade capitalista.

As condições objetivas em vivemos (um rendimento não maior que o necessário à simples sobrevivência e uma disciplina de trabalho autoritária e despersonalizante) nos reduzem a meros instrumentos de geração dos meios que permitem a boa-vida (materialmente faustosa e emancipada do castigo do trabalho) a um punhado de burgueses, que agem e nos tratam como se fossem proprietários não apenas do “capital”, mas de nós mesmos.

Exatamente como o gado, sem que o percebamos, o próprio ritmo de nossas vidas – condicionado pelos “horários de trabalho” – e a expressão concreta de nossa personalidade – tolhida pela “ética” de comportamento da empresa e da “sociedade” – são determinados não por nossos interesses e decisões, mas pela vontade e necessidade do patrão que nos explora.

Diante de tal existência, o conflito interno, a divisão, a “neurose” é a mínima reação que se espera de um espírito saudável. Apresentá-la como misteriosa e incomum doença da alma, calcada exclusivamente nos conflitos do inconsciente é corrobar, na verdade, como normal e saudável (e, portanto, desejável e justificável racionalmente), a ordem social essencialmente mórbida em que estamos mergulhados.

Uma alma que não se retorça, que não ferva diante da violentação da liberdade e do prazer legítimo, da frustração perpétua da felicidade a que todos temos direito de construir para nós e por nós próprios; que não se despedace em tédio e amargura profunda ante a impotência individual em alterar tal realidade; que não agonize ante a censura e a dissuasão contínua (exercida por seus próprios companheiros de desgraça) sobre sua rebeldia revolucionária, é tudo, menos sadia. Doentio é aquele cuja coisificação atingiu tal grau que a própria desgraça já não lhe causa qualquer sofrimento íntimo, tão conformado (e deformado) se encontra com a boçalidade de sua vida.

Ubirajara Passos

Um comentário em “DA ETIOLOGIA IDEOLÓGICA DA NEUROSE NA SOCIEDADE MODERNA

  1. * Em 09.08.06, às 11:05:51,
    * Fasa Safada disse :

    Puxa, quanta amargura. Concordo com a existência da hipocrisia e com a fabricação da loucura, mas… cá pra nós, vc ta bebendo todas, não?
    E pau de bebum só faz xixi (risos)

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